A TARDE BAIRROS
Projetos sociais no Pelourinho: quando cultura vira cidadania
Projetos socioculturais de instituições resilientes mantêm acesa a chama de Pelô que á mais do que apenas turístico
Por Joana Lopo

O Pelourinho, cartão-postal de Salvador e Patrimônio da Humanidade, carrega em suas ruas seculares e nos alicerces dos sobrados não apenas memórias de dor e resistência, mas também as marcas de uma potência cultural que segue pulsando no presente. No centro dessa história de resiliência que transforma vidas por meio da arte, quatro instituições, entre outras — Olodum, Fundação Casa de Jorge Amado, Projeto Axé e Fundação Mestre Bimba — mantêm acesa a chama de um Pelô que é muito mais que cenário turístico: é território de cidadania.
Desde os anos 1980, o Olodum é um nome ecoa com força nas ladeiras do Centro Histórico. Muito além do bloco carnavalesco e do batuque que conquistou o mundo, foi a Escola Olodum, nascida em 1983 como Projeto Rufar dos Tambores, que fincou raízes na formação cultural e social de jovens da capital baiana. A escola formou ícones como o mestre Memeu, a maestrina Andreia e o cantor Lucas Fiori, mas também revelou talentos administrativos, como Magda Sueli, que chegou ainda menina e hoje comanda as finanças do grupo, e Linda Rosa, atual diretora da Escola.
Em constante reinvenção, a Escola desenvolve hoje um projeto em parceria com a SEADI/MEC e a Universidade Federal do Recôncavo Baiano, beneficiando cem crianças, adolescentes e jovens ao longo de dez meses. A iniciativa também capacita professores para aplicar os conteúdos da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Uma segunda fase da ação ampliará o alcance para 200 beneficiários. Se no início o foco era o bairro do Maciel-Pelourinho, hoje os braços do Olodum se estendem por diversos bairros populares de Salvador e região metropolitana.
"Não formamos apenas artistas, formamos cidadãos protagonistas de seus destinos", enfatiza Marcelo Gentil, historiador, compositor e presidente institucional do Olodum, que ingressou no grupo em 1987. "Não trabalhamos com meninos de rua, trabalhamos para que eles não precisem ir para as ruas. A cultura é nossa ferramenta de encantamento."
Após capturar os jovens pelo fascínio da arte, o Olodum mergulha em temas essenciais: cidadania, direitos humanos, combate ao racismo, prevenção a DSTs. Os frutos desse trabalho são egressos formados em Marketing, Direito, Nutrição, Comunicação Social, Pedagogia e outras áreas, capacitados também em cursos de informática, produção cultural, audiovisual, mobilização social e empreendedorismo.
Impactos do projeto
A manutenção desse ecossistema depende da própria Banda Olodum, de parcerias estratégicas com empresas públicas e privadas, da gravação de jingles e de cooperações internacionais.
"Não queremos ficar com o ‘pires na mão’", afirma Gentil. A força do grupo mobiliza turistas, movimenta o comércio e pressiona o poder público — foi esse tambor que impulsionou a revitalização do Pelourinho, com a recuperação da Casa do Benin e da própria Casa do Olodum. Embora cerca de 70% a 80% dos antigos moradores tenham sido deslocados após indenizações, o perfil social atendido permanece o mesmo.
O impacto ultrapassa fronteiras: a Banda Olodum já passou por quase 50 países e tem mais de 40 núcleos apenas na Argentina, além de influenciar projetos como AfroReggae (RJ), Meninos do Morumbi (SP), Arte no Dique (Santos) e Obará (Brasília). "O futuro ao Deus Olodumarê pertence", finaliza Gentil, citando a composição de Cabelinho (Jose Carlos Gonzalez Xavier): "Na minha caminhada aprendi a dividir e a repartir o pão...".
Fundação Casa de Jorge Amado
No mesmo Largo do Pelourinho, outro pilar da cultura baiana se ergue com dignidade: a Fundação Casa de Jorge Amado. “Temos a honra de estar aqui, onde Jorge idealizou esta casa para preservar o lugar cenário de suas obras”, afirma a presidente Angela Fraga.
Guardiã dos acervos de Jorge, Zélia Gattai e Myriam Fraga, a Fundação vai além do memorialismo: é uma efervescente Casa de Palavras, com projetos que ecoam por todo o Brasil. Entre eles, o Conjunto Pedagógico, distribuído a escolas públicas, leva painéis históricos e guias de leitura para salas de aula. Já a “Uma Quarta de FreePelô” recebe alunos de escolas públicas para roteiros culturais — em 2024, foram 26 ações e cinco mil estudantes atendidos.

