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Entre portas giratórias e o homem que escolher crescer

André Gomma de Azevedo, juiz titular da Vara de Proteção à Mulher de Camaçari e pós-doutor (pesquisador sênior) na Universidade de Harvard

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24/10/2025 - 2:51 h
André Gomma de Azevedo é Juiz titular em Camaçari
André Gomma de Azevedo é Juiz titular em Camaçari -

Nas varas de violência doméstica, um fenômeno inquietante se repete: homens que retornam ao sistema, vítimas que voltam a buscar proteção, histórias que parecem circulares. É o que se convencionou chamar de portas giratórias do sistema de justiça: o usuário não consegue se desprender da porta que o empurra de volta para dentro do fórum, preso ao mesmo movimento que o trouxe — um ciclo em que o processo termina, mas a vida real continua girando no mesmo ponto. O processo formal se encerra, mas o conflito subsiste. O ciclo se repete porque o sistema atua sobre o episódio, não sobre o padrão de comportamento que o produz.

Esse padrão não nasce do acaso. Ele é transmitido, de geração em geração, como se fosse parte natural da identidade masculina. Desde cedo, muitos homens aprendem — por palavras ou silêncios — que lhes cabe dominar: decidir, impor, controlar. A força, a autoridade e até o amor passam a ser medidos pela capacidade de comando.

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Assim, o homem dominador não precisa levantar a voz para exercer poder; ele o faz pela manipulação, pelo silêncio calculado, pela distorção da realidade. É uma forma de violência que se infiltra no cotidiano, que corrói vínculos e empobrece afetos.

E quando o Estado reage apenas com a punição, sem oferecer caminhos de reeducação, o resultado é previsível: o mesmo homem, com as mesmas crenças herdadas, retorna à vara — com outra vítima, ou com a mesma, mais ferida e mais descrente.

A engrenagem das portas giratórias não decorre apenas da insuficiência de recursos ou da morosidade institucional.

Um sistema que mede seu êxito apenas pelo número de processos julgados assemelha-se a um restaurante que se orgulha da velocidade com que serve pratos, ainda que seus clientes saiam desnutridos. O que alimenta o jurisdicionado não é o despacho, é a mudança que ele vivencia.

Superar as portas giratórias exige deslocar o foco da punição para a reeducação. Significa reconhecer que o verdadeiro acesso à justiça consiste no acesso a uma solução efetiva — aquela que interrompe o ciclo da violência e desenvolve competências relacionais em seus participantes.

Isso implica também em capacitar o agressor para compreender o que sustenta seu comportamento, e a vítima para reconhecer seus limites e reconstruir sua autonomia. Não se trata de indulgência, mas de eficácia: sem transformação, não há prevenção; sem prevenção, não há paz.

As varas de violência doméstica são, nesse sentido, mais do que espaços de julgamento — são territórios pedagógicos do Estado. Cada decisão deveria conter, além da resposta jurídica, um gesto educativo: o encaminhamento a programas reflexivos, o estímulo à autocrítica, o aprendizado de como se conquista o respeito em casa por serviços e não por medo. Quando o sistema se torna apenas punitivo, ele se limita a gerir o dano; quando se torna formativo, ele gera valor público.

O conceito desenvolvido por Mark Moore, da Universidade de Harvard, nos ajuda a compreender isso: o valor de uma instituição pública não se mede por sua produtividade, mas por sua capacidade de produzir resultados substantivos para a sociedade. O êxito de uma vara de violência doméstica não reside na quantidade de medidas protetivas expedidas, mas na redução dos casos que retornam; não está nas estatísticas de condenação, mas nas relações que deixam de ser violentas porque alguém aprendeu a amar sem dominar e com isso, a ser respeitado e não temido.

A interrupção das portas giratórias exige, portanto, uma aposta corajosa: a de que o comportamento pode ser redirecionado. Exige que o Judiciário volte a enxergar seu propósito — não como uma engrenagem que processa, mas como uma instituição que transforma. A justiça, quando guiada por valor público, não se satisfaz com o rito; busca a restauração. Não se limita a reagir ao mal; ensina o bem possível. E é somente quando esse aprendizado acontece — quando o homem dominador se torna capaz de reconhecer a humanidade do outro — que a porta, enfim, deixa de girar.

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