A TARDE BAIRROS
Pituba: a história do bairro contada por seus moradores
Conheça histórias de moradores do bairro da Pituba, em Salvador

Por Leonardo Coutinho

Na orla atlântica de Salvador, onde o mar se encontra com o crescimento urbano, o bairro da Pituba se constituiu a partir de uma trajetória que mescla a natureza exuberante com a chegada do progresso.
De uma área de dunas e coqueiros, o bairro se transformou em um dos mais dinâmicos e populosos da cidade, refletindo as ondas de desenvolvimento que moldaram a paisagem soteropolitana.
Neste espaço, coexistiram sítios e fazendas, veraneio e urbanização, criando um mosaico de memórias que, hoje, se materializa em avenidas movimentadas e edifícios modernos. São as camadas de uma história que emerge do chão da antiga "Pituba dos coqueiros" e se expressa na vitalidade de um bairro que pulsa entre o residencial e o comercial.
A Pituba é o resultado de um plano que converteu a beleza natural em um núcleo de desenvolvimento, e a sua identidade se constrói diariamente na vivência de quem a habita.
“É um lugar onde ainda consigo encontrar um peixe fresco na beira da praia, lembrar dos babas de juventude” e, ao mesmo tempo, “comprar um livro por dois reais num sebo qualquer — como se a cidade me lembrasse, a cada esquina, que tradição e futuro não precisam se excluir”, dizem as vozes de frequentadores antigos misturadas as do recém-chegados, que viram ainda assim a paisagem se transformar, mantendo, contudo, a essência de ser um lar para quem busca a vida perto da natureza sem abrir mão da conexão com a cidade.

Conheça moradores da Pituba
Ras André Guimarães, 45 anos - Do Rio à Pituba
Vindo de São João de Meriti, no Rio de Janeiro, Ras André encontrou na Pituba um território que reorganizou sua forma de viver a cidade.
Há seis anos radicado no bairro, ele valoriza a possibilidade de articular as diferentes demandas da vida sem precisar atravessar longas distâncias ou enfrentar o caos típico das metrópoles.
Para quem já viveu a tensão cotidiana da Baía de Guanabara, o contraste é claro: aqui, a tranquilidade e a sensação de segurança se tornaram parte fundamental da experiência urbana. A migração, para ele, não foi apenas uma mudança de endereço, mas uma mudança de perspectiva. É nesse deslocamento que se revela a potência do bairro.
“A diversidade que existe nesse território é muito potente: articular um lugar que tem teatro, que você pode andar de bicicleta, que facilmente você pode ter informação sobre as coisas que estão acontecendo no bairro no contato com vizinhos e frequentadores.”

A presença da ciclovia, ligando a orla ao miolo mais comercial da Pituba, é vista como símbolo desse equilíbrio. Ela facilita a circulação, conecta universos diferentes e promove um cotidiano em que o trabalho, o lazer e a vida comunitária se encontram.
Para o fluminense, essa integração tem ainda um valor maior: a proximidade com a natureza. O mar, especialmente, se apresenta como sinal de qualidade de vida. É no contato direto com as ondas, com o vento e com a areia que a rotina se torna menos pesada e a cidade, mais respirável.
Entre os episódios que marcam sua inserção no bairro, Ras André guarda com carinho a lembrança dos pescadores próximos à Praça Nossa Senhora da Luz. Certa vez, ao se preparar para surfar, foi advertido por eles de que o local estava cheio de redes. A conversa que começou como aviso logo se transformou em troca. No final, recebeu até um peixe de presente.
Para ele, mais que uma anedota, a cena revela a hospitalidade de uma comunidade que, mesmo em meio à rotina dura da pesca, abre espaço para o encontro e a partilha. Mas é na dimensão intelectual que Ras André encontra um de seus vínculos mais profundos com a Pituba. Leitor atento e aplicado estudante de psicologia, ele celebra a facilidade de acesso aos livros por meio dos sebos e feirinhas locais.
“Frequento muito os espaços de sebos do bairro. Há uma grande variedade. Há também espaços que vendem livros a preços bem acessíveis, por exemplo ali no Centro Espírita Paulo Estêvão. Livros a R$ 1, R$ 2, os mais caros a R$ 5, e isso facilita o acesso a essa dimensão fundamental da vida que é o conhecimento através da leitura. Sem contar que você tem a oportunidade de encontrar com pessoas de diversas histórias de vida e trocar conhecimentos com elas nesses locais.”