A Fundação também investe em literatura contemporânea: o Prêmio Myriam Fraga para Autores Inéditos já publicou livros de novos escritores com ampla participação nacional — foram 502 inscritos na última edição. O Clube de Leitura Myriam Fraga, por sua vez, é realizado em parceria com o Diretório Acadêmico de Letras da UFBA e a Academia de Letras da Bahia.
Cursos, oficinas e seminários gratuitos fazem parte da rotina, além de grandes eventos como a FLIPELÔ — maior festa literária da Bahia, que em 2024 atraiu 250 mil pessoas, gerou mais de mil empregos diretos e ocupou 153 espaços.
A edição de 2025 já tem homenagem confirmada ao dramaturgo Dias Gomes. Outras ações incluem as Merendas de Dona Flor, que unem literatura e gastronomia com barracas de moradores locais; o Festival Uma Casa de Palavras; e a Lavagem da Fundação, que mistura literatura e Carnaval com cortejos e teatro de rua.
Mantida por doações, patrocínios via Lei Rouanet e Fundo de Cultura da Bahia, além do apoio do Shopping da Bahia, a Fundação foi reformada em 2024. Ganhou novas salas temáticas, como Ilustradores, Jorge e Zélia pelo Mundo e Myriam Fraga, além da exposição permanente “O Guardião – Casa Exú 47”, que homenageia o orixá guardião e os cem anos de Mãe Stella de Oxóssi.
Projeto Axé: a pedagogia nas ruas
Há 35 anos, outro marco da transformação social se desenha com a assinatura do Projeto Axé, que atua na ponta mais sensível: crianças e adolescentes em situação de rua. Sua metodologia começa com o encantamento, um processo chamado de “paquera pedagógica”, feito diretamente nas ruas por educadores com apoio de duas ferramentas: o Axébuzu — um ônibus adaptado com biblioteca e recursos arteducativos — e o Axé In Itinere, um carro cheio de brinquedos, livros e materiais lúdicos.
“Essas ferramentas funcionam como meios mobilizadores e geradores de encontros e relações, criando um espaço transicional entre a rua e os serviços, organizações e atividades culturais arteducativas”, explica Lívia Mendes, técnica em atividades educacionais do Projeto.
A partir daí, as crianças são encaminhadas para as unidades arteducativas: no Pelourinho, na Casa dos Maestros e na Augusto Omolu de Dança e Capoeira. Lá, participam de oficinas de artes visuais, moda, música, iniciação artística, capoeira, dança, percussão e letramento digital. Além disso, recebem alimentação, transporte escolar, atendimento nutricional, acompanhamento familiar e escolar, além do AMO — um vale-alimentação mensal que garante apoio às famílias.
O Axé também oferece cursos profissionalizantes, promove feiras culturais, exposições e espetáculos, como “O menino debaixo da palha”, apresentado em maio de 2025, e a participação da Orquestra de Berimbaus na Convenção Roche. Aulas públicas de dança, blocos no Carnaval e mostras como “As Cores Dessa Cidade” integram sua agenda. O financiamento vem de parcerias com a Prefeitura de Salvador, Governo da Bahia, Unesco (via Criança Esperança) e entidades internacionais da Itália, Áustria e França. O Axé se consolidou como modelo global de arte-educação.
Fundação Mestre Bimba e o projeto Capoerê
E se o tambor, o livro e o desejo conduzem as transformações, a ginga da capoeira completa esse legado no Pelourinho. A Fundação Mestre Bimba (FUMEB), sob o comando de Mestre Mascote e liderança benemérita de Mestre Nenel — filho do lendário Bimba —, é o bastião da Capoeira Regional. A sede no Pelô é ponto de peregrinação de turistas e capoeiristas do mundo inteiro, com aulas práticas, teóricas, rodas semanais, musicalidade e projetos como o Samba Tijubinas, coordenado pela Mestra Nalvinha.
Seu coração social pulsa forte no projeto Capoerê, que oferece ensino gratuito da Capoeira Regional a crianças e jovens de baixa renda. Ex-alunos hoje atuam como mestres voluntários, mantendo viva a tradição em núcleos nos bairros de Nordeste de Amaralina, Chapada do Rio Vermelho, Plataforma, Narandiba e na própria sede.

