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A TARDE BAIRROS

Pernambués: história e resistência no coração de Salvador

A origem do bairro remonta ao período escravocrata, quando as terras da região faziam parte do imenso Quilombo do Cabula

Por Joana Lopo

21/05/2025 - 5:00 h
Vista geral de Pernambués e arredores
Vista geral de Pernambués e arredores -

Por trás das avenidas movimentadas, dos shoppings reluzentes e dos novos empreendimentos que moldam a paisagem de Salvador, há bairros que carregam em sua formação um legado de resistência e ancestralidade. Pernambués é um deles. Localizado em uma posição estratégica da capital baiana — entre os centros comerciais do Iguatemi, Salvador Shopping e Bela Vista, e ladeado por importantes vias como a Avenida Paralela e a Rótula do Abacaxi —, o bairro é hoje um dos mais populosos de Salvador. Mas por trás das estatísticas e da urbanização acelerada, pulsa a história de um território de raízes profundas: uma terra quilombola.

A origem de Pernambués remonta ao período escravocrata, quando as terras da região faziam parte do imenso Quilombo do Cabula, núcleo de resistência negra que ocupava vastas áreas cobertas por mata atlântica e que chegou a abrigar fazendas de produção, como a de laranja, posteriormente abandonadas e ocupadas por negros libertos e indígenas. É desse entrelace de histórias que nasce Pernambués, um bairro cujo próprio nome tem origem indígena e significa “mar feito à parte”.

Hoje, com mais de 65 mil habitantes, segundo o último censo do IBGE (2010), Pernambués é o terceiro bairro mais populoso de Salvador, atrás apenas de Itapuã e Pituba. É um ponto de convergência entre o passado histórico e o desenvolvimento urbano acelerado. Mas como um antigo quilombo se transformou em um dos bairros mais vibrantes e complexos da capital baiana?

De acordo com o ex-vereador de Salvador e ativista Luis Carlos Suíca, Pernambués nasceu como um desdobramento do Quilombo do Cabula, um dos maiores redutos de resistência negra na Bahia. "O quilombo do Cabula pode ser considerado a raiz do quilombo de Pernambués, já que o território onde se encontra o bairro fez parte do grande quilombo do Cabula, o qual abrigava uma fazenda produtora de laranja. Após o seu declínio, foi sendo ocupada pelos negros quilombolas que deram origem ao bairro", explica.

A historiadora Francisca de Paula reforça que a região era originalmente habitada pelos tupinambás, mas, com a chegada dos africanos escravizados e libertos, formou-se uma rede de resistência. "Pernambués e Saramandaia estão bem próximos da praia. A presença dos povos indígenas predominava no litoral, e com a chegada dos povos negros, que ali se organizaram e interagiram, foram constituindo os arraiais e, a partir disso, as fazendas e chácaras", conta.

O historiador Alfredo Matta acrescenta que, no passado, Pernambués sequer era considerado um bairro independente. "Era tudo Cabula. Todos os 17 bairros que compõem essa região formavam a grande Cabula. Pernambués era uma divisão disso, que depois virou bairro, com personalidade própria."

Final de linha do bairro de Pernambués
Final de linha do bairro de Pernambués | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

O boom populacional

Se no período colonial e imperial Pernambués era um refúgio para negros e indígenas, foi a partir da década de 1970 que o bairro passou por uma explosão demográfica. "As obras que desde a década de 70 trouxeram um grande contingente de pessoas do interior do estado para trabalharem nas construções fizeram aumentar consideravelmente o número populacional da comunidade", relata Suíca.

Isto fica evidente no censo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, que registrou 64.983 habitantes, com uma distribuição étnica marcante: 27,77% se autodeclararam pretos, 54,69% pardos e apenas 15,97% brancos. Esses números refletem a herança afro-indígena do bairro, que ainda hoje mantém tradições culturais e religiosas fortemente enraizadas.

Antes do levantamento feito pelo IBGE, acreditava-se que a Liberdade, por ser considerado um “Território da Cultura Afro-Brasileira”, como reconheceu o Ministério da Cultura, era o bairro com a maior população de negros em Salvador. No entanto, dados do Censo Demográfico de 2010 e, posteriormente, do Censo de 2022 do IBGE, desmistificaram essa crença. As pesquisas revelaram que o bairro de Pernambués possui, na verdade, o maior número absoluto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas.