A leitura, para ele, não é apenas prática individual, mas um espaço de encontro e de construção coletiva de saberes. O flerte com os sebos e bancas de livros baratos aproxima diferentes gerações e classes sociais, costurando uma rede de convivência que tem no conhecimento sua base de sustentação.
Ras André, migrante e intelectual, encontra na Pituba um mosaico que combina vida urbana, convívio comunitário, contato com a natureza e acesso à cultura. Em suas palavras e gestos, a migração não é apenas deslocamento geográfico: é reinvenção da própria vida, marcada pela possibilidade de construir novos laços, sem perder de vista o mar que, de perto ou de longe, sempre foi bússola e companhia.
Luís Araújo Cruz, 59 anos - Memórias no mar
Na Pituba, a orla guarda histórias que se entrelaçam com o tempo e a vida de seus moradores. Para Luís, 59 anos, pescador há mais de quatro décadas, cada amanhecer à beira-mar carrega a mesma magia de sempre: o cheiro da maresia, o frio do vento e o movimento cadenciado das varas de pesca fincadas na areia.
Com 45 anos frequentando a Pituba e 42 dedicados à pescaria, ele relembra episódios que atravessam gerações. Entre feridas nas mãos provocadas pelas linhas e anzóis e conversas que transitam da gozação aos desabafos de homens de todas as idades, a memória da pescada de Xaréu se destaca.
Centenas de pescadores se reúnem, e a calçada se transforma em arquibancada improvisada, onde vizinhos e curiosos acompanham a disputa intensa entre “bicho homem” e “bicho peixe”. Mais do que técnica, lazer ou alimento, a pescaria sempre foi para Luís um porto seguro.

Ele conta: “Tantos motivos da gente rir aqui: muitos já caíram, quebraram nariz, outro quebrou testa, perna, tentando pegar o peixe. Rapala presa no anzol, na mão e o peixe na outra. Levar o peixe pra casa pra depois tirar a garateia da mão. Era uma comédia pra todo mundo, e no outro dia a gente estava aqui novamente.
É uma coisa muito gostosa, uma terapia. Na minha vida eu perdi dois filhos precocemente, e o que me ajudou muito foi essa terapia aqui, essa alegria, tudo que Deus me deu aqui. Agradeço todos os dias por esse lazer.”
Em tantos dias, quando a Pituba ainda desperta ou se acalma lentamente, a rotina à beira-mar se mantém: crianças observam, adultos compartilham histórias, e os mais velhos passam adiante a tradição, preservando o espírito de comunidade que ajuda a transformar dor em memória, convivência e alegria.

Antônio de Assis Santos, 73 anos - Vida ativa e olhar sereno na Pituba
Morador da rua Piauí há duas décadas, Antônio de Assis Santos, 73 anos, é um exemplo de como a Pituba oferece espaços que equilibram lazer, saúde e convivência.
Ele recorre diariamente às praças e à orla para espairecer, caminhar e manter o corpo ativo, aproveitando cada manhã ensolarada e cada brisa salgada que vem do mar. A segurança, preocupação constante em grandes metrópoles, também é lembrada por Antônio, mas com uma avaliação positiva da Pituba.
“A violência existe em todos os cantos, em todos os lugares, porém, na Pituba eu acho que é mais equilibrado.”
Suas palavras refletem confiança e serenidade, revelando um bairro em que a vida comunitária ainda se manifesta de forma tangível e acolhedora. Além da tranquilidade, ele valoriza a facilidade de acesso ao lazer e ao esporte.
Ao observar a praia, seus olhos brilham com a cena cotidiana da altinha, que anima quase todas as faixas de areia, com praticantes de todas as idades. “É uma coisa que traz leveza e alegria. Ver gente se movimentando, crianças e adultos jogando juntos, é inspirador”, comenta, com a calma de quem já testemunhou muitas marés da vida.