“Desenvolvemos autonomia, criticidade e emancipação”, afirma a entidade. A agenda da FUMEB inclui gravações musicais, rodas, workshops, produção de berimbaus e novos planos como o Curso de Especialização I com Mestra Preguiça e a Zumbimba Salvador 2025. Mantida por vendas de artigos, doações e editais esporádicos, a Fundação é sustentada, sobretudo, pela família Bimba.
Olodum, Jorge Amado, Axé, Mestre Bimba — são nomes que há décadas transcendem o individual e se tornam instituições vivas, moldando identidades, formando cidadãos e mantendo pulsante o coração da Bahia. No Pelourinho, cultura não é ornamento, é trincheira e farol. São os tambores, as palavras, os passos e os pincéis que escrevem, hoje, um futuro em que arte é resistência, orgulho e transformação. Um patrimônio vivo, forjado em luta e luz.
Meninos do Pelô: como o esporte e a cultura transformam infâncias no coração de Salvador
Nos becos e ladeiras de pedras centenárias, onde os tambores ressoam e a memória afrodescendente pulsa, meninos e meninas do Pelourinho traçam novos caminhos a partir da cultura e do esporte. No coração do Centro Histórico de Salvador, o projeto Capoerê, da Fundação Mestre Bimba, tem sido uma dessas pontes de transformação — onde o berimbau afina futuros e a capoeira ensina mais que movimentos: ensina pertencimento, história e resistência.
Artur Lucas Souza de Jesus, de apenas 6 anos, já sente os efeitos dessa vivência. “Me sinto muito bem na capoeira. Adoro o professor, ele é muito carinhoso e ensina a gente a tocar pandeiro, cantar músicas. Mudou a minha vida porque eu aprendo muitas coisas novas. Gosto muito do Pelourinho e do projeto”, conta o pequeno capoeirista.
No mesmo compasso segue Maria Helena de Jesus Palmeira, 10 anos, que atende pelo apelido de Princesa. “Entrei na capoeira com 7 anos e sempre me ensinou muito. Ensinou a me defender, a dançar e a cantar. Faço escola, banca e a capoeira, que me ajuda a desenvolver mais as atividades do meu dia a dia e a viver a minha vida melhor”, relata.
Fundada por discípulos do lendário Mestre Bimba, criador da Capoeira Regional, a Fundação que leva seu nome atua com projetos socioculturais há décadas, mantendo viva a tradição da capoeira como elemento de identidade e instrumento de inclusão social. O Capoerê é um desses braços, acolhendo crianças e adolescentes do Centro Histórico em aulas gratuitas, com foco não apenas nos golpes, mas na formação cidadã.
“Capoeira não é só o movimento”, repete Eric Vinicius Almeida Tavares, 18 anos, estudante de jornalismo e capoeirista nas horas vagas. Com olhar crítico e palavras afiadas, ele traduz a filosofia do projeto: “acho que a melhor palavra para explicar o sentimento é respeito. Toda aula o professor lembra para nós quem era Mestre Bimba, a história da capoeira e do projeto. A capoeira é a representação da luta de todos os negros que passaram mais de 300 anos sendo escravizados pelo Brasil e, quando libertos, relegados para a margem da sociedade”, destaca.
Para ele, o Capoerê foi mais que uma prática corporal: foi um reencontro com sua própria herança. “Passei a ficar mais disposto e confiante. Além disso, foi uma forma que encontrei de praticar exercícios numa agenda corrida. O projeto foi uma oportunidade”.
No Pelourinho, onde a memória do tráfico negreiro ainda ecoa entre as fachadas coloniais e igrejas barrocas, a roda de capoeira é mais que uma expressão artística: é um rito de ressignificação.
“Devemos valorizar isso cada vez mais. O ambiente cultural do Pelourinho e a sua história. Acho notável como conseguimos ressignificar um dos locais mais brutais do período escravocrata para um ponto turístico da capital. Claro, devemos sempre lembrar para não repetir, mas não podemos ficar presos somente à essa imagem”, conclui Tavares.
Ao lado da capoeira, outros projetos também fincam suas raízes no território do Pelô — iniciativas de reforço escolar, oficinas de percussão, aulas de teatro, dança e leitura, organizadas por instituições como o Ilê Aiyê, a Fundação Pierre Verger, o Olodum e a própria Fundação Cultural do Estado da Bahia, que administra equipamentos como a Casa do Benin, a Casa de Angola e o Centro Cultural Solar Ferrão.
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