OPINIÃO
Entre choro, risos e muito mais
Artigo de Jolivaldo Freitas sobre livro de Mário Kertész

Por Jolivaldo Freitas*

Interessante é que quando vi a capa do livro de Mário Kertész a foto dele me remeteu a uma ilustração com o rosto de um asteca que ri e chora ao mesmo tempo e não sei onde vi isso, coisa lá do México. Você conhece o Mário. Quem não conheço o Mário? Pessoa de hipocampo privilegiado, cheio de gavetas e compartimentos que guardam coisas do arco-da-velha. Ele vinha driblando todos os fãs faz anos, escondendo o jogo. Todo mundo “exigindo” que ele escrevesse sua autobiografia. Como gato pulava de banda ou se fingia de paisagem.
Mário, no íntimo, sabia de sua “obrigação” de colocar no impresso sua história. Suas histórias. Seus “causos”. Não bastava ficar servindo pílulas na Rádio Metrópole por que isso só fazia era atiçar cada vez mais a angústia de quem queria saber da vida dele, por saberem da riqueza do seu viver e de tudo o que ele vivenciou que é parte intrínseca da história da Bahia. Mário fez história como administrador, político, prefeito ou como o cara que revolucionou o rádio no Brasil com programas únicos, formatos personalizados e que hoje servem de modelo para muitos e muitos do meio, da mídia.
Seu livro "Riso - Choro: E tudo o que vem no meio", como se diz na Bahia, é sua cara. Uma biografia que ele não a classifica assim. Sabe-se que uma autobiografia, quando bem executada, transcende o mero relato pessoal para se tornar um espelho de sua época. O livro leve e solto desse importante comunicador vem ser precisamente esse tipo de obra rara: um painel vívido e multifacetado que entrelaça com maestria a história individual e a coletiva. Como bem definiu Stefan Zweig, “a verdadeira história não é a das massas, mas a dos homens”, e é na história de Kertész que encontramos um retrato macro do Brasil, em especial da Bahia, desde meados do século XX até os dias atuais.
A narrativa na primeira pessoa, onde ele se dá ao “desplante” de usar até palavrões, o que chama o leitor para a simplicidade oral que quebra a formalidade estrutural, o que deixa o depoimento mais gostoso e do jeitinho saborosamente baiano, começa com a imagem que ele tem da avó, que até merecia um capítulo alongado. Mulher retada. A seguir vem um precioso registro etnográfico: a origem e a consolidação da comunidade judaica na Bahia. Eu nem sabia que os judeus tinham quebrado o pau por aqui na segunda quadra do século passado. Os capítulos iniciais vão registram a memória familiar, servindo como um importante documento sobre os processos migratórios e a formação da identidade cultural baiana, mostrando como esses grupos se integraram ao tecido social sem perder suas singularidades. É aí que se percebe uma essencial qualidade do livro: a capacidade de ser profundamente particular e universal.
Mário Kertész então nos conduz, com um texto fluido e cativante, por sua infância feliz em Salvador. A adolescência no bairro da Barra. Suas memórias de criança e adolescente são mais que nostalgia; são um registro sensorial de uma Salvador que oscilava entre a tradição e a modernidade. O autor demonstra como é do seu hábito para todos que o ouvem e apreciam suas falas um talento narrativo que remete à máxima de Gabriel García Márquez: “a vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como recorda para contá-la”. Seu relato é uma paleta de cores tingido pela afetividade, mas não perde o fio da verdade histórica.
O livro ganha camadas significativas ao abordar, sem subterfúgios, temas que antigamente seriam considerados espinhosos como os saudosos bordéis de Salvador, os bregas. Tema que não causa mais escândalo, sendo tratado no livro mais como sociologia que revela os costumes, a hipocrisia e a complexidade das relações sociais de uma época. Em cada página a obra se torna “adorável” por sua honestidade até mesmo, digamos, brutal revelação, pois, como diria Nelson Rodrigues, “toda a autobiografia é, em última análise, um ato de coragem ou de vanity”. Mário escolhe a coragem.
Sua escalada na política, culminando no cargo de prefeito de Salvador durante um período turbulento, é um case de ciência política e história. O autor não se coloca como herói, mas como um personagem ativo e, por vezes, contraditório, dentro de um sistema complexo. Suas reflexões sobre o poder, os acordos e os bastidores são um manual não escrito da política brasileira também com personagens baianos como ACM e claro que este não podia faltar. As digressões e os “mexericos” emprestem sabor e veracidade ao relato, humanizando o político de sucesso que o foi e o hoje importante e reconhecido jornalista de muita inteligência, perspicácia e imenso mailing, mostrando que, nas entrelinhas dos pequenos fatos, é que se escondem as grandes verdades.
Interessante sua breve passagem pela França. Acrescenta uma dimensão cosmopolita e intelectual à narrativa, enquanto sua consagração como voz influente na Rádio Metrópole solidifica seu papel como um dos grandes formadores de opinião na Bahia. São nessas transições entre o local e o global, entre a política e a comunicação, no afago aos avós, pai, mãe, irmãos, filhos e netos que a autobiografia mostra sua abrangência.
Por fim, a obra atinge seu ápice filosófico quando o autor se debruça sobre a vida e a morte. Estas reflexões, maduras e comoventes, conferem profundidade humana ao projeto literário. Ele não tem medo de mergulhar na própria vulnerabilidade, oferecendo ao leitor uma jornada existencial completa.
"Riso - Choro: E tudo o que vem no meio" é, portanto, muito mais que uma autobiografia. É um documento histórico indispensável para se compreender a História do Brasil e a História da Bahia a partir de uma perspectiva humana, vibrante e totalizante. Uma leitura adorável, necessária e, acima de tudo, profundamente humana. Para lembrar as palavras de Machado de Assis, “a vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir gloriosamente”. O autor, assim, cumpre uma parcela de obrigações com a história e com seus admiradores. É uma obra indispensável para quem gosta de informação e saber. Precisamos de mais.
*Jolivaldo Freitas é escritor e jornalista. Membro da Academia de Cultura da Bahia e da Associação Bahiana de Imprensa.
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