OPINIÃO
A vingança dos bastardos
Especial para A Tarde por Raul Moreira
Discussão das mais complexas, a questão do “pobre de direita”, essa “entidade” sobre a qual muitos se debruçaram ultimamente, tornou-se o ponto nevrálgico destes tempos em que tudo se transforma em premissa não pelas regras do chamado silogismo, mas, sim, pelo estardalhaço das proposições materializadas nas telinhas.
E o estardalhaço trata o “pobre de direita” como novidade, quando, na verdade, essa gigantesca categoria, por assim dizer, sempre existiu, aqui, ali e acolá, alhures, enfim, até porque a História nos ensina, que ele é o ponto de referência capaz de dar indicações a quantas anda a relação com aquele que o oprime, e a quem quase sempre almeja ser.
Naturalmente que as afirmações acima não inviabilizam as teorias e pregações alardeadas por muitos. O sociólogo Jessé de Souza, que acaba de lançar O Pobre de Direita: A Vingança dos Bastardos, por exemplo, entre outras explicações, credita o comportamento conservador do brasileiro pobre a uma espécie de mecanismo de defesa contra o “racismo” e as “humilhações do dia a dia”, ao mesmo tempo em que o fotógrafo Roger Bley invoca uma frase de Paulo Freire: “Raros são os camponeses que, ao serem 'promovidos' a capatazes, não se tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo”.
Pensemos, então, em Gramsci, no sentido daquilo que ele teorizou nos seus Cadernos, nos quais defendeu a ideia segundo a qual caberia à classe trabalhadora, organicamente, impor reflexões nacionais-populares e críticas capazes de gerar um nível de “consciência de sujeito”, o sujeito histórico, claro, algo que seria capaz de influenciar as instituições burguesas no trato da educação, principalmente.
Aliás, Gramsci deve estar a se remexer no túmulo, uma vez que essa apregoada “consciência de sujeito”, também teorizada por Marx, ainda que por outras vias, diluiu-se na Itália contemporânea: o pobre de direita, cada vez mais escravo das mentiras veiculadas pelas redes sociais, passou a apoiar o governo fascista de Giorgia Meloni de olhos fechados, o mesmo que lhe arranca os direitos básicos e ainda lhe impõe políticas neoliberais capazes de destruir o Estado de bem-estar social.
Ainda no tema “consciência de sujeito”, que antagoniza com o “pobre de direita”, há quem defenda que no Brasil, em certos períodos, a exemplo dos anos anteriores ao golpe militar de 1964, e em parte dos anos 1980, havia certa “consciência de classe”, por conta de os trabalhadores serem mais organizados.
E isso independia do maior grau de analfabetismo e do pouco acesso a direitos básicos, principalmente quando comparados aos dias atuais, mas, no geral, tal “organização” se fazia sentir na educação e na cultura, bem à Gramsci.
Sedução barata
Claro que tais afirmações não medem os percentuais dos “conscientes de classe”, quando comparados ao total da população brasileira à época. No entanto, há, a partir de uma apreciação dos resultados de algumas das eleições gerais, na época da ditadura militar e no período imediatamente posterior, dados objetivos a respeito de como se comportaram ideologicamente os brasileiros, e, curiosamente, muitos estados e regiões que eram de esquerda àqueles tempos, hoje, tornaram-se de direita, e vice-versa.
Por exemplo, o Nordeste, atualmente bastião do lulismo, votou maciçamente nos deputados federais e estaduais da Arena, o partido da ditadura, e, depois nos seus filhotes PDS e PFL entre os anos 1970 e 1998 – a exceção se deu em 1986 –, enquanto o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, atualmente estados nos quais a extrema-direita domina, eram locais onde a esquerda fincou as suas bandeiras de forma mais consistente no mesmo período.
Mesmo diante das aparentes evidências, seria prematuro afirmar, por exemplo, que a “consciência de sujeito” chegou ao Nordeste. E a dúvida parte do fato de que, à parte todos os ganhos propiciados nos governos de Lula, a quem boa parte do eleitorado se mantém fiel, quando se observa os desenhos dos Legislativos estaduais e federais, é flagrante o perfil mais à direita de ambos, uma tendência que cresceu nos últimos anos.
Sim, as explicações sobre a “institucionalização” do “pobre de direita” são vastas, algumas das quais já postas à mesa, muitas vezes de forma preconceituosa e elitista. No compilado, consensualmente, a gênese estaria no vazio deixado pelo fim das Comunidades Eclesiais de Base nas periferias a partir do final dos anos 1970, que acabaram gradativamente preenchidas pelos evangélicos, sem falar do tráfico e das milícias, donos dos territórios, enquanto a esquerda passou a pregar apenas para si.
Vale registrar que o fenômeno não é unicamente brasileiro, pois os “pobres de direita” abundam, e se deixam levar pela sedução barata de cafajestes como Bolsonaro, Trump e Milei, hábeis em oferecer-lhes ilusões vãs por meio das redes sociais: e la nave va em direção ao fim do mundo, restando saber se ainda haverá tempo para a vingança dos bastardos.
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