A TARDE BAIRROS
No coração de Salvador, Pelourinho pulsa entre memória e resistência
Foi na região do Centro histórico que a cidade começou a tomar forma, entre ladeiras íngremes, igrejas monumentais e o vai e vem de culturas
Por Joana Lopo

Salvador nasceu no alto, com vista para o mar e história pulsando em cada esquina. No centro desse nascimento está o Pelourinho — não apenas um largo colorido de casarios coloniais, mas o coração histórico e cultural da capital baiana. É lá que a cidade começou a tomar forma, entre ladeiras íngremes, igrejas monumentais e o vai e vem de culturas que, ainda hoje, ressoam pelos becos e vielas de pedra “cabeça de nego” - chamada assim porque eram carregadas na cabeça dos escravizados para calçar as ruas da cidade.
Importante corredor entre a cidade alta e a cidade baixa, o Pelourinho foi se formando após a consolidação do Terreiro de Jesus e do Cruzeiro de São Francisco. Como em outras cidades coloniais portuguesas, os conventos e mosteiros precisavam de espaço para seus edifícios, hortas e pomares. E foi justamente ao redor desses espaços religiosos que a cidade começou a se adensar. “Ali foi o início de tudo. Nossa primeira ‘Times Square’. Um palco de encontros entre Brasil, África, Europa e até o Sul da Ásia”, resume o historiador Rafael Dantas.
Isto porque, no século XVI, segundo o historiador, os jesuítas foram responsáveis por estruturar o Terreiro de Jesus. Logo em seguida, os franciscanos se estabeleceram na região do Cruzeiro de São Francisco. A partir daí, a ocupação da cidade avançou progressivamente para além do atual Largo do Pelourinho, impulsionada pela presença de outras ordens religiosas e irmandades, como os carmelitas, as irmandades do Santíssimo Sacramento, do Boqueirão, do Rosário e, mais adiante, até Santo Antônio Além do Carmo, o que atraía missionários de muitos cantos do mundo.
O Pelourinho tornou-se, então, um importante corredor de circulação entre a cidade alta e a cidade baixa, especialmente pela Ladeira do Taboão, uma das mais antigas vias de Salvador. Essa condição geográfica contribuiu para que o bairro assumisse relevância desde os primeiros tempos da colonização.
Inicialmente habitado por famílias abastadas, o bairro sofreu transformações sociais ao longo do tempo. Com a mudança da elite para outras regiões, os sobrados passaram a ser ocupados por uma classe média composta por trabalhadores livres, comerciantes e imigrantes europeus — sobretudo portugueses e espanhóis. Ainda assim, a presença negra foi marcante desde o princípio, com forte atuação social e religiosa, especialmente através da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que ergueu uma das mais simbólicas igrejas do bairro, marco da resistência em uma sociedade escravocrata.
Para o historiador Rafael Dantas, o Pelourinho simboliza o centro vital da cidade de Salvador a partir do século XIX, abrigando atividades comerciais, religiosas, políticas e culturais. Ele destaca que o Pelourinho é, tecnicamente, um largo — uma praça — dentro do bairro conhecido oficialmente como Centro Histórico. Seus limites vão da Fundação Jorge Amado até a Igreja do Rosário dos Pretos. Já o Centro Histórico, enquanto região urbana, estende-se da Praça Municipal até o Carmo, incluindo a Praça Castro Alves.

Dantas explica que, historicamente, a área foi o primeiro núcleo planejado de Salvador, seguindo orientações do governador-geral Tomé de Sousa e com traçado de Luiz Dias. Antes da criação de bairros formais, a cidade era organizada por freguesias eclesiásticas.
O Pelourinho, embora nunca tenha sido uma freguesia oficial, integrou freguesias importantes, como a da Sé e a do Santíssimo Sacramento. O nome “Pelourinho” se firmou porque foi nesse largo que se instalou, pela última vez, a coluna de madeira — símbolo do poder colonial português, em que ocorriam punições públicas, sobretudo contra pessoas escravizadas. Após a independência e a derrubada desse objeto, o nome permaneceu e passou a denominar a região. “O que chamamos hoje de Pelourinho foi o centro nevrálgico da formação cultural e urbana da Bahia e do Brasil”, afirma o historiador.
De acordo com a doutora em arquitetura e urbanismo, Gina Marocci, o Centro Histórico de Salvador foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1984 e, no ano seguinte, reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco. Com 0,8 km² de extensão, vai do Mosteiro de São Bento até o Forte Santo Antônio Além do Carmo. Já o Centro Antigo de Salvador, que abrange o Centro Histórico, compreende uma área de 7 km², incluindo 11 bairros como Barris, Tororó, Nazaré, Saúde, Barbalho, Macaúbas, parte da Liberdade, Santo Antônio e Comércio.
Mas o Centro Histórico só começou a ser configurado em 1549, com a chegada de Tomé de Sousa e a fundação da cidade. O pelourinho — símbolo do poder colonial, usado como instrumento de punição — foi instalado primeiro na atual Praça Municipal, depois no Terreiro de Jesus, até se fixar definitivamente no largo que herdou o nome e a memória, como explica Marocci. Com o tempo, o espaço cresceu para além dos muros da cidade, incorporando o Terreiro de Jesus, o Taboão e suas ladeiras, impulsionado pela presença dos jesuítas e dos carmelitas.