Sobre o crescimento desordenado, os dados do IBGE também mostraram desafios. O Censo 2022 identificou Pernambués como uma das maiores favelas do Brasil em número de domicílios, ocupando a 11ª posição no ranking nacional e a 2ª em Salvador, com 18.662 residências estimadas. A renda per capita gira em torno de R$ 1.000 a R$ 1.400 mensais, um reflexo das desigualdades que persistem mesmo em meio ao desenvolvimento.

Avenida Thomaz Gonzaga em Pernambués
Avenida Thomaz Gonzaga em Pernambués | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

Cultura, religião e resistência

Apesar das dificuldades, Pernambués é um celeiro de cultura e religiosidade afro-brasileira. A turismóloga Rosa Sales enfatiza: "Pernambués ainda é um quilombo, apesar do desenvolvimento. Podemos ver o reflexo disso no comércio, por meio dos tabuleiros de frutas, quitandas, o candomblé, que é outra herança dos negros neste bairro com a maior população negra de Salvador".

No candomblé, Pai Ubiratan, líder religioso de Nação Ketu, conta que sua casa de axé tem mais de 50 anos. "Aqui era a minha mãe que comandava, era Iêda de Iemanjá, mas ela descansou e estou à frente do terreiro. Tem muito terreiro ainda por aqui, tem de Nação de Angola também. Nós demos continuidade."

Embora não haja um número oficial, estima-se que existam entre 30 e 70 terreiros de matriz africana em Pernambués. Paralelamente, as igrejas evangélicas também se expandiram, com cerca de 40 a 80 templos espalhados pelo bairro, mostrando a diversidade religiosa da comunidade.

Orgulho de ser de Pernambués

A efervescência cultural do bairro vai além da religião. O cantor de rap Negro Davi destaca: "Aqui tem de tudo: gari, motorista, dançarina, advogado, professor, cantor de rap. Tem muitos talentos aqui. O problema é que mostram muito o lado ruim, mas não o lado bom. E aqui tem muita coisa boa. Viver em um bairro negro tem todas essas questões. Precisamos ter mais solidariedade, uns ajudando aos outros."

O problema é que mostram muito o lado ruim, mas não o lado bom. E aqui tem muita coisa boa.
Negro Davi - cantor de rap

O Grupo Artístico de Pernambués (GAP) é outro exemplo dessa potência criativa. Criado por moradores e amigos do bairro, o projeto transforma vidas por meio da educação e da arte. "O bairro cresceu em todas as áreas: cultural, religiosa, independência, musical e educacional", ressalta Suíca.

Para a coordenadora geral do Terno Rosa Menina, Isabel Nascimento, fundado por seu pai em 1945, lembra das histórias contadas por sua mãe, Luiza Nascimento, sobre as Ganhadeiras de Itapuã e da Boca do Rio, que passavam por Pernambués vendendo quitutes. "Era uma época muito boa, brincávamos muito na rua com toda segurança. Hoje o bairro cresceu muito, mas continua sendo um ótimo lugar para morar."

Isabel, do Terno Rosa

Foto: Olga Leiria / Ag. A TARDE

Data: 14/05/2025
Isabel, do Terno Rosa Foto: Olga Leiria / Ag. A TARDE Data: 14/05/2025 | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

Apesar dos avanços, o bairro ainda enfrenta desafios como a falta de infraestrutura e o estigma associado às comunidades periféricas. Mas, como ressalta a arte-educadora Jedjane Mirtes, "é preciso aceitar de onde viemos e dizer que podemos ir além. Pernambués tem se afirmado mais, tem discutido a sua negritude. Aqui é o meu lugar, embora esteja aprendendo a lidar com as contradições do bairro. Mas sou fruto dessa comunidade e me orgulho disso."

Em meio aos seus becos, ladeiras, centros culturais e terreiros, Pernambués segue sendo uma comunidade viva, vibrante e plural. Um bairro que guarda na pele, na memória e nas manifestações culturais, o orgulho de uma história forjada na luta, na fé e na esperança. Uma Salvador que não está apenas nas praias e cartões-postais, mas que pulsa com força nas suas raízes quilombolas e na resiliência do seu povo.

Como bem define Suíca: "Hoje é possível perceber na comunidade de Pernambués a força dos moradores em buscar seus direitos, a lutar por uma comunidade melhor, mais organizada e o orgulho com a identidade cultural afro-brasileira. E é essa força que continua a moldar o futuro do bairro”.

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