Antônio também carrega consigo a experiência de quem já morou entre Maragogipe, São Caetano e a Pituba por quase 50 anos. Seus gestos são contidos, ora mirando o movimento das ondas, ora sorrindo tímido, como quem ensina que, assim como a maré, a palavra e o silêncio têm o mesmo valor.
A história de vida dele se desenha nas pequenas rotinas: caminhadas matinais, conversas com vizinhos e a contemplação do mar, que se torna um companheiro silencioso e constante. Sobre sua experiência no bairro, Antônio sintetiza: “Da vida aqui, não tenho nada de muito ruim a reclamar. Me mantenho positivo, a família bem criada.”
Há uma leveza em suas palavras, um contentamento discreto que só os anos vividos podem trazer. Para ele, a Pituba é mais que um bairro; é um espaço de equilíbrio entre movimento e serenidade, convivência e introspecção, onde o corpo se mantém ativo, a mente encontra repouso e a comunidade se revela no convívio cotidiano.
Arivaldo Ferreira Filho, 61 anos - A Pituba como refúgio
Técnico de refrigeração, ele chegou à Pituba há poucos anos, mas o vínculo com a praia já vinha de longe, desde os tempos em que morava no vizinho bairro do Nordeste de Amaralina. O mar, de alguma forma, sempre foi presença em sua vida.
Agora, instalado no bairro, encontrou na Pituba um equilíbrio que se aproxima do sossego que busca em seu sítio em Feira de Santana — lugar de descanso nas folgas e feriados. A rotina é simples, mas repleta de significado. O bairro lhe oferece exatamente o que imagina ser a função primeira de um lugar de moradia: espaços de trabalho, oportunidades de progresso pessoal e vínculos de amizade capazes de resistir ao tempo.
No ritmo apressado das avenidas ou na serenidade do nascer do sol à beira-mar, ele se sente parte de uma comunidade que sabe acolher. O hábito de pedalar pela manhã tornou-se um ritual. Ele descreve com naturalidade.

“De manhã venho aqui cedo pra dar uma pedaladinha. Em alguns fins de semana eu me divido entre a praia aqui e o sitiozinho em Feira de Santana, mas aqui tem muita gente boa.”
As pedaladas, ao mesmo tempo exercício e contemplação, são um modo de marcar o compasso dos dias e de reforçar sua conexão com o lugar. No bairro, as relações de confiança também se firmam. Entre elas, a amizade de longa data com o seu Antônio Piauí, dono do tradicional Bar Piauí.
“Aqui eu conheço o seu Antônio Piauí, do Bar Piauí, uma pessoa muito boa. Trabalho com ele há muitos anos, é amigo, é cliente.”
O encontro entre trabalho e amizade resume, de certo modo, o espírito da Pituba: um espaço onde se constrói comunidade, mesmo em meio ao movimento acelerado da cidade.
Na praia ou no pedal, no trabalho ou nas conversas de esquina, ele encontra na Pituba a possibilidade de conciliar passado e presente, rotina e refúgio. Como no sítio de Feira de Santana, há sempre a promessa de descanso, mas aqui há também algo mais: a certeza de pertencimento a um bairro que pulsa e acolhe, ao mesmo tempo.
Landoaldo (75 anos) e Izabel (59) - Rotina, memória e defesa da Pituba
Sentados lado a lado, Landoaldo Lemos e Izabel Sampaio compartilham não apenas uma vida em comum, mas também a experiência de quem enxerga a Pituba muito além das manchetes.
O tema da violência, que de tempos em tempos volta a assombrar a imagem do bairro, surge logo na conversa. Izabel não se esquiva: prefere se manter informada, por isso assiste com frequência aos programas policiais, acompanhando os noticiários que dão visibilidade a esse tipo de ocorrência.
Já Landoaldo segue outro caminho. Prefere manter distância desse conteúdo, como se resguardasse a Pituba de uma associação direta com a insegurança. Faz uma pausa para pensar, e com esforço recorda: em quase cinco décadas de vida no bairro, só foi vítima de violência uma única vez, há 25 anos.
Izabel, com firmeza, defende o lugar que escolheu para viver. Para ela, a Pituba não deve ser reduzida ao estigma da violência: “O bairro está bem melhor do que já foi um dia (...) Eu gosto daqui, não tem o que dizer de ruim da Pituba.”

