A TARDE BAIRROS
Rosário dos Pretos mantém viva a fé negra no centro do Pelô
A beleza arquitetônica da igreja é um espetáculo à parte
Por Joana Lopo

Em uma das ladeiras do Pelourinho, entre o burburinho dos turistas e o repicar dos tambores, uma igreja ergue-se como se brotasse da própria memória ancestral que habita aquelas pedras centenárias. É a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, templo católico e quilombo de fé, que é símbolo da resistência negra na capital baiana. Cada uma de suas torres cobertas de azulejos portugueses, cada entalhe em seus altares e cada cântico entoado em iorubá testemunham o encontro entre a herança católica da Europa e a espiritualidade africana — forjado não pela imposição, mas pela reinvenção da fé sob o peso da escravidão.
“O Rosário dos Pretos nasceu de uma necessidade espiritual e também de um gesto de afirmação da humanidade dos negros escravizados e libertos da época”, explica o historiador Milton Moura. Fundada no início do século XVIII, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos reuniu africanos e afrodescendentes que, proibidos de cultuar livremente seus orixás e excluídos das igrejas frequentadas pelos brancos, decidiram construir seu próprio templo.
A obra, iniciada em 1704, levou quase 80 anos para ser concluída. "Naquela época, os negros eram obrigados a ser católicos. Eles não tinham escolha. Já chegaram evangelizados ao Brasil, pois a colonização em Angola foi anterior a daqui. Por isso, precisaram criar as irmandades, as associações, o sincretismo", conta Milton.
Foi assim que o catolicismo europeu, ao tocar o solo da Bahia, passou a falar também em língua africana. No altar principal do Rosário dos Pretos, reina a imagem barroca de Nossa Senhora do Rosário, esculpida no século XVII.

Para os membros da irmandade, ela é simultaneamente Nossa Senhora e Iemanjá — o orixá das águas, da maternidade e da proteção. Ao seu lado, outros santos profundamente ligados à história negra no Brasil: Santo Antônio de Categeró, Santa Bárbara e São Benedito, figuras que dialogam com Ogum, Iansã e outros orixás cultuados nas religiões de matriz africana.
A beleza arquitetônica da igreja é um espetáculo à parte. A fachada rococó revela já na entrada uma exuberância que se desdobra no interior: painéis de azulejos portugueses retratando passagens da vida de Maria e São Domingos, pinturas atribuídas a José Joaquim da Rocha no forro da nave e altares entalhados por João Simões de Souza no século XIX, em estilo neoclássico.
“Cada detalhe foi pensado e realizado por mãos negras. Cada pintura, cada escultura tem um significado que ultrapassa a estética. É história viva!”, resume Padre Lázaro, atual responsável pelas celebrações no templo.
Segundo ele, muitos dos membros fundadores da irmandade eram oriundos de povos bantos e angolanos, já evangelizados em seus territórios de origem.
“Eles trouxeram sua fé para cá, mas também trouxeram sua forma de viver a fé. O Rosário se tornou o espaço onde essa espiritualidade pôde florescer, mesmo que sob as sombras da opressão”, diz o padre. Hoje, as missas afro celebradas ali mantêm vivo esse legado: os rituais incluem cantos em iorubá, os toques sagrados dos atabaques e símbolos que mesclam o catolicismo com elementos da cultura africana.
Além da beleza estética e espiritual, a igreja é palco de tradições que reafirmam sua ligação com o cotidiano da população negra.

Uma das celebrações mais significativas é a festa de Nossa Senhora do Rosário, cuja programação inclui a distribuição do "bacalhau de Nossa Senhora" — uma mistura de verduras, toucinho e bacalhau, cuja origem remonta ao período de perseguição aos malês. Como os muçulmanos não comem carne de porco, a presença do toucinho no prato indicava às autoridades que não havia malês entre eles.
Hoje, o prato é oferecido gratuitamente e simboliza a generosidade, a resistência e o enraizamento das práticas religiosas no cotidiano alimentar do povo negro. As celebrações a Santa Bárbara, com caruru, e a Santo Antônio de Categeró, com feijão, também incorporam comidas votivas - preparações culinárias oferecidas como parte de rituais e festas religiosas - e oferendas com frutas e raízes, resgatando práticas de matriz africana e reafirmando a conexão entre espiritualidade, identidade e cultura alimentar.
Rituais como esses — ao lado de missas em homenagem à escrava Anastácia - considerada uma santa popular que simboliza o sofrimento e a resistência dos escravizados, símbolo do martírio afrodescendente — fazem da igreja um espaço onde se cultiva a fé, a memória e o pertencimento.
Promoção da fé católica afrocentrada
A Irmandade do Rosário dos Pretos, oficialmente chamada de Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do Carmo, é uma entidade religiosa e cultural que atua há mais de 300 anos na promoção da negritude e da fé católica afrocentrada. Desde sua fundação até os dias atuais, mantém-se ativa em ações sociais, como a distribuição de alimentos, feiras de saúde, catequese infantil e eventos culturais.
William Justo, prior da Irmandade desde 2016, é um dos responsáveis por manter essa tradição viva. Quanto conta sobre sua atuação no templo, revela a emoção que sente durante as celebrações: “O Rosário tem uma alegria que emociona. As pessoas dançam, tocam, agradecem. Vêm de longe para agradecer pelos milagres alcançados pelos santos negros. É uma fé que liberta”.
Quem também tem uma ligação visceral com o templo é a professora e doutora Anália Santana, que integra a Irmandade desde 2004. Para ela, o Rosário é mais que uma igreja — é um território de memória. “Foi feito pelos nossos, para os nossos. É um lugar onde se entra e se sente acolhido. Onde a gente não precisa se explicar”.

Anália conta que a Igreja do Rosário dos Pretos também é um símbolo de abertura e diálogo. Foi a única igreja católica a participar oficialmente do Fórum Social Mundial em 2018, sediando rodas de conversa, seminários e apresentações artísticas. Além disso, integra o roteiro de turismo étnico-religioso de Salvador e colabora ativamente com conselhos de promoção da igualdade racial, como o Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado (CDCN) e o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (CMCN).
Em 2025, segundo a devota, a igreja sediou a Pré-Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial do Centro Histórico, elegendo delegados para as etapas seguintes. Uma atuação que evidencia sua dupla vocação: templo espiritual e agente político da negritude.
Além de sagrada, a Rosário dos Pretos é um local de luta e resistência, onde a fé, cultura e luta se entrelaçam. A enculturação, conceito que define a adaptação da liturgia à cultura local, é ali vivida em sua plenitude: desde a escolha dos hinos até os rituais, tudo é expressão de uma fé que se reinventou para sobreviver.
E é no Pelourinho que fica esse templo que um dia surgiu da exclusão e hoje resplandece como patrimônio da dignidade negra. “Rosário sempre foi uma marca”, dizem os membros da Irmandade com orgulho. E é essa marca, feita de resistência, beleza e espiritualidade, que continua atraindo devotos e curiosos, todos em busca do sagrado que canta com sotaque da África e vibra no tambor da Bahia.
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