DIREITOS E INCLUSÃO
Feira de São Joaquim: registro formal dá ao feirante acesso à direitos
Em seis décadas, o trabalho informal predominou a feira deixando comerciantes sem acesso a benefícios básicos
Por Vagner Ferreira
Salvador, 1964. Após o incêndio que destruiu a Feira de Água de Meninos, os comerciantes foram realocados para a Feira de São Joaquim - que surgiu de uma necessidade de espaço para o trabalho -, situada às margens da Baía de Todos os Santos. Seis décadas depois, muitas coisas mudaram, mas o local permaneceu como um ponto central para a comercialização de uma ampla variedade de produtos, que vai desde alimentos frescos a artesanatos, firmando-se como a maior e mais reconhecida feira da Bahia. Entretanto, a ausência de registro formal predominou no trabalho realizado lá, deixando muitos trabalhadores à margem da sociedade e sem acesso a benefícios essenciais garantidos pela formalização.
O historiador Rafael Dantas resgata aspectos sobre as diferenças do que era a feira antes para o que é nos dias de hoje, destacando a importância e os aspectos de como o trabalho esteve ligado ativamente à economia da cidade. Ele define, inclusive, Salvador como uma grande feira. “Foi o pequeno comerciante, os feirantes, as vendedoras, que movimentaram a economia do Salvador por muito tempo, principalmente no século XIX. Um tabuleiro de uma baiana, de uma quitandeira, de um feirante com balaios, com cestos, criavam as famílias, movimentavam a economia. A freguesia da cidade movimentava a economia de um lugar, foi assim ao longo de toda a história”, descreve ele.
“E aquele lugar tornou-se uma grande referência do comércio local de frutas, verduras, carnes, cerâmicas, e demais produtos que traduziam toda a ideia da Bahia ao longo do tempo. E isso ficou no decorrer do século XIX e início do século XX. É interessante até falar que, principalmente nos anos 30 e 40, a feira se tornou um marco quase que turístico da cidade, porque ali fotógrafos, escritores, artistas começaram a entender que aquele espaço era a cara da cultura Bahia, e começaram a retratá-la, representá-la em suas obras”, continua o historiador.
Ao longo dos anos, a feira conservou sua importância na economia com a venda de seus produtos. No entanto, os comerciantes parecem ter ficado em segundo plano.
Pioneira na feira
A história da Feira de São Joaquim se conecta com a história da feirante Solange Maria, 64, que representa a terceira geração de uma família que trabalha com este tipo de comércio local - um trabalho que foi exercido pela sua avó, por sua mãe, e agora, por ela. Sua trajetória começou na Feira de Água de Meninos, onde passou seus primeiros anos de vida, até se mudar com a família para a Feira de São Joaquim aos 4 anos, onde permanece há 60 anos. Suas primeiras lembranças são de brincar e correr sobre o chão de barro do local, além de observar e ajudar os pais no trabalho diário, onde aprendeu na prática as experiências que adquiriu acerca do comércio de mercadorias.
Frequentemente, Solange fica na feira de 5hrs às 18hrs, de domingo a domingo. Entretanto, em épocas próximas a datas comemorativas, para não perder tempo durante o trajeto, ela passa a temporada dormindo na própria feira, em uma barraca de alumínio que tem cama, televisão, som, fogão (onde ela faz a própria comida). No período junino, por exemplo, ela se destaca com a venda de milho, amendoim, jenipapo, carimã etc. E com a renda do seu trabalho - que é a principal e única -, adquiriu a casa, criou seus 3 filhos e investiu na educação de cada um deles.
Ela atribui todas essas conquistas à própria forma (única) de vender: “Eu atendo as pessoas bem, atendo da melhor forma, sabe? No capricho. E todo mundo me conhece, eu converso com as pessoas, eu converso com os meus fregueses, brinco, ensino a como fazer com a mercadoria, como fazer com o milho, como fazer a canjica, tudo isso aí que eu sei, entende? Quando eu fico sem trabalhar é que eu fico triste”, lembra ela, orgulhosa. Quando questionada se é formalizada e se possui CNPJ, ela logo responde: ‘O que é isso mesmo, hem?’.
Formalização dos Pequenos Negócios
Segundo informações disponibilizadas no site do Governo Federal (Gov.br), CNPJ é o Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas administrado pela Receita Federal, que armazena as informações cadastrais das entidades de interesse das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ou seja, em outras palavras, é como se fosse o Registro Geral (RG) das empresas, permitindo que elas sejam reconhecidas oficialmente e possam fazer negócios regulares, como emitir notas fiscais, contratar funcionários, abrir contas bancárias, ter acesso a créditos e direitos a benefícios.
Para solicitar a formalização, é necessário preencher um formulário específico, como o Documento Básico de Entrada (DBE) ou o Protocolo de Transmissão da Ficha Cadastral da Pessoa Jurídica (FCPJ), ambos disponíveis no Portal Redesim, no site do Gov. Esses documentos são revisados em relação ao ato registrado da empresa, como ata, estatuto ou contrato social. Se a s informações estiverem corretas, a solicitação é aprovada e o cadastro é atualizado.
