ARTIGOS
A verdade dos likes
Confira o artigo de José Medrado

Por José Medrado

Quando as pessoas se reúnem – seja em uma praça pública ou em um feed digital – algo muda na forma de pensar, uma espécie de névoa sobrevoa a razão, e o que mais agrega, geralmente uma emoção incendiada pela raiva, abre espaço para o sentir coletivo, e é rápido, contagioso, coletivo. Voltaire, séculos antes da invenção do mídias sociais, claro, já havia pressentido esse perigo. “Aqueles que podem fazê-lo acreditar em absurdos podem te fazer cometer atrocidades”. Vimos e estamos vendo.
Sua advertência não era apenas moral, mas psicológica. Ele compreendeu que, quando a crença se torna espetáculo de massa, com enredo de fantasias, fakes – deveríamos chamar de mentiras, alertaria mais profundamente –, a consciência se dissolve. Nas multidões, o indivíduo perde a capacidade crítica e adere ao impulso coletivo. Freud explicou que o elo invisível entre os membros de um grupo é o afeto – não a razão. Em conjunto, não pensamos: sentimos juntos. E sentir em grupo, ainda mais quando o grupo é virtual e infinito, é o terreno fértil onde germinam tanto o riso quanto o ódio. Quem de nós, quando jovens, não fizemos algo em grupo, que sequer pensaríamos isoladamente, sozinhos?
O que antes se manifestava nas praças e estádios hoje se repete, em escala global, nas redes sociais. O feed é a nova ágora – mas uma ágora sem corpo e sem tempo, onde a emoção circula em alta velocidade e o pensamento, em baixa profundidade. O viral substituiu o valioso porque a lógica que o sustenta não é a da verdade, mas a da reação. Curtidas, compartilhamentos e indignações são o combustível da atenção, e a atenção é a moeda mais cara do século XXI. Surgem, assim, os milionários – literalmente – dos likes.
A ilusão coletiva começa com o entretenimento e termina na ideologia. Um meme inofensivo, uma piada, um desafio, podem se transformar em crença – e, mais adiante, em dogma. O filósofo Elias Canetti descreveu a massa como algo que deseja crescer e não tolera limites. No mundo digital, essa massa é algorítmica: cresce, se retroalimenta e se indigna sob medida. O que parece espontâneo é, na verdade, um espetáculo cuidadosamente calibrado para manter a emoção em ebulição.
Mas há um paradoxo. Nunca tivemos tanto acesso à informação – e nunca estivemos tão vulneráveis à manipulação emocional. O excesso de dados não produz clareza; produz ruído. A racionalidade se perde no excesso de estímulos. O scroll infinito é uma forma contemporânea de transe: deslizamos o dedo e, com ele, nossa atenção. A cada deslize, nos afastamos um pouco mais do pensamento e nos aproximamos da sensação. Pensar é o gesto mais subversivo em uma era que valoriza o imediatismo. A lucidez, agora, é resistência.
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