AMAB EM FOCO
Me recuso a não ser gente
Confira a coluna Amab Em Foco
Por Júlia Wanderley Lopes, Juíza
Sou Júlia, filha de Chico e Gésia. 32 anos. Magistrada na minha Bahia há 01 ano 06 meses. Atuo em sete municípios. São muitas as pessoas que precisam do meu trabalho. Que esperam que eu resolva os seus problemas, os proteja e os escute. Aqui, também sou o Estado.
Nós, Juízes, para além de leis e processos, lidamos com gente, E mais: gente também somos. Nossa função, todos os dias, nos lembra disso.
Recentemente, em uma sala de aula com cerca de 40 alunos do início do curso de Direito, ao dividir com eles um pouco sobre a minha rotina profissional, fui questionada: “Como separar a Júlia pessoa da Júlia Juíza?”.
Não há resposta. Diante deles, estava Júlia, em sua humanidade. E eles já sabiam, pois já haviam me encontrado.
É de Júlia que vem a empatia necessária para interagir, com carinho, respeito e acolhimento, com uma criança em situação extrema de vulnerabilidade. E, assim, a “Juíza” é a “Tia Juíza”, a quem se pode confiar seus medos e sentimentos. É esse o caminho que nos permite alcançar verdadeiros resultados em suas vidas. De gente pra gente.
É da humanidade, também, que vem a coragem. Em uma audiência de feminicídio, familiares da vítima, usando camisetas com sua foto, lotavam os corredores do Fórum. Era preciso garantir a integridade do processo e evitar influência sobre testemunhas, mantendo a integridade na produção de provas.
A primeira sugestão recebida: pedir apoio policial e retirar todos do Fórum. Não! Surpreendendo muitos, fui até eles e “apenas” conversei com aquela família enlutada. Pedi que nos ajudassem para que os trabalhos não fossem prejudicados. Em troca, recebi olhares de gente, que agradeceu, foi vista e ouvida. Por Júlia, mas também pelo Estado.
A audiência de depoimento especial é outro exemplo de chamado pela nossa humanidade. Nela, com ajuda de profissionais habilitados, ouvimos crianças vítimas de violência sexual e necessitamos protegê-las, evitando a revitimização. Para isso, precisamos ser gente e saber o que fere o outro.
Temos, também, as polêmicas audiências de custódia. Não só o nosso dever, mas também é a nossa humanidade que nos faz tratar com dignidade um custodiado que, não raramente, apresenta-se com fome, frio ou sede.
É ela (humanidade) que também nos remete ao senso de urgência e responsabilidade, mantendo a imparcialidade necessária, sem impedir ações técnicas e firmes quando preciso.
São muitas as missões, apesar de poucos na comunidade saberem, que exigem resiliência, ponderação e que sejamos reais; debates jurídicos que nos levam além dos gabinetes e dos fóruns e, ainda que silenciosamente, acompanham nossos pensamentos em noites de sono, em momentos de lazer com nossas famílias e nas horas vagas (já não tão vagas). Os números e estatísticas mostram produtividade. Já a doação de vida não é mensurável e, talvez por isso, raramente vista.
Evidentemente, por decidirmos conflitos, recebemos muitas críticas negativas e sentimos esse peso. A magistratura não é para quem quer facilidades. Em pouco tempo, percebi as enormes atribuições e responsabilidades inerentes ao cargo. Mas sei, também, que, nunca deixando de agir como gente, torna-se mais fácil.
Em tempos de incríveis ferramentas de inteligência artificial, que, se usadas de forma responsável, poderão auxiliar nossa atividade, não podemos esquecer que a permanente capacidade de aprender e, enfim, nossa humanidade é que nos distingue.
Neste início de carreira, naturalmente desafiador, agradeço e homenageio colegas que, apenas por serem quem são, me mostram que é possível ser uma magistrada técnica, produtiva e humana.
Obrigada.
Da filha de Chico e Gésia, Juíza, com carinho.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes