A TARDE BAIRROS
História e fé: Cidade Baixa é essência cultural, histórica e vibrante de Salvador
Cidade Baixa representa a alma da capital baiana

Por Priscila Dórea

Na Cidade Baixa de Salvador o tempo não corre, ele navega pelas águas da Baía de Todos-os-Santos. É ali, entre o azul do mar e o fulgor de bairros cheios de personalidade e histórias próprias, que a capital da Bahia melhor mostra a sua cultura, sabor, ritmo, memória e fé.
Seja no Comércio, onde o Elevador Lacerda liga dois mundos, na fé que leva todos à Colina do Bonfim, nos ventos que abraçam em Humaitá ou nos encantos singulares de cada dos outros mais de dez bairros da região, a Cidade Baixa é a pura essência da capital baiana: generosa, lutadora, vibrante e cheia de histórias.
No bairro do Comércio - que para muitos marca o “começo” da Cidade Baixa - a mistura de antigo centro financeiro, história e muito movimento, dá à região um sentimento muito singular. Banhado pela Baía de Todos-os-Santos, o Comércio abriga o Porto de Salvador, sedes de secretarias municipais, museus, casas de cultura, lojas, restaurantes, bares, lojas e inúmeras construções históricas.
Dentre elas, alguns ícones da cultura baiana, como o Mercado Modelo, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia (Padroeira da Bahia) e o Monumento à Cidade do Salvador - obra de Mário Cravo que também é conhecida como Fonte da Rampa do Mercado.
“Acho que o maior encanto da Cidade Baixa está na forma como ela consegue misturar Salvador toda sem deixar que vire bagunça. Você tem parte histórica, tem comércio, tem turista, tem samba, tem pagodão, tem praia, tem casa, tem prédio, tem feira… Lembro que quando era criança, quase tudo que a gente precisava fazer, fazia na Cidade Baixa: comida para um almoço em família era na Feira de São Joaquim, meus exames oftalmológicos e o trabalho de meus pais eram no Comércio, as folgas de domingo eram na Praia da Ribeira e por aí vai”, conta a vendedora Maria Cecília Santana (38), moradora do bairro do Uruguai.

Há 35 anos com a loja São Judas Tadeu no Mercado Modelo, o empreendedor José Raimundo Silva (59) - conhecido como Helmas -, explica que a força cultural e histórica da Cidade Baixa o fez amar trabalhar com comércio e turismo.
“Acabo entrando em contato e me ligando à pessoas do país inteiro e do mundo inteiro também. Descubro muito sobre o mundo assim. O movimento varia de ano para ano, mas Salvador é muito turística e tenho sentido esse interesse maior das pessoas em conhecer a Cidade Baixa. Além disso, o Mercado Modelo é um lugar que gosto demais, sempre cheio de história e gente", afirma Helmas.
Outro ponto forte da região está na sua capacidade de continuar surpreendendo, mesmo sendo bem visitada. Há quase quatro anos morando em Salvador, a agente de viagem Yuli Peralta (42) - natural de Cartagena, na Colômbia -, conta que já conheceu muitos lugares na capital baiana, mas a cidade ainda lhe surpreende.
“Mesmo na baixa estação, a cidade é muito procurada pelos turistas e o mais interessante é que sempre há o que descobrir aqui. Recentemente, por exemplo, uma amiga me chamou para almoçar e achei que íamos em um restaurante, quando percebi estava, durante o intervalo de almoço, com os pés na água do mar. Foi uma experiência fantástica, simples e surpreendente”, conta.

