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A TARDE BAIRROS

Festa da Pituba: tradição, celebração e a história de um bairro em transformação

O apogeu e o declínio da tradicional Festa de Nossa Senhora da Luz na Pituba, um retrato das transformações urbanas e sociais de Salvador

Divo Araújo

Por Divo Araújo

17/09/2025 - 9:01 h | Atualizada em 17/09/2025 - 9:28
Festa da Pituba - Data: 27/01/94
Festa da Pituba - Data: 27/01/94 -

Durante boa parte do século XX, a Festa da Pituba foi um dos principais marcos do calendário popular de Salvador. Dedicada a Nossa Senhora da Luz, padroeira do bairro, reunia missa solene, procissão marítima, lavagem das escadarias e uma programação profana que movimentava a orla em fevereiro.

Considerada uma das festas de largo mais animadas da cidade, refletiu também as transformações da Pituba: de bairro de pescadores e veranistas a polo da classe média alta. A trajetória de apogeu e declínio da festa revela como as mudanças na capital baiana afetaram suas tradições culturais.

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O publicitário e pesquisador Nelson Cadena, autor do livro Festas Populares da Bahia: Fé e Folia, explica que a lavagem da Pituba nasceu de uma forte devoção mariana — a veneração que católicos nutrem por Maria, mãe de Jesus.

“O dia 2 de fevereiro é a data de todas as Nossas Senhoras da Luz no mundo: Nossa Senhora da Candelária, Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Purificação. Todas remetem ao mesmo evento litúrgico”, explica.

No caso da Pituba, observa ele, o culto começou a partir de uma imagem de Nossa Senhora encontrada por pescadores na praia. “A primeira procissão ligava Amaralina à Pituba pelo mar. O retorno era feito a pé até a Capela de Nossa Senhora dos Mares, em Amaralina, que ainda existe dentro do quartel (onde fica o Comando da 6ª Região Militar do Exército) localizado no bairro”, relata.

Imagem ilustrativa da imagem Festa da Pituba: tradição, celebração e a história de um bairro em transformação
| Foto: Cedoc A TARDE

A pesquisadora e jornalista Cleidiana Ramos, autora de uma tese de doutorado em antropologia na Ufba sobre as festas de verão em Salvador, confirma que um dos momentos mais aguardados da festa era a procissão marítima, conduzida pelos pescadores de Amaralina. Mas acrescenta que, além da imagem da padroeira, eles também carregavam a imagem do Menino Jesus de Praga, associado simbolicamente ao orixá Logunedé, filho de Oxum, reforçando o caráter plural e sincrético da celebração.

Arrabalde da capital

Cleidiana conta que o evento, inicialmente religioso, começou a ganhar força no período em que a Pituba ainda era vista como um arrabalde da capital, assim como o Rio Vermelho e Itapuã. Nesses bairros litorâneos, a vida girava em torno das temporadas de veraneio, quando famílias da elite deixavam o centro antigo de Salvador para passar o verão na orla.

A pesquisadora lembra que festas de bairro como a da Pituba se consolidaram a partir da interação entre a população local e a comunidade flutuante que chegava durante o verão. “Havia uma relação muito forte entre moradores fixos e temporários, que compartilhavam desde a água para abastecimento até o cotidiano do lugar”, destaca.

A presença dos veranistas durante todo o período mais quente foi fundamental para o fortalecimento da festa. Como a cidade ainda não tinha uma boa malha rodoviária ou de transporte, essas pessoas permaneciam na orla atlântica até meados do Carnaval.

E as celebrações se tornavam momentos de convivência e entretenimento, como observa a pesquisadora: “Essas festas rapidamente se integraram à vida local. E, no final do século XIX e início do século XX, já eram relativamente conhecidas”.

Data: 29/02/1987
Data: 29/02/1987 | Foto: Valdir Argolo/ Cedoc A TARDE

No caso da Pituba, o coração da festa era a antiga igreja de pedra dedicada a Nossa Senhora da Luz, posteriormente substituída pelo templo atual.

Ali se realizavam novenas, missas e a lavagem das escadarias. Um dos momentos mais aguardados era a procissão marítima, conduzida pelos pescadores da região, que levavam a imagem da santa.

Além da dimensão religiosa, a celebração rapidamente ganhou destaque pelo lado profano: baianas e mães de santo circulavam entre barracas, enquanto bandas e cortejos animavam as avenidas próximas.

Caldeirão cultural

Com o tempo, a Festa da Pituba passou a abrigar diversas manifestações culturais. Ranchos e ternos, que estreavam na Lapinha em 6 de janeiro, seguiam para o bairro.

A programação incluía blocos infantis, concursos de fantasia, corridas de bicicleta, espetáculos pirotécnicos e até a “Tarde da Bossa Nova”, promovida pelo músico Waldir Serrão.

A Rádio Sociedade organizava desfiles carnavalescos, enquanto o mestre Caiçara comandava rodas de capoeira. Quase em frente à praça, o Clube Português promovia o tradicional Baile de Iemanjá.

O jornalista Antônio Diniz recorda com saudade os tempos áureos da festa. “Quando era menino, acompanhava a novena com minha madrinha na Praça Nossa Senhora da Luz, que na época ficava repleta de barracas e de um parque infantil, com roda-gigante e outros brinquedos”.

Movimento de saída da procissão em 1972
Movimento de saída da procissão em 1972 | Foto: Cedoc A TARDE

Já adolescente, Diniz participava do cortejo, que à época já saía do Largo de Amaralina, organizado pelas baianas locais, e que incluía cavalos, carroças enfeitadas, batucadas e toda a animação típica das festas populares, lembrando o cortejo da Lavagem do Bonfim. “Era uma farra”.

O também jornalista André Curvello, ex-secretário estadual de Comunicação da Bahia, é outro morador antigo que recorda com carinho a festa da Pituba, que movimentava todo o bairro. “Era ali na praça Nossa Senhora da Luz. Tinha um parquinho, uma roda-gigante e até uma mulher que se transformava num macaco, era muito engraçado”, lembra.

Tudo, segundo ele, acontecia com muita organização, sob responsabilidade de uma comissão formada pelos próprios moradores do bairro, que na época era predominantemente composto por casas amplas.

Curvello também recorda a tradicional alvorada: “Cinco horas da manhã, aquela queima de fogos, aqueles foguetes acordando todo mundo, marcavam o início da festa”, diz.

O militar reformado da Aeronáutica, Dorival Teixeira dos Santos, que aos 76 anos segue morando na Pituba, lembra como a festa marcou sua vida desde a infância. “Eu fazia carro de tubo e reunia uma rapaziada em torno de mim”, recorda.

Ele lembra bem da procissão, das cavalgadas, carroças enfeitadas e elementos tradicionais como palha e bambuzal. “A festa reunia moradores de toda a região e tinha apoio dos comerciantes locais”, destaca, ressaltando a intensa participação da comunidade na organização dos festejos.

Festa da Pituba em 1973
Festa da Pituba em 1973 | Foto: Cedoc A TARDE

Mudança de rumo

A festa começou a mudar quando a própria Pituba ganhou uma nova face. Com a rápida verticalização e o crescimento populacional, perdeu sua essência comunitária.

Segundo Cleidiana, a urbanização acelerada, a abertura de grandes avenidas, como a Manoel Dias, e a ocupação por pessoas de fora, sobretudo do Sul e Sudeste, que vieram morar na Pituba para trabalhar no Polo Petroquímico, transformaram a dinâmica do bairro.

“A Pituba vira rapidamente de um lugar de habitações horizontais para habitações verticais, os grandes prédios”, explica, ressaltando que a festa, antes central na vida dos moradores, deixou de se encaixar nesse novo perfil social e urbano.

Cleidiana, em seu estudo, enxerga uma camada mais profunda no processo de decadência da festa. Segundo ela, o que o povo chamava de festa popular era visto com desconfiança e até desprezo por parte da elite baiana.

Desde o século XIX, intelectuais como Nina Rodrigues criticavam essas manifestações, associando o comportamento dos negros em festas de rua a sinais de “psicopatia” ou de “barbarismo”.

Data: 14/02/1966
Data: 14/02/1966 | Foto: Cedoc A TARDE

Para a pesquisadora, esse olhar elitista contribuiu para que celebrações como a da Pituba nunca fossem plenamente legitimadas, apesar da força comunitária que reunia católicos, povos de santo e diferentes expressões culturais. Aliado a isso, a aceleração da urbanização da Pituba marcou um ponto de inflexão para a festa.

“A lavagem de Nossa Senhora da Luz, que tomava a praça e as avenidas do bairro com novenas, barracas, cortejos e música até tarde da noite, começou a ser vista como um incômodo para a nova dinâmica urbana”.

Esvaziamento simbólico

Para Nelson Cadena, outro fator decisivo para o declínio da Festa da Pituba foi a introdução dos trios elétricos na década de 1970. Com a chegada desse novo formato, diz ele, a celebração mudou de clima: a agitação aumentou, a multidão ficou mais animada e o consumo de bebida alcoólica cresceu.

“E a violência começa a se instalar”, lembra Cadena, destacando que a presença de garrafas de vidro e o consumo de álcool contribuíram para confrontos e acidentes, tornando o ambiente inseguro para os moradores e frequentadores.

Cadena acredita que a festa foi vítima de um processo de descaracterização. A pressão dos moradores contra a violência, somada ao crescimento dos trios, fez com que o evento perdesse a essência comunitária e se transformasse em algo artificial.

“O fim da festa, para mim, foi quando tiraram da praça. Ali deixou de ser a festa da Pituba e virou apenas mais um evento”, avalia.

Festa da Pituba - Data: 03/02/88
Festa da Pituba - Data: 03/02/88 | Foto: Arlindo Felix/Cedoc A TARDE

Segundo Cadena, o deslocamento da festa para o Jardim dos Namorados representou um esvaziamento simbólico. O espaço improvisado, distante da Praça Nossa Senhora da Luz, não possuía a mesma identidade nem a ligação histórica com a comunidade local.

“Aí era uma festa sem alma. Perdeu a alma a festa”, resume o pesquisador, ressaltando que a mudança rompeu com o vínculo entre moradores, tradições religiosas e manifestações culturais que haviam sustentado a festa ao longo das décadas.

Pouca gente sabe, mas um traço da festa original ainda sobrevive em Salvador: Nossa Senhora da Luz continua sendo celebrada em 2 de fevereiro, com uma missa solene na igreja e uma pequena procissão marítima que parte da praia da Pituba. Na ocasião, pescadores aproveitam para deixar discretamente suas oferendas a Iemanjá.

Um evento organizado pela comunidade

A Festa da Pituba sempre foi um reflexo da vida comunitária do bairro. Para o educador social Valdemar Eugênio Osana de França, que chegou ao bairro nos anos 1970 ainda criança, os festejos eram o coração da convivência local.

“Vivi grande parte da minha vida na paróquia e acompanhei tudo que a Pituba tinha de bom naquela época, que era uma outra Pituba, formada principalmente por casas, alguns prédios e muita vida comunitária”, lembra.

O que diferenciava a festa, segundo Eugênio, era justamente a participação ativa dos moradores. “Famílias inteiras se envolviam na organização do evento: barracas se estendiam da Rua Rio Grande do Sul até a metade da Rua Pernambuco, e receitas tradicionais como caruru e feijoada eram preparadas nas casas dos moradores”, conta ele.

Data: 15/02/1977
Data: 15/02/1977 | Foto: Cedoc A TARDE

O jornalista André Curvello, antigo morador do bairro, complementa a imagem: “As pessoas saíam arrumadas, de todas as idades. Havia barracas de churrasquinho de gato, barracas de jogos e o parque do Velho Jaime, com roda gigante e atrações diversas.Tudo era organizado por uma comissão formada pelos próprios moradores”.

Antonio Diniz, outro jornalista e frequentador antigo, lembra as primeiras experiências afetivas da festa ainda na infância: “Eu ia para a festa com a minha madrinha, ficava no parque, assistia à novena”, conta.

Segundo ele, o evento tinha dois destaques: a lavagem, na quinta-feira, e, na segunda-feira, após o último domingo da festa, o presente que os pescadores da Pituba preparavam para Iemanjá.

O apoio da igreja também foi determinante para o sucesso da festa. Padre Miguel, figura central para a comunidade, se misturava aos pescadores e acompanhava cada etapa da celebração.

“Eu aprendi a gostar de gente com ele. Ele não perguntava sua origem, apenas acolhia”, lembra Eugênio.

Curvello também recorda: “Padre Miguel muitas vezes brincava nas barracas armadas ao redor da praça. Também desenvolvia projetos de recuperação de crianças em Amaralina, com grande participação dos moradores”.

Personagens da festa

Entre os personagens que animavam a festa estavam Lourival Medrado, representante comercial da Turma de Conexões Tigre, que se tornou líder de barraqueiros, e o pai de André Curvello, José Curvello. “Meu pai sempre teve relação forte com a festa e chegou a escrever artigos defendendo a Lavagem da Pituba”, lembra André.

Eugênio reforça o clima de proximidade: “A amizade entre pessoas do bairro também era marcante. A vida cotidiana da Pituba e suas festas criavam vínculos afetivos fortes. Minha mãe participava ativamente, inclusive nas barracas, e o clima de comunidade era intenso”.

A Pituba antiga, conta Diniz, era marcada por muita vegetação e grandes espaços abertos. Ele recorda a Fazenda de Joventino Silva, que deu origem ao bairro. “Vinha da Rua Pará, ali por dentro da Rua Amazonas. Havia muito cajueiro, mangueira, coqueiros. Eu subia nos coqueiros, tirava coco e vendia para comprar ingresso para a Fonte Nova. Era a Pituba bucólica, cheia de vida”.

Para o jornalista, a festa da Pituba hoje é lembrança nostálgica. “Foi triste ver a festa perder força, mas também há gratidão por ter vivido tudo aquilo. A Pituba antiga, com suas feijoadas na casa de moradores como Doutor Seixas, barracas, encontros e diversão, deixou histórias que permanecem na memória”.

Dourival Teixeira dos Santos, militar reformado e morador antigo da Pituba, também lembra como o evento reunia a comunidade. “Todo mundo se envolvia na organização da festa, e a animação era garantida, sempre na paz”, lembra.

“A rua era fechada, e o pessoal montava tudo com alegria e dedicação. Era um carnaval particular da Pituba, que unia tradição, música, comida e festa, e que marcou minha vida de forma inesquecível”, recorda.

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