ENTREVISTA – RAONI RODRIGUES
‘A Vigilância em Saúde da Bahia aprendeu muito com a pandemia’
Advogado especialista em Direito Sanitário detalha processo de construção do novo Código de Vigilância em Saúde da Bahia
Por Divo Araújo
Construído a várias mãos, o projeto de lei que cria o novo Código de Vigilância em Saúde já está na Assembleia Legislativa, onde deve ser votado ainda este ano. A proposição é extensa – possui mais de 300 artigos e quase 90 páginas – e reflete muito do que foi aprendido durante a pandemia da Covid-19, como explica o advogado Raoni Rodrigues, especialista em Gestão de Vigilância Sanitária e um dos coordenadores do projeto.
Nesta entrevista exclusiva ao A TARDE, Raoni detalha o processo de construção do plano e sua importância para regulamentar as ações dos agentes de vigilância, como a entrada forçada em imóveis com suspeitas de focos do mosquito da dengue. “Essas normas foram elaboradas com muita responsabilidade, para que o Estado não extrapole seus limites e respeite os direitos que precisam ser considerados”, explicou. Confira mais sobre o novo Código de Vigilância em Saúde na entrevista a seguir.
Tramita na Assembleia Legislativa o projeto que institui o novo Código de Vigilância em Saúde do Estado. Qual é a importância desse código?
A gente tem que sempre ter por base o conceito de que a administração pública - para construir políticas, executar ações de saúde, atender as pessoas - se orienta por normas, por leis. Naturalmente, existem as normas nacionais, mas é importante que haja uma contextualização a nível regional. E a Bahia precisa de normas que orientem sobre as particularidades do Estado. Ou que legitimem ações que as normas federais não poderiam legitimar. A norma jurídica, a lei, é a base que fundamenta a ação do ente público. Esse é o caso do Código de Vigilância em Saúde, que regulamenta as ações do ente público no que se refere às medidas, não só de atendimento à população, mas sobretudo de ações que buscam evitar que as pessoas adoeçam.
O projeto tem mais de 300 artigos e quase 90 páginas. Porque esse código precisa ser tão amplo?
A Vigilância em Saúde é uma área que reúne sete diferentes frentes de atuação. Existem sete vigilâncias que, somadas, formam esse grande complexo que é a Vigilância em Saúde. Temos a Vigilância em Saúde do Trabalhador, a Vigilância Sanitária, a Vigilância em Saúde Ambiental, a Vigilância Epidemiológica, a Vigilância Laboratorial, a Vigilância do Óbito e o Centro de Informações Estratégicas em Saúde Pública. Para que essas diferentes vigilâncias, com objetos muito distintos, possam atuar, elas precisam desse código que, de fato, é mais extenso se comparado a outras normas. Isso porque ele orienta a atuação dessas diferentes áreas. Lembrando que o objeto de atuação não se refere a algo interno - as unidades de saúde, hospitais, centros de atendimento da Secretaria de Saúde. Tem um mundo lá fora. São questões ambientais que precisam ser verificadas. Questões da produção de bens, oferta de diversos serviços. Não só de saúde, no conceito mais estrito, mas da indústria de cosméticos, por exemplo, o mundo do trabalho como um todo. O mundo é muito complexo e requer normas que adequem a ação do Estado. Essa adequação deve ser feita com responsabilidade, para que o Estado não ultrapasse os limites que a Constituição e a legislação entendem como equilibrados para dar um bom nível de proporcionalidade e razoabilidade de aplicação. Sob pena de que, em nome da proteção da saúde, você acabar agredindo direitos que precisam ser considerados.
O senhor falou de limites, e esse novo código regulamenta o poder de polícia dos agentes de vigilância. Prevê medidas como isolamento, quarentenas e realização de necropsias. Até onde irá esse poder dos agentes?
A gente tem que entender que o poder de polícia é um poder e um dever, como se diz no Direito. Ao mesmo tempo que é um poder, é um dever de agir quando a saúde da população está ameaçada. No caso da vigilância, a primeira coisa que a gente precisa entender é que ele é um poder que limita os direitos e liberdades individuais em nome da proteção à saúde. Por isso, esse conceito precisa ser muito bem fundamentado em normas científicas. O código é permeado por muitos instrumentos que colocam esse poder de polícia numa espécie de trilho, indicando quando vai ser possível usá-lo e quando não será possível. Ele é permeado por medidas que sejam suficientes para proteger a saúde, mas que restrinjam o mínimo possível os direitos à liberdade individuais, como o direito de ir e vir, por exemplo.
Trazendo para a nossa realidade e lembrando a epidemia de dengue que a gente passou recentemente. Esse novo código permite que os agentes adentrem imóveis onde há suspeitas de foco do mosquito aedes aegypti?