A praia? Da Preguiça, 11 minutos à pé do Mercado Modelo. A amiga que levou Yuli lá? A microempreendedora Emily Bispo dos Santos (26), que estava em meio a seu percurso entre a Cidade Baixa e a Alta quando encontrou com a reportagem de A TARDE.
Moradora do bairro de Castelo Branco, Emily trabalha no Pelourinho. Porém, sejam os insumos para preparar seus quitutes ou o lugar onde passa os momentos de lazer, tudo ela faz na Cidade Baixa.
"Todos os dias, de terça a domingo, saio de Castelo Branco e vou até a Feira de São Joaquim comprar queijo, carvão, peixe, carne e etc. É de fácil acesso, com ônibus para toda a cidade, preços acessíveis e você encontra tudo", explica.
Já para o lazer, Emily nem hesita ao responder: Ribeira. "A Praia da Madragoa é a minha preferida em toda a cidade. É calma, a água é maravilhosa, tem depósito de bebidas e muitas opções de comida. Se eu pudesse escolher outro lugar pra morar, seria na Ribeira. Lá é tranquilo, tem várias praias, casas lindas, mercados e a famosa sorveteria. Me sinto segura lá, sabe? É um lugar que tem paz, comida boa, parece ser maravilhoso de viver”, confessa Emily.
Localizada na Península de Itapagipe, a Ribeira faz parte da Cidade Baixa e é um dos bairros mais encantadores e simbólicos da capital baiana... Mas o nosso tour chega lá já, já.
Alma ferroviária e popular de Salvador
Antes, vamos falar um pouco sobre a área que é a alma ferroviária e popular de Salvador, e que tem dois patronos: os bairros da Calçada e Mares. Separados por poucas ruas e unidos por séculos de história, um breve passeio por ambos nos conecta direto ao passado.
Foi na Calçada que Salvador se abriu para o transporte sobre trilhos: de um lado o Plano Inclinado Liberdade-Calçada, uma obra de arte da engenharia moderna, e do outro a Antiga Estação Ferroviária da Calçada e sua fachada imponente, um marco arquitetônico que resiste ao tempo.
Já Mares, vizinho imediato da Calçada, leva o cheiro da maresia em seu nome e é mergulhado no comércio vindo do mar e da terra. Próximo à Feira de São Joaquim e ao Terminal Marítimo, é ponto de passagem e abastecimento, onde o cheiro de peixe fresco e o som das embarcações fazem parte da paisagem, mas se mistura com o colorido do comércio de rua. É em Mares que está também a imponente Igreja de Nossa Senhora dos Mares, uma construção em estilo neogótico que levou 26 anos para ficar de pé e que chama atenção já na virada da esquina.
“São muitas as construções da Cidade Baixa que tem uma história interessante”, afirma a autônoma e moradora do bairro do Bonfim, Daniela dos Santos. “E não estou falando só das mais conhecidas, como a Igreja de Mares e a Basílica do Bonfim, mas de prédios mais novos, como o azul perto da Feira de São Joaquim que era sede da Petrobrás e outros abandonados que já foram muito importantes em algum momento. Quando você vive na Cidade Baixa, sempre vai ter alguém mais velho te contando história sobre a região", afirma.

A verdade é que, embora muitos dos monumentos da região não estejam em destaque turístico, eles guardam memórias antigas da expansão urbana e da vida popular de Salvador.
"Ao contrário da área entre o Comércio e até um pouco depois da Feira de São Joaquim, que possui muitos aterros e passou por muitas mudanças desde a fundação de Salvador e que na época da fundação da cidade era coberto pela água do mar, essa outra parte da Cidade Baixa mudou muito pouco ao longo dos séculos. Sim, há aterros que foram feitos para viabilizar a estrada de ferro e algumas indústrias, mas o que mudou de lá para cá é muito pouquinho. Isso é bem perceptível na maré rasa da Praia do Cantagalo, enquanto ali perto, no 2º Distrito Naval, a água pode chegar a 15 metros de profundidade", explica o arquiteto e urbanista Ernesto Carvalho, vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU-BA).
Turismo religioso
E essa pouca mudança segue até o bairro de Roma... Mas até certo ponto. É muito real a atmosfera mais interiorana que Roma e seu vizinho Bonfim, têm até hoje, mas a mudança que as Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) trouxeram para a região são inegáveis. Referência em saúde e assistência social - lá também está o Hospital da Mulher -, o bairro de Roma é o lar dos muitos trabalhos ligados a Santa Dulce dos Pobres, seu Santuário e seu Memorial, além do Hospital Santo Antônio, que integra o atendimento das Obras. A OSID fortaleceu o turismo religioso da Cidade Baixa e atraiu, em 2025, a professora Alessandra Oliveira (34).
Natural do Ceará, faz 15 anos que Alessandra mora no Rio Grande do Norte, e em sua primeira visita à cidade de Salvador, resolveu misturar um roteiro mais clássico - Pelourinho, Mercado Modelo e museus -, com o roteiro religioso para conhecer o Santuário e o Memorial do Anjo Bom da Bahia, e a Basílica do Senhor do Bonfim.
"Apesar de não sermos religiosas, visitar esses lugares faz parte da história e da cultura. Sou de cidade litorânea, então busco mais o turismo histórico e Salvador tem uma riqueza impressionante”, explica ela, que veio à capital baiana com a noiva Izadora.
A escolha por visitar a Basílica foi pela região do Bonfim já está marcando presença no roteiro turístico tradicional, enquanto os lugares dedicados à Santa Dulce foram sugestão de um amigo.
"E me emocionou profundamente. A filosofia franciscana e a história da primeira santa brasileira me tocaram. É um turismo gratuito que realmente impressiona, pois é cheio de significado", reflete.
E isso é o que parece melhor definir toda a Cidade Baixa: tudo ali carrega muito significado. Um bom exemplo é a Igreja e Hospício Nossa Senhora da Boa Viagem, a primeira capela dedicada à essa invocação mariana no Brasil - a construção teve início em 1712 e foi finalizada em 1743.

