AMAB EM FOCO
Juízo das Famílias e reencontros especiais
Coluna desta sexta-feira, 19, trata do reencontro com histórias de amor, cuidado e dedicação familiar no contexto das audiências de curatela

Por Juíza Livia Oliveira Figueiredo*

Era uma manhã de quarta-feira, quando sempre me ocupo de fazer audiências de entrevista nas ações de Interdição/Curatela. No cargo de juíza de Direito há 12 anos, confesso que já vivi muita coisa em audiências, atendimentos e pelos corredores do fórum. Como magistrada do interior, inclusive vivi situações inusitadas na fila do supermercado, comprando queijo na beira da estrada ou buscando meus filhos na escola, mas aquela quarta-feira me reservava um reencontro especial.
Como de costume, me levantei da cadeira, fui fazer o pregão e avistei, sentada no banco de alvenaria da Vara de Família, uma mulher que aparentava ter no máximo 50 anos, com seu filho no colo. O filho tinha cerca de 25 anos, pesava pouco mais de 30 quilos. Ao perceber que a mãe carregava o filho no colo, questionei se poderia ajudá-la trazendo seus pertences até a sala de audiência e, logo, começamos.
“Ana”, com clareza e segurança, respondeu todas as perguntas, enquanto balançava o filho, como se o ninasse. Informou que o filho não se comunicava, mas ela havia aprendido a entender o que ele precisava a partir da rotina que tinham estabelecido.
Aos poucos, a leveza, segurança e força com que “Ana” respondia aos meus questionamentos foi me transportando para um lugar muito familiar, do qual só me dei conta ao final da audiência.
Finalizada a audiência, questionei se “Ana” tinha alguma dúvida e, quando ela saiu com o filho nos braços, vi que minha avó Nilza e meu tio Bezinho haviam me visitado naquela manhã.
Divulgação
Vó Nilza é minha avó paterna, faleceu em maio de 2008, pouco mais de 1 ano após o falecimento do meu tio. Em semelhança àquele jovem, tio Bezinho não falava nem tinha controle do tronco, mas me recordo que ele se comunicava muito bem através de gestos, expressões faciais e barulhos que fazia. Cresci vendo meu tio sentado na sala de TV, cozinha ou na área externa da casa dos meus avós, sempre numa cadeira de pano com assento reclinado.
Cresci vendo a dedicação mais que sacerdotal que meus avós lhe dedicavam, assegurando que ele vivesse com dignidade e conforto.
Cresci vendo a dedicação mais que sacerdotal que meus avós lhe dedicavam, assegurando que ele vivesse com dignidade e conforto, mas também garantiam que ele estivesse inserido na rotina da família e do pequeno povoado que ficava perto da fazenda onde moravam. Tio Bezinho frequentava serestas, acampou com a família em visitas à praia, dentre tantas outras coisas.
Não me recordo de perceber qualquer pesar dos meus avós no cuidado diário com o filho; talvez por terem conseguido, enquanto pais, um equilíbrio na divisão de tarefas que não sobrecarregasse nenhum deles. Mas me lembro com muita clareza de, com espanto, escutar minha avó falar com tranquilidade que pedia a Deus para que o filho partisse antes dela, pois ninguém cuidaria bem dele como ela o fazia, bem como pedia a Deus para que ele morresse antes do meu avô, porque ela não suportaria viver sem o esposo.
Vó Nilza me visitou numa sala de audiência naquela manhã de 28 de agosto de 2025, e a vi completamente ali, na figura de “Ana”, aquela mãe que entrou com o filho nos braços, respondeu aos questionamentos com serenidade, segurança e firmeza e, finalizada a audiência, levantou-se com o filho, disse que não precisava de ajuda, pois já estava acostumada a carregá-lo, e partiu.
Assim que “Ana” saiu da sala, me dei conta do que havia acontecido.
As lágrimas vieram, mas fiz uma oração pelos meus avós e meu tio, agradeci por terem me permitido ver tão de perto um amor e dedicação tão extraordinários, materializados no cuidado e afeto diários de quem faz o que tem de ser feito com leveza. Me levantei e segui para fazer o próximo pregão.
*Juíza Livia Oliveira Figueiredo é juíza da 1ª Vara de Família, Sucessões, Orfaos e Interditos de Teixeira de Freitas.
**PUBLICADA QUINZENALMENTE ÀS SEXTAS-FEIRAS, ACOLUNA TRAZ ARTIGOS ASSINADOS POR JUÍZES DE PRIMEIRO GRAU, SOBRE TEMAS DO JUDICIÁRIO DE INTERESSE DO CIDADÃO.
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