ARTIGOS
Um Natal de memória
Confira artigo de Jolivaldo Freitas

Por Jolivaldo Freitas

Em Salvador antiga, o Natal não caía do céu como um presente embrulhado pela Amazon ou Mercado Livre. Ele nascia devagar, da terra e do suor, subindo as ladeiras em procissões. Dezembro, trazia um cheiro diferente sobre o casario colonial. O açúcar queimando e ganhando formas gosto nas casas da Rua do Tijolo, Pelourinho, Conceição da Praia, Santo Antônio Além do Carmo. Dezembro agitava as pedras da rua Vala, depois se chamaria Baixa dos Sapateiros; na Cidade Baixa, que era apenas onde fica o Comércio, uma agitação própria. Não era a pressa de última hora dos shoppings.
O comércio tradicional em agitação de formigueiro humano, cidade pequena onde se encontrava o conhecido e cheia de pausa um abraço, uma fofoca na porta da venda. Os vendedores passavam nas ruas mercando galinha, porco, carne de boi, requeijão, sabão, roupas, sapatos e tudo o mais. Todo ambulante parecia saber cantar e mercava seu produto na base da cantoria. As famílias aumentavam os débitos nas cadernetas e falavam da carestia nas portas das vendas. Mas nada podia faltar para a família na noite e no dia de Natal.
Dia 25 era dia de comer as sobras e pegar o que restou do peru e fazer um escaldado. Alguém brincava dizendo que não queria pois era “cadáver de peru”. Na véspera do Natal era dia inteiro de faxina nas casas, tinir das louças ou cerâmicas, lavadas nos quintais. Nas fazendas e engenhos o trabalho era das escravas (e, depois, das empregadas). Cada casa era um universo de aromas. Tinha bacalhau sendo dessalgado em bacias de alumínio areadas. Frutas da época tomavam as mesas: caju, manga, umbu, tamarindo, melancia, jaca. Dos armários saíam as frutas cristalizadas – cidra, laranja, figo – que se preparava com semanas de antecedência. Ah! O que dizer quando subia o aroma profundo do peru ou do leitão assando lentamente no forno à lenha, anúncio de uma fartura que era celebrada com religião.
O coração do Natal soteropolitano batia no compasso dos sinos das Igrejas. A Missa do Galo era o grande evento social e espiritual desde os tempos do Império quando as famílias ricas mostravam suas riquezas e até seus escravos portavam joias e muito ouro. As famílias inteiras desciam as ladeiras a pé, tomavam as ruas. Havia a elegância que o momento exigia mesmo para as famílias mais pobres que colocavam suas roupas de festa. “Boa noite”, “feliz Natal”, “viu só quem chegou?”. A missa em si, solene, em latim, era um ritual que todos conheciam de cor. A emoção vinha no momento da paz, quando o “Paz do Senhor” era trocado não com um aceno, mas com abraços apertados, entre conhecidos, amigos e até desafetos – naquela noite, as rixas eram suspensas.
Acabada a missa a cidade ganhava um novo burburinho. As ruas, iluminadas apenas por lampiões a gás e pelas luzes que vazavam das janelas, se enchiam de grupos que voltavam andando para casa, conversando alto, rindo. A ceia era uma ode à miscigenação baiana. Sobre a toalha de linho imaculada, descansavam o bacalhau assado com batatas e azeitonas (herança portuguesa), o arroz de haussá (feito com carne seca, toucinho e hortelã, legado africano), a farofa de ovos com castanha de caju e o cuscuz de milho. Cerveja preta. Vinho. Comia-se devagar, conversava-se muito.
Os presentes, se houvesse, eram simples e práticos: uma roupa nova para a criança usar no dia seguinte, um livro, um jogo de talheres. O gesto de dar era mais importante que o objeto. Papai Noel era uma figura distante, de cartões postais europeus. O dia 25 era de visitar amigos e parentes. A cidade acordava tarde. Era um Natal sem plástico, sem pisca-pisca elétrico. O Natal devia ser - tudo que escrevi até agora é tirado de memórias alheias – realmente emocionante sem apelo televisivo e do comércio dos shoppings. Mas Natal é bom de qualquer jeito. Mesmo para quem não é cristão.
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