ARTIGOS
Do Cristo ao Farol, a esquerda verde-e-amarela fez sucesso e história
Confira o artigo de Pedro Menezes

Por Pedro Menezes

Contra a “PEC da Impunidade” e a anistia aos golpistas condenados pela STF, mas também em defesa da soberania nacional, uma densa multidão se espalhou do Farol ao Cristo e compartilhou a esperança de fazer história. Dito isso, antes de mais nada, comecemos pelo começo.
Numa terra conhecida pela impontualidade, o ato foi marcado para 9 horas, mas começou a crescer muito a partir das 10 e ficou quente, no sol e nas mentes, a partir das 11.
Pouco antes de meio dia, Wagner Moura já estava no trio de Daniela Mercury ao lado do rapper Baco Exu do Blues e outros artistas baianos. Formou-se ali, com o sol a pino, um clima de euforia. Uma mesma impressão se espalhou do asfalto ao trio: a manifestação superou todas as expectativas e foi um imenso sucesso.
Apesar do axé de Daniela Mercury e do circuito Barra-Ondina, o clima não era de carnaval. Se fosse, os ambulantes conseguiriam prever a alta demanda por água, cerveja e refrigerante. Bares e depósitos ficaram sem estoque. Quem costuma trabalhar ali não escondia o espanto. Muitos diziam nem se lembrar da última vez que a região viu tanta gente na baixa estação do turismo, ainda mais num ato político.
“Não teve uma van, um ônibus...”, me disse Éden Valadares, secretário de comunicação do PT nacional. Segundo ele, nem seria possível organizar qualquer coisa do tipo num protesto feito de sopetão.
Como é de costume em protestos de grande sucesso, tudo começou com uma revolta espontânea e fresca. O estopim veio da Câmara dos Deputados na semana passada. As convocações e mobilizações começaram na quinta.
Outro fator para o sucesso do protesto foi a pauta clara. Os manifestantes sabiam por que estavam ali, até porque dava pra ler em adesivos, camisas e outros acessórios — muitos vendidos por ambulantes que ficaram sem estoque.
Daniela Mercury sabia por que estava cantando, e fazia questão de lembrar. Wagner Moura sabia que, para o governo Trump, aquele protesto não era um carnaval. Mesmo assim, o intérprete de Capitão Nascimento se expôs.
Conversei com Baco Exu por poucos segundos e perguntei a impressão dele sobre o protesto, mas ouvi uma resposta sobre a “PEC da Blindagem” e os políticos que votaram a favor — “Tudo mau caráter! Quero que se explodam todos!”, teria dito Baco se estivesse escrevendo no A TARDE. Radiante e entre amigos, o músico preferiu xingamentos mais espontâneos.
Os humoristas Daniel Ferreira e Matheus Buente destacaram a anistia aos golpistas condenados pelo STF. Já o cantor André Macêdo focou na defesa da soberania e se emocionou com o uso político do trio elétrico, inventado por seu pai. Citando Osmar Macêdo, André disse que “o trio cresce a cada ano” e estava não só ali, mas também nos protestos bolsonaristas e na Marcha para Jesus.
Ou seja, foi um ato político contra a dita “PEC da Impunidade”, contra a anistia aos golpistas condenados pelo STF e em defesa da soberania nacional em assuntos domésticos, dadas as intervenções recentes de Trump. Conversei com dezenas de manifestantes e todos, absolutamente todos, disseram que estavam ali por alguma combinação dessas três pautas.
O sucesso histórico não se deve apenas ao conteúdo político do protesto, que tem apoio da maioria dos brasileiros e da esmagadora maioria dos baianos. A novidade foi também estética: o vermelho continuou presente, mas perdeu espaço para as cores da bandeira brasileira. Ainda mais notável foi a reapropriação de um dos maiores símbolos nacionais do Brasil: a amarelinha.
Aos 77 anos, o manifestante Nelson Lima bordou uma estrela do PT numa camisa antiga da Seleção. “Não sou filiado ao PT, mas desde sempre preferi a esquerda, o que não significa que sou sempre contra a direita”. Quando perguntei se a camisa queria comunicar que a Seleção também é dele, Nelson me interrompeu e disse: “A Seleção não é minha! É de todo mundo, dos brasileiros de todos os lados!”. Logo depois, começou a cantar “Pra Frente Brasil”, hino do tri.
“Até o pessoal da luta armada torceu pela Seleção de 1970”, me disse Joveniano Neto pouco depois. Aos 83 anos, já aposentado como professor de Ciência Política, ele vestia uma camisa verde com a seguinte mensagem em amarelo: “Blindagem = Bandidagem”. Na conversa, Joveniano demonstrou especial preocupação com a anistia a golpistas, disse que “eles não são patriotas, os verdadeiros patriotas somos nós”.
“Conheço muitos presos políticos que torceram pelo tri”, disse Joveniano em seguida, explicando que integrou a Comissão da Anistia — “mas aquela anistia não tem nada a ver com essa aí”, ressaltou em seguida.
Ao lembrar da torcida de presos políticos pelo tri, Joveniano se referia a uma famosa história que exemplifica o peso da amarelinha. Alguns militantes de esquerda até prometeram torcer contra a Seleção, iniciando um debate político que acabou rápido. Quando a bola rolou, todos entenderam que o Brasil de Médici não apagava o Brasil de Gerson, Rivellino, Jairzinho, Pelé e Tostão.
Por falar em reapropriação de símbolos patrióticos, muitos ambulantes ganharam dinheiro vendendo objetos com a mesma mensagem. Amanda, uma goiana de 29 anos que mudou recentemente para Salvador, comprou ali um boné rosa com a inscrição “O Brasil é das Brasileiras”. Thaís Reis, de 44, preferiu uma versão amarela com “aqui não é Disney” escrito em verde.
O vermelho se fez presente em algumas camisas, mas continuou em muitos acessórios. Simélia, 51, foi ao protesto com a camisa da Seleção, mas fez questão de incluir óculos com lentes vermelhas em formato de estrela. No fim das contas, até os vendedores de acessórios politizados ficaram sem estoque.
Assim como tantos outros, Simélia vestiu a amarelinha com orgulho e abriu um sorriso ao falar do tetra protagonizado pelo baiano Bebeto. A mesma lembrança foi citada por Jarvis, que foi ao ato com seus dois filhos menores e seu compadre Eduardo. Quando falei de 1982, os dois fecharam a cara e fugiram do assunto, mas voltaram a sorrir em seguida.
A cara fechada durou pouco. Durante quase todo o tempo, o que se viu foi um mesmo sentimento compartilhado por Jarvis, Eduardo, Simélia, Thaís, Amanda, Joveniano, Wagner e Daniela. Depois de um longo inverno, a esquerda voltou a sentir o perigoso sentimento da esperança. Só o futuro nos dirá o resultado desta gostosa ilusão.
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