Economia açucareira e a ascensão do café
A urbanista explica que “a região chamada de Pelourinho é marcada pela arquitetura dos sobrados coloniais, que abrigavam a elite entre os séculos XVII e XVIII”. Com o declínio da economia açucareira e a ascensão do café em outras regiões do país, o perfil da população mudou. A elite se deslocou e imóveis passaram a ser alugados ou sublocados, acelerando o processo de degradação.
No início do século XX, a situação se agravou. “Marginais e prostitutas foram empurrados para prédios da região, como resultado de ações higienistas do poder público, o que indicava a postura oficial de abandono desse espaço”, conta Marocci. Apesar disso, o Centro Histórico nunca perdeu sua relevância simbólica e cultural.
A partir de 1938, segundo ela, com o tombamento do largo do Pelourinho pelo SPHAN (hoje Iphan), começaram as primeiras ações de preservação. Na década de 1960, o Estado criou o IPAC, que passou a atuar em parceria com o Iphan, promovendo restaurações e formando moradores como mão de obra especializada. As propostas, nos anos 1980, incluíam habitação coletiva e preservação da presença dos moradores originais.
Mas a década seguinte mudou tudo. “Na década de 1990, o foco modificou-se totalmente, pois o objetivo foi retirar a população local para forçar uma mudança de uso, o que chamamos de gentrificação. Não deu certo, claro”, avalia Marocci. Ela defende que “um dos caminhos seria o investimento em habitação social, que dialogue com quem ainda mora na região”.
Também aponta a importância do uso misto dos prédios, prática comum no período colonial, com comércio no térreo e moradia nos andares superiores. “Diversificar o comércio local é essencial. Precisamos de padarias, mercadinhos, farmácias”.
Origem do núcleo urbano
De acordo com Marocci, a divisão urbana na época colonial não era por bairros, mas por freguesias. O Pelourinho fazia parte da Freguesia do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo, enquanto a mais antiga era a da Sé, origem do núcleo urbano. Com o tempo, as freguesias se tornaram distritos e, mais tarde, bairros.
Ela explica que por meio do decreto municipal nº 32.791/2020, o Pelourinho está inserido no bairro do Centro Histórico, que se estende da Praça Castro Alves ao Largo do Carmo. No entanto, a delimitação oficial do tombamento é diferente. O Centro Histórico é, por sua vez, parte do Centro Antigo de Salvador, uma área de 7 km² que engloba 11 bairros da cidade alta e da cidade baixa — entre eles Nazaré, Barris, Tororó, Saúde, Barbalho e Santo Antônio Além do Carmo.
A ocupação do Pelourinho sempre teve forte presença negra. Mesmo sob o domínio de senhores e comerciantes europeus, foi ali que os pretos — escravizados ou livres — ergueram a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, marco da resistência e da fé. Para o historiador Rafael Dantas, esse protagonismo cultural é o que faz do lugar uma referência nacional: “O Largo do Pelourinho, mais do que ter sido um local de elite, se tornou referência cultural, de patrimônio e arquitetura. É o cartão de visita de Salvador”.

Por isso, o escritor, jornalista, poeta, compositor e ativista cultural, Clarindo Silva, conta que a região é responsável por concentrar boa parte dos equipamentos e negócios culturais da capital baiana, funcionando como epicentro das expressões artísticas, históricas e arquitetônicas da cidade. O Pelourinho, em especial, é um dos maiores símbolos dessa herança. Cenário de movimentos culturais, palco de shows internacionais — como o icônico videoclipe de Michael Jackson com o Olodum — e reduto de expressões religiosas, o largo se mantém como território de resistência e memória.
“Precisamos preservar para perpetuar”
Com 70 anos de vivência no Pelourinho, Clarindo Silva é testemunha de décadas de transformações no coração do Centro Histórico de Salvador. “É bom falar do Pelourinho. Para mim envolve muito tempo, são só 70 anos! E ao longo desses 70 anos vi grandes transformações. Vi o processo de esvaziamento do Centro Histórico”, resume, com a autoridade de quem viveu o auge e o declínio de um dos principais cartões-postais do Brasil.
Hoje, embora tombado pelo Iphan desde 1984 e reconhecido pela Unesco como Patrimônio da Humanidade em 1985, o Centro Histórico vive um paradoxo: símbolo de identidade nacional e, ao mesmo tempo, vítima de esvaziamento urbano. Por isto, Clarindo Silva denuncia: “Temos mil prédios arruinados, a Baixa dos Sapateiros em degradação, o Cine Tupi e o Cine Jandaia abandonados, até a casa onde nasceu Carlos Marighella está esquecida. Imagine aí, tem tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”.

Mas ele insiste no potencial do lugar. “O Pelourinho é o coração da cidade e dessa nação chamada Brasil. Aqui temos escola, batalhão de segurança, câmara, a primeira escola de medicina do país, a catedral basílica e uma das sete maravilhas do mundo, que é a Igreja de São Francisco”. Para Clarindo, “a sociedade baiana precisa ocupar esse lugar. Precisamos unir forças para resgatar a verdadeira dignidade dele”.
E mesmo depois de tantas subidas e descidas, a chama da memória permanece viva. Clarindo Silva encerra com um apelo carregado de esperança: “Todo mundo quer conhecer o Pelourinho, mas muita gente daqui nem vem porque tem o estigma de perigoso. Mas ele é seguro, é histórico, é nosso. Precisamos preservar para perpetuar”.
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