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A TARDE BAIRROS

Pelourinho: lugar de sonho e de luta, a cara de Salvador

Conheça trajetórias de pessoas que simbolizam o espírito do Pelourinho no que há de mais fundamental: coragem, teimosia e sonho

Por Leonardo Coutinho

18/06/2025 - 7:11 h
Clarindo Silva, dono do cantina da Lua
Clarindo Silva, dono do cantina da Lua -

No coração do Centro Histórico de Salvador, onde passado e presente se cruzam em becos de pedra e vozes ancestrais, o Pelourinho pulsa com a força de quem constrói, vive e resiste a partir da própria existência.

Neste especial, reunimos trajetórias de figuras que personificam a alma do bairro: de mestres da capoeira a empreendedoras culturais, de batalhadores do hip hop a artistas plásticos e barbeiros, todos com raízes fincadas no chão simbólico do Pelô.

São vidas atravessadas pela arte, pela luta cotidiana e pela reinvenção de um território que insiste em ser mais do que vitrine turística — um lugar de pertencimento.

Com histórias diversas, eles têm algo em comum: transformam seus ofícios em cultura viva, seus corpos em memória e seus sonhos em permanência. “O Pelourinho tem que ser casa, não vitrine”, resume uma das vozes deste retrato coletivo que traça, com afeto e contundência, o perfil de quem mantém viva a alma do Centro Histórico.

Clarindo da Cantina da Lua

Símbolo da luta e resistência pelo centro histórico, Mestre Calá ensina: "preservar para perpetuar". Com sua voz firme e o coração inteiramente entregue ao Pelourinho, Clarindo Silva é mais do que um empresário, jornalista ou escritor: é um elo entre a história e o futuro do Centro Histórico.

Figura emblemática da cultura baiana, ele insiste na importância de intensificar ações voltadas ao território — para além das reformas estruturais, mas, sobretudo, com a volta do povo às ruas, praças e casarões. “Sem gente, não há alma”, afirma, com a certeza de quem verá o bairro pulsar ainda mais com música, afeto e memória.

Preservar é garantir que a cultura siga respirando, adverte ele enquanto ensina sobre a vida, integridade e senso de propósito. Clarindo sonha ver os 40 anos do tombamento do Centro Histórico celebrados com ruas ocupadas, inaugurações e a alegria enchendo as pessoas de esperança.

“O Pelourinho deve ser um lugar vivo, de alegria e trabalho”, diz, com o brilho de quem nunca deixou de acreditar. Seu chamado é claro: revitalizar não é só um gesto técnico, é um ato de amor.

Clarindo Silva, dono do cantina da Lua
Clarindo Silva, dono do cantina da Lua | Foto: Shirley Stolze / Ag. A TARDE

3º Round - Circuito de Rima Improvisada

Há mais de uma década, o Pelourinho é palco do 3º Round — Circuito de Rima Improvisada, uma das principais engrenagens da cena de Hip Hop no Norte e Nordeste.

Mais que uma batalha de MCs, o projeto se firmou como um ecossistema de formação, produção cultural e afirmação política da juventude negra e periférica da Bahia. Criado por Cosca — rapper, educador e articulador cultural — ao lado da produtora e pesquisadora Pyedra Barbosa, o 3º Round mobiliza artistas de diversas linguagens e já revelou nomes como Baco Exu do Blues, DJ Nai Kiese, Ravi Lobo e Bl4ck MC.

Em 2024, realizou sua primeira edição nacional, reunindo os 16 melhores rimadores do país em plena Praça das Artes, com apoio do Ministério da Igualdade Racial, e encerramento comandado pela banda Afrocidade. Para Cosca, o projeto é “um quilombo urbano” que transforma vidas com base em aquilombamento, identidade e resistência: “O que construímos é real. E é urgente que isso seja tratado com o respeito e o investimento que merece.”

Foi nesse cenário pulsante que a produtora cultural e pesquisadora Pyedra Barbosa se encontrou. “O rap verdadeiramente me atravessou quando produzi o 3º Round pela primeira vez, em 2018, no Quincas Berro d’Água”, relembra. Fascinada com a vibração coletiva e a potência de MCs como Chagas, declarou ali sua escolha de vida: “A partir daquele momento, desejei dedicar minha vida a essa cultura, pois era nela que eu verdadeiramente acreditava.”

Desde então, Pyedra se tornou peça-chave na expansão do projeto. Ao lado de Cosca, fundou a Kalifa LXXI — produtora que potencializou o alcance do 3º Round e consolidou a atuação das juventudes negras nas artes urbanas da Bahia. Hoje, ela também se dedica à pesquisa acadêmica sobre o protagonismo das mulheres negras na gestão cultural do Hip Hop baiano, sem jamais perder os pés na rua e no front.

Cosca, por sua vez, carrega uma trajetória que vem das raízes do Baile Black Bahia, do Subúrbio de Salvador, onde sua mãe já dançava nos anos 70 ao lado de figuras como Nelson Triunfo. Foi na Posse Quilombos Clã, no Nordeste de Amaralina, que ele compreendeu o Hip Hop como filosofia, técnica e política.