Hoje existe uma norma nacional que permite o ingresso forçado em residências abandonadas ou em caso de recusa para que as equipes de combate a endemias entrem no domicílio. Só que a lei federal permite apenas que isso seja efetivado em caso de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin). Ela é devidamente formalizada, quando se tem um cenário nacional que a gente não viu acontecer enquanto estávamos nessa grande epidemia de dengue no Estado. Mais da metade das cidades baianas estava em situação gravosa, sobretudo em relação à elevação de casos e a presença de quadros mais graves. Mas não havia uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional decretada. Dessa forma, a gente ficou impedido de usar esse instrumento. Os ingressos ocorreram apenas com base em decisão judicial, e aí não é poder de polícia. É o poder do Judiciário, que não se confunde com o poder de polícia dado aos agentes. O novo Código de Vigilância em Saúde, se o texto for aprovado como está, permite o ingresso forçado nas residências que estejam abandonadas ou em caso de recusa para que a equipe entre. E não precisa dessa Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, mas de uma epidemia decretada. E aí voltamos à questão dos limites que conversamos antes.Esse estado de epidemia precisa estar bem documentado. Aí tem toda uma regra epidemiológica para se determinar quando é uma epidemia. Não basta aumentar os casos. Existe um cálculo matemático para ser feito com base no conhecimento epidemiológico. E também existe um rito para que a equipe adentre no imóvel. Se a equipe vai até o local e não encontra o dono, que ela retorne mais um quantitativo de vezes, para dar oportunidade que o ele apareça e seja comunicado. Só depois desse rito, um conjunto de procedimentos sequenciados, o adentrar forçado será possível.
O novo código permite também que o Estado estabeleça isolamentos, quarentenas nos casos que forem necessários?
Quando existe uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional ou Internacional, como início de uma epidemia de dengue, o código autoriza, sim, que o Estado faça o isolamento. Isso foi pensado por todo um corpo técnico. É preciso lembrar que o código passou por mais de uma consulta pública, audiências públicas e discussões com o Conselho Estadual de Saúde. É natural que depois de tudo que a gente viu na pandemia da Covid-19, de todas as dificuldades, que o Estado detenha um instrumento em que possa começar a tomar algumas medidas fundamentadas, sem necessidade de uma norma federal. O código reflete esse grande aprendizado que a gente teve durante a pandemia. É fruto desse nível de maturidade maior. Nada no código é novo. Nenhuma medida é inovadora. Tudo já existe no âmbito do regulamento sanitário internacional, que o Brasil é signatário. Mas, no dia a dia, essas normas carecem desses regramentos, dessas orientações que, por vezes, são dadas pelo Ministério da Saúde. Por vezes são dadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Mas, muitas vezes, elas carecem de um respaldo jurídico maior. Ah, tem o regulamento sanitário internacional, será que a gente pode usar? A Bahia, refletindo esse estágio de maior maturidade, absorve medidas que já existem para que sejam aplicadas em contextos que são previsíveis. E é previsível que haja uma epidemia no futuro.
Pode-se dizer, então, que a pandemia acabou sendo um aprendizado muito grande para a Vigilância em Saúde?
Muitos fatos norteadores da construção do código, tal como ele está, foram frutos do contato que a gente teve com essa difícil realidade na pandemia. Com os aprendizados colhidos e muitas das dificuldades que existiram para os agentes públicos em campo de realizar algumas ações. Muitas vezes foram verificados que os instrumentos jurídicos, hoje existentes, não são suficientes para que a gente lide com essas situações com mais segurança jurídica. E segurança jurídica permite que a gente estabeleça procedimentos transparentes, respeitando os direitos de todas as partes envolvidas.
Como foi o processo de construção desse novo código?
Lembro que o código ainda vigente é de dezembro de 1981. Esse novo código é um sonho antigo. Desde 2001 já havia debates sobre a construção de um código. Pessoas de renome chegaram a participar da construção de alguns modelos, de algumas minutas. De 10 a 15 anos atrás, o debate foi se tornando mais intenso. E, em nenhum momento, os diferentes gestores que passaram pela pasta da Saúde tiveram interesse em construir uma minuta que fosse um produto de uma consultoria externa. Ou simplesmente fruto de, digamos assim, “um parecer técnico”, transformado em dispositivos normativos e construído pelas equipes da secretaria. Sempre houve a intenção que esse instrumento normativo fosse fruto de um real diálogo entre todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente nele. Se tratando de um código de saúde, a gente sabe que, no final das contas, a população toda é afetada pelos seus dispositivos. No curso da pandemia, em 2021, como falei, ficou ainda mais claro que o código precisava passar por mudanças. Entre 2021 e 2022, as equipes técnicas se debruçaram sobre a produção do conteúdo, que foi levado a duas consultas públicas. Uma delas aberta a toda sociedade e debate com o Conselho Estadual de Saúde. Foi fruto também da avaliação da Procuradoria Geral do Estado (PGE) até ser submetido à Assembleia. Falo de representantes dos setores produtivos, de sindicatos de trabalhadores, conselhos de classe. A gente procurou ter esse debate com diversos segmentos da sociedade. Daí saiu um texto muito vivo. E quando vai para a Assembleia Legislativa, toma outra dimensão de debate, porque ali estão os representantes do povo. São eles que legislam de fato. A iniciativa apenas é do Poder Executivo. Com ele, a gente espera que, num futuro próximo, o Estado esteja mais apto a enfrentar os grandes desafios que a saúde pública impõe. Falo da defesa da saúde da população, as mudanças climáticas. Precisamos de uma vigilância tecnicamente acurada do ponto de vista da saúde, mas também do ponto de vista do Direito. É o desejo de todos os colegas da Secretaria. Está no discurso da secretária Roberta Santana e da doutora Rivia Barros, a nossa superintendente de Vigilância em Saúde.
