CINEMA
Vera Holtz protagoniza 'Tia Virginia', novo filme de Fábio Meira
Longa-metragem fala sobre as responsabilidades que recaem sobre as filhas solteiras
Por Rafael Carvalho | Crítico de cinema
Virgínia dá corda no antigo relógio da parede de sua casa – tarefa que repete todos os dias – a nos lembrar a inevitabilidade do tempo, nada mais bergmaniano no cinema. Zelar pela casa da família e pela mãe idosa é também sua tarefa de vida, já que é a única das três irmãs que não se casou nem teve filhos. A responsabilidade de cuidar da matriarca enferma e debilitada na cama é toda sua. Mas Virgínia está cansada, sentindo também o peso da idade.
Tia Virgínia, o novo filme do cineasta goiano Fabio Meira, é um drama familiar que se passa no intervalo de um único dia – a véspera do Natal –, mas revira pelo avesso a vida da protagonista (vivida com afinco por Vera Holtz) e sua contraditória relação com as irmãs Vanda (Arlete Sales) e Valquíria (Louise Cardoso).
Os sobrinhos também estão presentes – um deles mais interessado em pedir dinheiro para a tia do que celebrar as festas natalinas –, mas o título do filme não faz referência a um ponto de vista deles sobre a personagem. Virgínia é inspirada nas tias do diretor – para quem ele dedica o filme no final – que também viveram situação semelhante. Em verdade, essa é uma constituição muito comum nas famílias brasileiras: algum dos filhos precisa cuidar dos pais, levando-os para sua casa ou morando na casa da família com eles. E geralmente essa tarefa cabe àqueles que não se casaram.
Esse é o caso de Virgínia que abdicou de sua liberdade para assumir a tarefa ingrata de assistir a mãe (presença calada, mas intensa de Vera Valdez), segundo ela, por pressão das irmãs no passado. A reunião da família, pouco tempo após a morte do pai, mais o clima melancólico do Natal, vai reacender as antigas desavenças e rusgas entre todos ali, fazendo de Tia Virgínia uma tragicomédia que Meira filma com sensibilidade, mas também certa dureza que transparece nas entrelinhas.
Não à toa, ele ganhou o Kikito de Direção no Festival de Gramado, onde o filme estreou em meados deste ano, além do filme vencer outros cinco prêmios, entre eles o de Roteiro e o de Melhor Atriz para Vera Holtz. Ela é de fato a estrela do longa, defendendo uma personagem cheia de nuances, dores e rancores, mas ainda cheia de vitalidade e vontade de aproveitar a vida.
Imbróglios familiares
São dicotomias como essas que permeiam todo o filme. A protagonista cumpre suas funções domésticas com cuidado e zelo, mas sente-se cada vez mais estagnada. Há certa alegria na reunião da família, no reencontro das irmãs, ao mesmo tempo em que as desavenças não demoram a aparecer.
O filme constrói uma série de situações prosaicas que, de repente, revelam os dramas adormecidos. Pode ser uma discussão sobre quem vai preparar o prato principal da noite – e se vai ser um leitão ou um peru assado –; ou se Virgínia pode ceder o seu quarto para que a irmã mais velha e o esposo se acomodem melhor; ou ainda se o caro casaco de peles da mãe pode ficar com a sobrinha (personagem de Daniela Fontan) – apesar de Virgínia afirmar que a mãe já havia dado para ela.
Esse é outro expediente muito comum nas famílias mais numerosas, e o filme se aproveita disso para estabelecer um clima que vai se tornando mais tensionado e conflituoso à medida que a narrativa transcorre – até alcançar um final apoteótico. Os vícios da classe média-alta, com suas intransigências e a necessidade de manutenção dos privilégios de classe, também transparecem nas conversas e nas atitudes dos personagens.
E nesse filme tão centrado nas figuras femininas, é importante destacar a participação de Antônio Pitanga, que vive o marido de Vanda. Ele já está um tanto senil, tem uma inclinação para o alcoolismo, mas observa com cuidado as movimentações que se dão ali no ambiente caseiro. Já o filho de Valquíria (interpretado por Iuri Saraiva), depois da recusa financeira da tia, deixa cair sua máscara e passa a reproduzir o comportamento agressivo e machista que parece ter herdado de gerações atrás, especialmente na maneira como trata a empregada doméstica (Amanda Lyra).
Casa como prisão
Outro “personagem” importante ao filme é a própria casa da família. Ela está sob os cuidados de Virgínia, mas é um bem de interesse de todos. Quem tem mais poder de decisão sobre a casa, já que a mãe, apesar de viva, não fala e nem se sabe ao certo se está consciente?
De qualquer forma, o filme faz deste espaço o lugar de circulação comum das pessoas, mas também das memórias, com suas dores e delícias. Vanda vai lembrar do pai em vários momentos vendo aqueles móveis, enquanto Virgínia, por sua vez, diz que ali se sente em uma prisão – e não é difícil entendê-la, já que ela respira aquele ar ininterruptamente e, como diz, “como eu não casei, virei empregada”.
A casa tem uma vida própria e sua decoração remete a um tempo antigo que preserva a história dos pais e avós das três irmãs – daí também a importância do prêmio de Direção de Arte que o filme ganhou em Gramado.
Mas apesar desse tom denso das relações familiares, há certo humor que ronda o filme, em especial na maneira como a protagonista passa a agir estranhamente diante das irmãs. Em uma cena emblemática à mesa do almoço, as discussões entre elas começam a escalar para trocas de acusações e dedos apontados, até que Virgínia, por conta de um movimento brusco, cai da cadeira e se estatela no chão; mas ao invés do grito de dor, ela solta uma gargalhada exagerada, começando a rir às bandeiras despregadas deitada no chão, causando um grande desconforto geral, desnorteando a todos – inclusive o espectador.
Esse tipo de quebra de expectativa acompanha a narrativa até o fim, mesmo quando os conflitos se desenham de modo muito claro – a desavença de Virgínia com Vanda é visivelmente a mais ruidosa.
O filme também trabalha em uma zona limítrofe entre a comédia e o trágico, passando pelo farsesco. E é nesse ponto que o longa alcança um clímax inimaginável, beirando a insanidade, mas belissimamente orquestrado para implodir de uma vez por todas com as convenções sociais e familiares. Há uma tia Virgínia em toda família, é o que parece afirmar o filme.
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