“Minha trajetória é marcada por essa certeza de que a cultura preta salva.” Hoje, define o 3º Round como “uma universidade livre” que ensina mais que rima: ensina sobrevivência, identidade e mobilização. O futuro que projeta é coletivo — e ousado. “Estamos para realizar um sonho antigo que é termos um centro cultural... um polo de referência nacional do Hip Hop no cenário cultural baiano.” Para isso, sonha com uma nova edição do 3º Round BR em 2026 e com o reconhecimento de que, como ele afirma, “não olhar com seriedade para o 3º Round é escolher reforçar um ciclo de abandono histórico.”

3ª Round batalha circuito de rima improvisada
3ª Round batalha circuito de rima improvisada | Foto: Shirley Stolze / Ag. A TARDE

Mônica Kalile de A Mulherada

Mônica Kalile nasceu, cresceu e construiu sua história no Pelourinho, onde o afeto comunitário e a urgência de resistir moldaram sua trajetória como advogada, gestora pública e empreendedora cultural. Fundadora do Instituto A Mulherada, criado para empoderar mulheres negras através da arte e da autonomia econômica, ela também dirigiu espaços como o bar Calundu e a Lan House Pelourinho Virtual, sempre conectando cultura e acolhimento.

“Eu sou do Pelô — nasci numa dessas casas aqui subindo”, conta Mônica, que transformou cada etapa da vida em um ato de reivindicação e reinvenção. Hoje, comanda ainda o A Mulherada Café, espaço que busca, como ela diz, “trazer o Pelourinho de volta ao baiano, com preço justo, afeto e memória”.

Seu compromisso com o território está estampado na pele e nos projetos: é moradora há 60 anos e recusa o exílio da gentrificação e do turismo excludente, apostando num futuro em que “o Pelô seja casa e não vitrine”.

Mônica Kalile dona do Mulherada Café
Mônica Kalile dona do Mulherada Café | Foto: Shirley Stolze / Ag. A TARDE

Mestre Já Morreu

José Milton Pereira de Santana, conhecido como Mestre Já Morreu, tem 67 anos e é natural de Maragogipe (BA). Chegou ao Pelourinho em 1974, já praticante de capoeira, e passou a integrar a tradicional roda local, da qual assumiu a liderança em 1980 com a saída do antigo mestre para a Argentina.

Desde então, mantém viva a prática no Terreiro de Jesus, diariamente, com outros mestres como Macaco e Mira, enquanto também dá aulas gratuitas no bairro da Palestina, atendendo cerca de 50 jovens sem qualquer apoio governamental. Filho de uma lavadeira e único sobrevivente entre 23 irmãos, Mestre Jararaca sustenta-se com a capoeira e com a confecção de berimbaus. “A gente sobrevive com isso aí. Os turistas chegam, ajudam a gente”, relata. Com orgulho, destaca: “Quem me levou pra apresentar minha cultura fora do país foi a própria capoeira.”

Mestre Já Morreu
Mestre Já Morreu | Foto: Leonardo Coutinho | Ag. A TARDE

Anastácia: uma vida entre tesouras e cultura no Pelourinho

Morador do Pelourinho há mais de 45 anos, Anastácia construiu sua trajetória entre cortes de cabelo, blocos afro e laços comunitários. Vinda do interior da Bahia, com pouca escolaridade e muita vontade de trabalhar, enfrentou uma série de empregos duros até descobrir, quase por acaso, o talento para cortar cabelo - e nunca mais parou.

Foi no improviso de um corte feito para um amigo que encontrou sua vocação. A profissão, além de garantir sustento, tornou-se uma forma de pertencimento e expressão dentro do Centro Histórico. “A cultura reabilita o ser humano”, afirma, com a convicção de quem vive a cultura diariamente, não como espetáculo, mas como rotina.

Participante de oficinas de dança no Teatro Castro Alves e atuante nos blocos afros do carnaval, Evangelhista viu o Pelourinho se transformar ao longo das décadas. Mesmo diante das dificuldades, mantém viva a esperança: “O Pelourinho pode voltar a ser um lugar vivo, de alegria e trabalho”. É nessa crença que ele segue, dia após dia, com a tesoura na mão e os pés fincados na memória de um lugar que ainda pulsa.

Anastácia, cabeleireira
Anastácia, cabeleireira | Foto: Leonardo Coutinho \ AG A Tarde

Zane Correia, artista plástica e artesã

Ao longo dos seus 64 anos, construiu uma vida inteira entre tintas, tecidos e resiliência no Pelourinho, onde expõe e pinta peças desde meados da década de 1980.

“Comecei amarrando o tie-dye pra poder curtir um embalo com roupa nova no sábado”, relembra, com humor e firmeza. Moradora de Nazaré e filha de São Caetano, ela enfrentou a informalidade com arte e transformou calçadas em ateliês vivos — resistindo às intempéries da falta de estrutura, à ausência de apoio e ao apagamento de quem constrói o cotidiano do Centro Histórico.

Zane Correia, artista plástica e artesã
Zane Correia, artista plástica e artesã | Foto: Leonardo Coutinho | Ag. A TARDE

“A gente não tem banheiro digno, nem depósito, mas tem teimosia pra fazer dar certo”, diz, entre pinceladas e camisetas. Viúva de um companheiro de luta e trabalho, sonha em adaptar sua produção ao ambiente digital, sem sair do chão de pedra onde fincou sua liberdade. Zane é paisagem viva, mas não aceita ser apenas cenário: quer reconhecimento de quem sustenta com arte a alma do Pelô.

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