De acordo com informações da Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Bahia (SDE-BA), o estado tem atualmente 1.143.000 (um milhão e quatrocentos e três mil) CNPJs registrados / formalizados. Desses, mais de 800 mil são Microempreendedores Individuais (MEI), enquanto mais de 300 mil são micro e pequenas empresas. No entanto, ambientes de feiras são geralmente vistos como locais de trabalhos informais. Como consequência, os trabalhadores acabam ficando sem os direitos trabalhistas assegurados, estando, na maioria das vezes, invisibilizados.
O Diretor de Comércio, Serviços e Oportunidades de Negócio da SDE-BA, José Carlos Oliveira, ressalta: “Historicamente, os indivíduos das feiras são oriundos da cultura popular. E isso marca a invisibilidade desses grupos sociais, que empreendem sem a chamada educação formal. Então, trazer essas pessoas, incluí-las na atividade da educação, que é uma tarefa do Estado, do poder público, olhando para este histórico, é uma das formas de fortalecer no sentido deles serem incluídos no conceito de regulamentação e formalização, porque, além de formalizar, é preciso melhorar o negócio, fazer ele crescer”.
Já o historiador, Rafael Dantas, reforça sobre a importância dos comerciantes se manterem alinhados com as novas tecnologias “É uma questão que tem que ser debatida, principalmente entre as pessoas que não têm esse conhecimento específico ou que não saiba ainda um caminho para conquistar os seus direitos. É mostrar que elas podem ser beneficiadas com as suas atividades comerciais, que elas precisam se atualizar, respeitando, evidentemente, o seu passado, a sua história, porque cada vez mais temos um mundo mais tecnológico, um mundo mais virtual. O PIX já é uma realidade, tais como contas bancárias específicas, projetos ligados a bancos ou empresas que beneficiam determinadas pessoas, que têm que seguir determinadas exigências. Então saber disso é fundamental para você atuar nesse mundo de grandes conexões de pequenos e grandes negócios”.
Reconhecendo as vantagens decorrentes da formalização, a artesã Dione Andrade, que atua há quase 40 anos na feira de São Joaquim, optou pela formalização do seu negócio.
Fábrica de Artes
Moradora do bairro Pero Vaz, mas ‘nascida e criada na Feira de São Joaquim’ - como costuma se referir -, ela também cresceu se inspirando no trabalho desenvolvido pela própria mãe. Mas, à medida em que foi crescendo, sentiu a necessidade de ter um empreendimento para chamar de seu e regularizar o seu negócio para ter direito a todos os seus benefícios. “Quando a gente nasce na feira, a gente é criado num lugar onde o comércio funciona 24 horas. Então, não tem como você não empreender lá dentro. O empreendedorismo sempre esteve presente na minha vida”, conta ela.
Foi a partir desta necessidade de empreender, que surgiu a ‘Fábrica de Artes’, uma das lojas externas da feira, que consiste em vender artesanato em palha com decoração e folhagens, tendo como um dos carros-chefes, a confecção de chapéus e os tradicionais buquês para bolos a partir da preservação de folhas secas. A maioria das peças são produzidas pela Dione. Todavia, ela vende e ressignifica também o trabalho de terceiros, feito sobretudo por mulheres.
Ela não resume as vendas apenas na feira. Por meio do empreendedorismo digital, que tem democratizado o acesso ao empreendedorismo e facilitado as oportunidades de negócios, Dione leva, através de uma loja virtual no instagram (@fabricadeartess_) e por vendas pelo whatsapp - que são responsáveis por quase 70% das vendas - o ‘São Joaquim’ para o interior do estado. Mas, para isso, precisou dar mais seriedade ao seu trabalho: “Eu tive a necessidade de me formalizar. Eu comecei a atender um público maior, de empresas, e eles exigiam que eu tivesse um CNPJ. Antes da criação do MEI, a gente pagava por essa nota fiscal, então a gente acabava tendo o lucro da gente pagando por isso. O MEI abriu um leque muito grande para a gente expandir os negócios”, relata a artesã, que diz jamais ter imaginado a distância onde seus produtos chegariam.
“O Sebrae me ajudou muito nesse processo, porque eu tomei muitos cursos presenciais, online, estive em alguns projetos que vieram para a feira. Se era projeto de culinária, eu estava dentro. É projeto de alguma outra coisa, eu também estava dentro. E a essência era estar em tudo, porque eu queria aprender. Então, a partir do momento que eu virei empreendedora, eu queria entender o que era empreender e não apenas colocar a mercadoria lá e deixar vender por si só. A partir do momento em que entendi que a mercadoria não se vendia sozinha, comecei a crescer”, relembra Dione.
O Diretor da SDE-BA, José Carlos, menciona que o processo de capacitação é também uma forma de alavancar o próprio negócio, tais como alavancar o turismo, a cultura e outras demais possibilidades. Sobre esse fator, ele comenta: “Se a gente trabalhar na capacitação dos negócios, a gente pode ampliar mais ainda os serviços. O que essa empreendedora artesã viu, a gente precisa fazer com que outros vejam também. Eu acho que é isso que pode ser o nosso mote pra gente conquistar mais ainda esse processo de regulamentação negocial e melhoria dos negócios ativos”.
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