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Ego e as tradições: que cultura estamos preservando?
Confira a coluna desta sexta-feira, 11
Por Débora Magda Peres Moreira*

Vivemos um tempo curioso quando se trata da preservação das tradições. Certas práticas são mantidas com fervor em nome da “cultura”, mesmo quando causam desconforto e até sofrimento. Ao mesmo tempo, manifestações genuínas que promovem o bem-estar coletivo desaparecem sem resistência. O que isso diz sobre nós como sociedade?
A forma seletiva com que valorizamos tradições revela muito sobre nossas prioridades. Aquilo que oferece prazer imediato ou retorno econômico costuma ser mantido, mesmo quando prejudica o próximo, os animais ou o meio ambiente. Por outro lado, tradições que envolvem partilha, paciência e convívio são deixadas de lado por não se ajustarem à lógica do consumo rápido e individualista.
Um exemplo recorrente é o uso de fogos de artifício com estampido. Apesar de seus efeitos adversos serem amplamente conhecidos – crises em crianças autistas, sofrimento de idosos e pessoas sensíveis ao som, pânico e morte de animais, além da poluição sonora – a prática ainda é defendida por muitos como “cultural”. Isso levanta uma questão delicada: preservar a cultura de quem e a que custo?
Ao mesmo tempo, tradições como as festas juninas – outrora celebrações da colheita, da vida simples e do encontro entre vizinhos – foram sendo descaracterizadas. Os trajes singelos deram lugar a fantasias comerciais, a música de raízes foi substituída por ritmos desconectados do espírito original, e o ambiente familiar e comunitário cedeu espaço ao barulho e ao consumo. O que era partilha transformou-se em isolamento. O que era memória afetiva virou espetáculo.
O mais inquietante é o silêncio da sociedade diante dessas perdas. Não são vistas campanhas para resgatar os trajes típicos, as receitas caseiras, a música regional ou os rituais de convivência. Mas quando se propõe limitar práticas com impactos negativos comprovados, surgem protestos em nome da “liberdade” e da “tradição”. Essa contradição merece ser debatida.
Tradições são importantes. Elas constroem identidade, fortalecem laços e transmitem valores. Mas precisam ser constantemente avaliadas à luz dos tempos e das necessidades do coletivo. O que promove acolhimento, empatia e respeito deve ser preservado. O que causa dor, exclusão ou degradação precisa ser revisto.
É hora de refletirmos sobre que tipo de sociedade queremos construir. Uma que prioriza o ego individual ou uma que valoriza o bem-estar de todos? O verdadeiro legado cultural não é o que faz mais barulho, mas o que ressoa mais fundo na alma da comunidade.
* Juíza de Direito titular da Vara Crime, Infância e Juventude e Júri da Comarca de Catu-BA
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