No início, mais do que um lugar de fé, a igreja era um lugar de acolhimento, e servia de hospedagem para marinheiros e viajantes, além de dar assistência aos doentes. Lar das festas de Bom Jesus dos Navegantes (31 de dezembro e 1º de janeiro) e de Nossa Senhora da Boa Viagem (15 de agosto), o bairro da Boa Viagem se destaca na Cidade Baixa pelo fervor durante os festejos e finais de semana de sol, e pela calmaria na maioria dos outros dias.
"Muitos falam de mil e uma praias calmas que dizem ter por Salvador, mas quero é prova que alguma é tão tranquila quanto a da Boa Viagem", afirma o aposentado Almir de Santana (71), frequentador da região.
Quem muito concorda com o senhor Almir, é a estudante e técnica de enfermagem, Ana Júlia Bacelar (22). Moradora do Caminho de Areia, a sua praia preferida é a da Boa Viagem.
"A água lá é linda, limpa e ótima para banho. Costumo circular pela Pedra Furada também, Bonfim e Ribeira, onde sempre tem uma moquequinha boa, né? Além do tradicional sorvete. Tomar um drink na Ribeira também é uma delícia. Pra mim, a Cidade Baixa é o melhor lugar que existe. Tudo é perto, a alimentação é mais em conta, e mesmo com seus desafios, tem muito mais prós do que contras. Aqui, a gente vive com leveza”, afirma.
Pôr do sol especial
Respirando história e acolhendo o presente com leveza e dignidade, a Ponta do Humaitá nos entrega uma das mais belas vistas do pôr do sol da capital baiana. Ponta da Península de Itapagipe, a área do Humaitá se confunde com a do bairro Monte Serrat, mas juntos eles abrigam um dos conjuntos arquitetônicos mais poéticos da cidade: a Igreja e o Mosteiro de Monte Serrat, o Farol de Monte Serrat e a casa mais antiga de Salvador reconhecida pelo Instituto Histórico e Geográfico da Bahia: um casarão de 1619 localizado na Ponta de Humaitá, conhecido como "Velho Casarão".

A região é um dos lugares mais charmosos e contemplativos de Salvador e a doméstica Carine Bastos (47) ganhou a sua primeira visita e vista do pôr do sol de presente no 47º aniversário.
"Nasci e fui criada em Salvador, mas nunca tinha conhecido a Ponta de Humaitá e olha que em todos os meus aniversários assisto à missa das 15h na Basílica do Bonfim, que é aqui pertinho. Meu amigo me trouxe como um presente e fiquei apaixonada. Já até avisei que a partir de agora quero vir aqui pelo menos uma vez no mês", conta.
A experiência, explica ela, também mostrou o quão pouco a gente às vezes conhece a nossa própria cidade. "Além do Bonfim, frequento a praia da Ribeira também, mas depois de ver esse pôr do sol, fiquei com uma vontade enorme de conhecer outros lugares da Cidade Baixa. Imagina só o que não devo estar perdendo?", aponta Carine.
E um bom guia ela já garantiu. O amigo que lhe apresentou a Ponta de Humaitá foi o motorista de aplicativo Jorge Silva do Espirito Santo, que antes mesmo de morar no bairro do Bonfim, já descia muito para a Cidade Baixa para curtir.
A mudança de olhar ao se tornar morador, no entanto, foi grande. “Quando eu vinha só de passeio, achava meio repetitivo. Mas quando vim morar, os nativos começaram a me mostrar lugares incríveis e eu me deslumbrei com o ambiente. A rotina virou privilégio: banho de mar antes do trabalho, almoço em casa, pôr do sol no Humaitá. É até suspeito eu dizer, mas acho que é o lugar mais lindo de se morar em Salvador", afirma.
Apaixonado pela Cidade Baixa, ele explica o quanto o valor histórico e afetivo da região tem um papel importante na forma como ela é hoje.
"Aqui é um lugar de gerações, entende? Casas que passam do avô para o pai, do pai para o filho. É difícil conseguir morar, os valores são altos, mas abrir a janela e ver o mar é um privilégio. No século XVII e XVIII, quem morava na Graça e na Barra, vinha veranear aqui e isso diz muito sobre essa parte da cidade, principalmente por ainda continuar um lugar tão bonito, apesar do tanto de tempo que passou", reflete.

A famosa Ribeira
E esse destino para veranear tão requisitado por moradores da parte nobre de Salvador se concentrava muito nela: a encantadora e apaixonante Ribeira. O bairro nasceu no século XVI como uma aldeia de pescadores, mas logo se transformou em um dos destinos mais desejados da elite baiana durante o verão - na década de 1930, famílias tradicionais disputavam espaço à beira-mar, atraídas pela tranquilidade e pela brisa constante. Foi nesse período, no ano de 1931, que a famosa Sorveteria da Ribeira foi fundada e hoje é um dos ícones afetivos da cidade.
As ruas tranquilas e as casas coloridas da Ribeira continuam com seu ar boêmio até hoje, com uma rica e requintada variedade gastronômica, que dá cheiro e sabor ao mar tranquilo, em meio a finais de semanas de praia lotada e tardes de muito samba.
Da feijoada à moqueca, a Ribeira é Salvador em estado de contemplação, e assim como toda a Cidade Baixa, possui um encanto próprio que a distingue de outros bairros.
"É um lugar maravilhoso para viver. Quem não mora na Cidade Baixa, vem conhecer, se apaixona e sempre volta. Me sinto privilegiado de poder trazer meus amigos, minha família, e viver num ambiente tão agradável e familiar assim”, afirma Jorge Silva.
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