O código também regulamenta as ações da vigilância em casos de eventos climáticos extremos?
Apesar do código não detalhar como seriam as ações, porque ele também não pode detalhar tanto, legítima que algumas áreas , sobretudo o Centro de Informações Estratégicas (Cieps), que lidam com situações de desastre ambiental que venham comprometer a saúde humana. É a própria Vigilância em Saúde Ambiental que verifica situações de contaminantes que venham afetar a qualidade da água, do solo e do ar. No código de 1981 essas áreas não existiam. Por não existirem, a gente fica com algumas portarias, mas que de fato precisam ser colocadas numa lei para que essas áreas passem a ter uma legitimidade maior sobre a competência delas. Lembrando que elas não se confundem com o órgão de proteção do meio ambiente, mas, sim, cuidam de toda repercussão que esse meio ambiente venha provocar na saúde humana.
Os principais executores das ações de vigilância são os municípios. Como fazer com que os municípios, sobretudo os menos poder econômico, se adequem as normatizações desse novo código?
De fato é um desafio. O município é o principal executor das ações de vigilância em saúde. Isso demanda uma necessidade de atuação em áreas que requerem um grau de especialidade bastante diferenciado. Múltiplas frentes de ação, formações que muitas vezes requerem nível superior em diferentes áreas, não só das tradicionais da saúde. Eventualmente a gente vê áreas que estudam o meio ambiente ou o trabalho, que necessitam de formações superiores. O desafio está dado. Para o município pequeno fica realmente difícil, agora muitos exemplos positivos estão sendo referendados. Quando, por exemplo, os municípios conseguem garantir a presença de um corpo funcional concursado em maior número, seja pela instituição de consórcios. Temos alguns exemplos em outros estados. Ou quando se tem uma relação muito dialógica e construtiva com municípios vizinhos, com as regionais de saúde do estado, para que façam um trabalho de fato mais efetivo.
Outros estados vêm se interessando em saber sobre esse novo código da Bahia?
Algumas inovações colocadas pela primeira vez em códigos estaduais estão sendo objeto de análise por outros estados. Isso reflete muito uma coisa que foi bem verificada durante o curso da pandemia da Covid-19. A gente sabe que muitas das dificuldades enfrentadas pelos estados e municípios, durante a pandemia, foram superadas com base na união de diferentes entes federativos. A gente viu aqui a união do Estado com o município, em que pese as diferentes bandeiras partidárias. A união entre os estados, a exemplo do Consórcio Nordeste. Esses contatos, essa troca de conhecimento entre os entes federativos, são fundamentais. Isso reflete também um nível de maturidade grande. Estamos sempre trocando informações, visualizando também o que os outros estados estão fazendo.
Para concluir, alguns estudos mostraram que os países que tiveram melhor desempenho no combate ao Covid tinham a vigilância em saúde bem estruturada. Qual é a importância de termos vigilância em saúde assim?
Realmente, os países que obtiveram os melhores resultados –sejam eles europeus, asiáticos - foram aqueles que tinham a estrutura de vigilância em saúde mais bem montada. Ou seja, eles não resumiram a sua atuação na oferta de leitos. Mas, ao monitoramento de casos, a identificação precoce de casos, a localização de onde problemas estavam ocorrendo, para que a partir daí a própria rede de saúde pudesse ser orientada. Onde é que vou abrir leito? Onde tenho que disponibilizar UTIs? Para onde devo levar medicamentos? Quais regiões eu devo testar mais? Pelos quais grupos devem começar a vacinação? São respostas que requerem reflexões técnicas muito apuradas e que estão dentro do âmbito da Vigilância em Saúde. Acho que, daqui para frente, a discussão internacional será como a gente pode fortalecer cada vez mais a nossa Vigilância em Saúde. Essas frentes de trabalho são muito importantes para evitar que situações graves - epidemias, pandemias - devastem toda uma sociedade. A gente sabe que o desafio está para além de construir normas. Criar normas jurídicas é uma questão primordial. A gente não constrói uma Vigilância em Saúde eficaz se não tiver uma base normativa muito clara sobre como ela vai atuar. Os conflitos precisam ser resolvidos com normas. Agora, também existem desafios organizativos e políticos. A própria população precisa se empoderar desta importante missão, que está para além da Vigilância em Saúde. Ela é construída no dia a dia e precisa da colaboração de todos.
Raio-X
Raoni Andrade Rodrigues é advogado, especialista em Gestão de Vigilância Sanitária e mestrando em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Ufba. Membro da Comissão Especial de Saúde Pública da OAB/BA e do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), atua como assessor na Superintendência de Vigilância em Saúde do Estado da Bahia. Além disso, é professor, palestrante, parecerista e consultor jurídico nas áreas de Direito Sanitário e Direito Administrativo.
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