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A TARDE BAIRROS

Rosário dos Pretos mantém viva a fé negra no centro do Pelô

A beleza arquitetônica da igreja é um espetáculo à parte

Por Joana Lopo

18/06/2025 - 10:37 h
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos -

Em uma das ladeiras do Pelourinho, entre o burburinho dos turistas e o repicar dos tambores, uma igreja ergue-se como se brotasse da própria memória ancestral que habita aquelas pedras centenárias. É a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, templo católico e quilombo de fé, que é símbolo da resistência negra na capital baiana. Cada uma de suas torres cobertas de azulejos portugueses, cada entalhe em seus altares e cada cântico entoado em iorubá testemunham o encontro entre a herança católica da Europa e a espiritualidade africana — forjado não pela imposição, mas pela reinvenção da fé sob o peso da escravidão.

“O Rosário dos Pretos nasceu de uma necessidade espiritual e também de um gesto de afirmação da humanidade dos negros escravizados e libertos da época”, explica o historiador Milton Moura. Fundada no início do século XVIII, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos reuniu africanos e afrodescendentes que, proibidos de cultuar livremente seus orixás e excluídos das igrejas frequentadas pelos brancos, decidiram construir seu próprio templo.

A obra, iniciada em 1704, levou quase 80 anos para ser concluída. "Naquela época, os negros eram obrigados a ser católicos. Eles não tinham escolha. Já chegaram evangelizados ao Brasil, pois a colonização em Angola foi anterior a daqui. Por isso, precisaram criar as irmandades, as associações, o sincretismo", conta Milton.

Foi assim que o catolicismo europeu, ao tocar o solo da Bahia, passou a falar também em língua africana. No altar principal do Rosário dos Pretos, reina a imagem barroca de Nossa Senhora do Rosário, esculpida no século XVII.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em 1978
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em 1978 | Foto: Cedoc A TARDE

Para os membros da irmandade, ela é simultaneamente Nossa Senhora e Iemanjá — o orixá das águas, da maternidade e da proteção. Ao seu lado, outros santos profundamente ligados à história negra no Brasil: Santo Antônio de Categeró, Santa Bárbara e São Benedito, figuras que dialogam com Ogum, Iansã e outros orixás cultuados nas religiões de matriz africana.

A beleza arquitetônica da igreja é um espetáculo à parte. A fachada rococó revela já na entrada uma exuberância que se desdobra no interior: painéis de azulejos portugueses retratando passagens da vida de Maria e São Domingos, pinturas atribuídas a José Joaquim da Rocha no forro da nave e altares entalhados por João Simões de Souza no século XIX, em estilo neoclássico.

“Cada detalhe foi pensado e realizado por mãos negras. Cada pintura, cada escultura tem um significado que ultrapassa a estética. É história viva!”, resume Padre Lázaro, atual responsável pelas celebrações no templo.

Segundo ele, muitos dos membros fundadores da irmandade eram oriundos de povos bantos e angolanos, já evangelizados em seus territórios de origem.

“Eles trouxeram sua fé para cá, mas também trouxeram sua forma de viver a fé. O Rosário se tornou o espaço onde essa espiritualidade pôde florescer, mesmo que sob as sombras da opressão”, diz o padre. Hoje, as missas afro celebradas ali mantêm vivo esse legado: os rituais incluem cantos em iorubá, os toques sagrados dos atabaques e símbolos que mesclam o catolicismo com elementos da cultura africana.

Além da beleza estética e espiritual, a igreja é palco de tradições que reafirmam sua ligação com o cotidiano da população negra.

Imagem ilustrativa da imagem Rosário dos Pretos mantém viva a fé negra no centro do Pelô
| Foto: Fernando Barbosa / Divulgação

Uma das celebrações mais significativas é a festa de Nossa Senhora do Rosário, cuja programação inclui a distribuição do "bacalhau de Nossa Senhora" — uma mistura de verduras, toucinho e bacalhau, cuja origem remonta ao período de perseguição aos malês. Como os muçulmanos não comem carne de porco, a presença do toucinho no prato indicava às autoridades que não havia malês entre eles.

Hoje, o prato é oferecido gratuitamente e simboliza a generosidade, a resistência e o enraizamento das práticas religiosas no cotidiano alimentar do povo negro. As celebrações a Santa Bárbara, com caruru, e a Santo Antônio de Categeró, com feijão, também incorporam comidas votivas - preparações culinárias oferecidas como parte de rituais e festas religiosas - e oferendas com frutas e raízes, resgatando práticas de matriz africana e reafirmando a conexão entre espiritualidade, identidade e cultura alimentar.

Rituais como esses — ao lado de missas em homenagem à escrava Anastácia - considerada uma santa popular que simboliza o sofrimento e a resistência dos escravizados, símbolo do martírio afrodescendente — fazem da igreja um espaço onde se cultiva a fé, a memória e o pertencimento.

Promoção da fé católica afrocentrada

A Irmandade do Rosário dos Pretos, oficialmente chamada de Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do Carmo, é uma entidade religiosa e cultural que atua há mais de 300 anos na promoção da negritude e da fé católica afrocentrada. Desde sua fundação até os dias atuais, mantém-se ativa em ações sociais, como a distribuição de alimentos, feiras de saúde, catequese infantil e eventos culturais.

William Justo, prior da Irmandade desde 2016, é um dos responsáveis por manter essa tradição viva. Quanto conta sobre sua atuação no templo, revela a emoção que sente durante as celebrações: “O Rosário tem uma alegria que emociona. As pessoas dançam, tocam, agradecem. Vêm de longe para agradecer pelos milagres alcançados pelos santos negros. É uma fé que liberta”.

Quem também tem uma ligação visceral com o templo é a professora e doutora Anália Santana, que integra a Irmandade desde 2004. Para ela, o Rosário é mais que uma igreja — é um território de memória. “Foi feito pelos nossos, para os nossos. É um lugar onde se entra e se sente acolhido. Onde a gente não precisa se explicar”.

Imagem ilustrativa da imagem Rosário dos Pretos mantém viva a fé negra no centro do Pelô
| Foto: Raphael Muller / Ag. A TARDE

Anália conta que a Igreja do Rosário dos Pretos também é um símbolo de abertura e diálogo. Foi a única igreja católica a participar oficialmente do Fórum Social Mundial em 2018, sediando rodas de conversa, seminários e apresentações artísticas. Além disso, integra o roteiro de turismo étnico-religioso de Salvador e colabora ativamente com conselhos de promoção da igualdade racial, como o Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado (CDCN) e o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (CMCN).

Em 2025, segundo a devota, a igreja sediou a Pré-Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial do Centro Histórico, elegendo delegados para as etapas seguintes. Uma atuação que evidencia sua dupla vocação: templo espiritual e agente político da negritude.

Além de sagrada, a Rosário dos Pretos é um local de luta e resistência, onde a fé, cultura e luta se entrelaçam. A enculturação, conceito que define a adaptação da liturgia à cultura local, é ali vivida em sua plenitude: desde a escolha dos hinos até os rituais, tudo é expressão de uma fé que se reinventou para sobreviver.

E é no Pelourinho que fica esse templo que um dia surgiu da exclusão e hoje resplandece como patrimônio da dignidade negra. “Rosário sempre foi uma marca”, dizem os membros da Irmandade com orgulho. E é essa marca, feita de resistência, beleza e espiritualidade, que continua atraindo devotos e curiosos, todos em busca do sagrado que canta com sotaque da África e vibra no tambor da Bahia.

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