Sua fala traz a certeza de quem não mede palavras quando o assunto é a própria comunidade. Juntos, celebram a vida ativa que o bairro possibilita. As manhãs costumam ser dedicadas às caminhadas à beira-mar, às pedaladas e aos exercícios ao ar livre. É ali, no compasso dos passos, que renovam diariamente a disposição e o vínculo com a orla.
Landoaldo resume a rotina com simplicidade: “A gente vem aqui todos os dias!”. Logo em seguida, porém, um sorriso interrompe o entusiasmo. Ele se corrige, lembrando de uma cirurgia recente: “Todos os dias não, que tem dia que a gente não consegue vir.” O gesto de erguer a mão com o curativo revela mais do que a cicatriz física: mostra o desejo de não interromper o fluxo dos dias, de permanecer fiel a uma prática que simboliza saúde, bem-estar e pertencimento.
A despedida acontece com o mesmo tom de leveza que marcou a conversa. Landoaldo, ainda incomodado com o curativo que preferia não carregar como marca de vida, ajeita-se ao lado de Izabel, e juntos seguem em direção à Praça Nossa Senhora da Luz.
O casal deixa para trás a lembrança de um diálogo sincero: um relato que reafirma a Pituba não apenas como bairro, mas como espaço de resistência cotidiana, onde as marcas do tempo são suavizadas pela constância do mar e pelo exercício diário de quem escolheu ali viver.
Thiago Amorim, 43 anos - Memórias que atravessam gerações
Saído de Brumado, no sertão baiano, ele carrega uma história de idas e vindas que o ligam à Pituba desde 1997. Agora, em um passeio familiar com a esposa e o filho pequeno, observa com clareza as transformações que o bairro atravessou nas últimas décadas.
Viu a Pituba crescer em prédios e movimento, mas também em espaços de lazer e convivência, hoje parte fundamental de sua vida. A fala vem acompanhada de um gesto de reconhecimento ao redor: parques, praças e a orla se tornaram elementos centrais de um cotidiano que concilia bem-estar e memória.

Entre esses espaços, o Parque da Cidade ganha destaque. Ali, recorda os fins de semana entre amigos, a liberdade de caminhar entre árvores e a sensação de pertencer a um lugar que se equilibra entre o urbano e o verde.
A nostalgia se acentua quando menciona o que antes foi o Clube Português e que hoje abriga a Arena Aquática Salvador. O olhar se ilumina com lembranças da adolescência, quando mergulhava nas piscinas do antigo clube: “Aqui era o [antigo Clube] Português, eu já fiz natação aqui. Hoje é a Arena Aquática.”
A frase carrega o peso simbólico de quem atravessou o tempo, vivenciando a continuidade de um espaço que, transformado, ainda guarda vínculos com o passado. O Jardim dos Namorados também ressurge em suas memórias. Ali, nos “babas” jogados entre amigos, aprendeu não só sobre futebol, mas sobre convivência e pertencimento.
O espaço, hoje requalificado, reflete as mudanças que acompanham não apenas o bairro, mas também sua trajetória pessoal: de adolescente que descobria a cidade, a adulto que retorna para oferecer ao filho a experiência de usar o espaço público se sentindo em segurança, em família.
Essa relação com a Pituba é marcada pela ideia de formação e transmissão. Foi no bairro que se formou adulto; agora, na presença do filho — ainda esperando um nome para ser registrado nesta narrativa —, dá continuidade a essa construção, garantindo que as memórias de ontem se transformem em experiências de amanhã.
Para ele, a Pituba não é apenas endereço: é território de passagem e permanência, lugar de reencontros, de crescimento e de pertencimento.
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