AMAB EM FOCO
Uma juíza no Tribunal do Júri
Camila Vasconcelos é juíza Titular da Vara do Júri e de Execuções Penais de Barreiras

Por Camila Vasconcelos*

“Estamos aqui porque alguém morreu” - comecei dizendo aos jurados e presentes. Esse é o Tribunal do Júri, não existe cor, alegria, sorrisos ou qualquer contentamento em estar aqui. Alguém morreu e outro alguém está prestes a ser julgado por seus próprios pares. Isso reflete que tipo de sociedade nós queremos deixar daqui para frente. Também reflete algo demasiadamente humano — que é descobrir o porquê — se é que há motivos ou justificativas para o fato de que uma vida deixou de existir de modo não natural, violento.
O Tribunal do Júri é uma instituição democrática e em 1988 alcançou o status de garantia fundamental. São os jurados membros daquela comunidade em que ocorrido o crime doloso contra a vida que vão julgar diretamente o delito.
É deles o poder de absolver ou condenar o réu através da maioria simples nas cédulas com os dizeres “sim” ou “não” em resposta aos quesitos.
Nas sessões de Tribunal do Júri que presido, vejo a atuação quase teatral da acusação e da defesa. Os olhos do réu apontando ao chão e a família da vítima clamando por justiça.
Sentar-se à frente de um Conselho de Sentença é, talvez, uma das experiências mais complexas e desafiadoras da magistratura. No Tribunal do Júri, o Direito se encontra com o drama humano em sua forma mais crua. É ali que a toga pesa, não apenas pelo simbolismo da autoridade, mas pelo peso das decisões que podem mudar destinos.
Ao longo dos anos em que atuei e continuo atuando no Júri, aprendi que cada processo é mais do que um número no sistema: é uma história de dor, perda e escolhas — muitas vezes trágicas. Por trás de cada réu, há um contexto social; por trás de cada vítima, há um círculo de amor interrompido. E entre ambos, há uma sociedade que busca justiça, mas que também precisa compreender seus próprios limites e responsabilidades.
A imparcialidade é o alicerce da função jurisdicional, mas no Júri ela exige um exercício constante de humanidade e autocontrole. O juiz togado deve zelar pelo devido processo legal, pela legalidade dos atos e pela serenidade dos debates, mas sem se afastar da dimensão humana que dá sentido ao próprio Direito. É preciso garantir voz às partes, escutar os jurados e, sobretudo, preservar a dignidade de todos os envolvidos, inclusive daqueles que erraram.
Há sessões que terminam com a sensação de dever cumprido; outras, com um silêncio pesado, que acompanha o julgador para além das paredes do fórum. Nessas horas, percebo que a função de julgar não é apenas aplicar a lei, mas também servir como guardiã da confiança social na Justiça.
Ser juíza do Tribunal do Júri é, todos os dias, confrontar-se com o limite entre o certo e o possível, entre a frieza da norma e o calor da vida real. É aprender que justiça não é vingança, e que a essência do perdão, embora não conste em nenhuma sentença, pode ser o passo mais difícil e mais libertador para todos, permitindo a reconstrução.
Nem sempre absolver é perdoar; às vezes, é apenas reconhecer que a culpa não se comprovou, que o Estado não conseguiu ultrapassar o limite da dúvida. E esse reconhecimento — feito com base na prova e na lei — é, por si só, um ato de justiça. Outras vezes, a condenação é o que se impõe, e nela também pode haver um gesto de humanidade, porque punir com justiça é também permitir que o réu compreenda o erro e, quem sabe, possa um dia se redimir.
O Júri é, em essência, o espelho da sociedade. E ao olhar para ele, vejo refletidas não apenas as tragédias humanas, mas também a esperança — de que o Direito, exercido com empatia e coragem, possa ser um instrumento de reconstrução, e não apenas de punição.
*Juíza Titular da Vara do Júri e de Execuções Penais de Barreiras
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