BAHIA
Abandono de filho pode render até 12 anos de prisão
Impactos são devastadores, especialmente para as crianças que compreendem o que ocorreu
Trazendo à tona os fatores - que vão do financeiro ao emocional - que podem fazer com que mães e pais abandonem seus filhos de forma inconsequente, o caso do bêbê abandonado na estação de metrô de Salvador no último dia 25 está longe de ser um caso isolado. Na capital baiana, os bebês Miguel e Sophia foram resgatados do lixo em 2021; a mãe de quatro crianças foi autuada por abandono e maus tratos em 2022; e uma intensa busca pelos pais de uma menina abandonada aconteceu em 2023. Existem alternativas para esses pais, mas o impacto nas crianças? Quase impossível de imaginar.
Ao ser resgatada, a criança em estado de abandono - denominado “abandono de incapaz” pela Justiça - passa pelo serviço de emergência para ter sua saúde verificada, enquanto a polícia dá início às investigações para apurar quem são os responsáveis. A criança então é levada para um serviço de acolhimento: se os familiares não forem localizados ou os genitores optarem por cederem a guarda, a criança pode entrar no sistema de adoção.
“Abandonar um bebê é crime, mas entregá-lo para adoção é um direito que garante a possibilidade da criança ter uma família”, aponta a analista judiciária integrante da equipe técnica da Coordenadoria de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia (CIJ TJBA) e psicóloga, Alessandra da Costa Meira. “Por isso que, antes de abandonar, é importante que os genitores procurem orientação no fórum de sua cidade, onde poderão ser amparados pelos serviços necessários e tomar essa decisão o mais consciente possível”, aconselha.
Consequências legais
Especializado em Direito de Família e Penal, o advogado Fabio Oliveira explica que as consequências legais para quem comete o crime de abandono de incapaz podem ser severas, com penas que podem chegar a 12 anos de reclusão a depender dos agravantes. “Por serem os próprios pais os responsáveis pelo abandono, a lei prevê um aumento da pena em um terço. Esse agravante reflete a responsabilidade especial dos pais no cuidado e proteção dos filhos, enfatizando a gravidade do ato”, aponta.
O abandono pode ocorrer por uma série de razões, incluindo transtornos de saúde mental - como depressão e dependência química -, condições socioeconômicas adversas e traumas de infância dos pais, dificultando o estabelecimento de vínculos saudáveis, lista a psicóloga clínica de terapia cognitivo comportamental, Paula Regina Nascimento de Carvalho. “As crenças culturais e as pressões externas também desempenham um papel importante nessa decisão. Já para as crianças, os impactos do abandono podem ser devastadores, especialmente para as que entendem o que aconteceu”, explica.
As crianças podem enfrentar dificuldades de apego, transtornos de ansiedade e depressão, problemas cognitivos e acadêmicos, “além de comportamentos autodestrutivos”, salienta Paula Regina. A psicóloga e psicoterapeuta analítica e clínica, Bianca Reis explica que nós temos cinco feridas emocionais universais: rejeição, abandono, humilhação, traição e injustiça. “É em uma situação dessas que se abre a ferida do abandono na criança e a partir daí tudo vai depender de como ela se desenvolve depois do abandono, com sua personalidade sendo formada a partir dos contextos”, explica.
Para a gerente de proteção social e especial da Fundação Cidade Mãe (FCM), Virginia Nascimento, “a ferida do abandono é imensurável no coração dessas crianças”. Ela alerta: se você está sem condições de cuidar de uma criança, não abandone. Procure a Primeira Vara de Justiça e o Conselho Tutelar para te ajudar nesse momento. “Nós recebemos essas crianças com todo o nosso amor, mas o melhor cenário seria aquele onde não teríamos a necessidade de fazer isso”, explica Virginia Nascimento.
Políticas públicas
Vinculada à Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SMPJ), aFundação Cidade Mãe executa políticas públicas em defesa e proteção de crianças, adolescentes e jovens, com as Unidades de Acolhimento Institucional (UAI) sendo uma dessas políticas. Nas UAI, crianças e adolescentes com vínculos familiares fragilizados e/ou rompidos, em situação de abandono, ameaça ou violação de direitos, são acolhidas. Hoje, Salvador possui três UAI ativas, onde 51 acolhidos aguardam poder voltar para suas famílias ou serem adotados.
Em média, oito menores são abandonados por dia no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) - obtidos pelo Grupo UOL via Lei de Acesso à Informação. Na Bahia, de acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNAC) do CNJ, 1.061 crianças e adolescentes estão acolhidos em um dos 150 serviços de acolhimento do estado (por diversos motivos). Porém, ainda que ser cuidado pelo Estado seja uma alternativa melhor,, manter uma criança em sua família de origem é o ideal.
“As famílias que ajudamos são socialmente pobres e entendemos o quanto pode ser difícil criar uma criança nessa situação. Por isso cuidamos, alimentamos e educamos essas crianças e adolescentes das 7h às 17h. Em contrapartida, exigimos que essas mães e pais tenham um emprego, nem que seja vendendo picolé, pois o tempo que essas crianças passam se desenvolvendo em nosso espaço é o momento deles, lá fora, construir uma vida melhor para essa criança”, explica a diretora do Departamento Educacional da Mansão do Caminho, Clese Mary Cerqueira.
Mansão do Caminho
Com 72 anos de história, a Mansão do Caminho - fundada por Divaldo Franco e Nilson de Souza Pereira - possui um sistema educacional gratuito, que vai da creche até o ensino médio, aceitando crianças e adolescentes de zero a 18 anos que hoje somam cerca de 3 mil pessoas. “Elas têm acesso a creche, pré-escola, ensino fundamental I e II, ensino médio e cursos diversos no contraturno, além de assistência médica, nutricionista, assistente social, psicólogo e psiquiatra”, lista Clese Mary. O edital para a inscrição de novos beneficiados irá abrir ainda este ano e será anunciado nas redes da Mansão (@mansaodocaminho).
Com educação integral de qualidade, acesso à saúde básica, cinco refeições por dia e todos os dias dando cinco pães - feitos na padaria da Mansão! - para que as crianças levem para casa, Clese Mary conta que dificilmente alguma criança é desmatriculada. “E para além da educação e cuidados com os filhos, nós sempre buscamos ajudar essas famílias da melhor forma possível com leite, fralda ou o que seja que precisem. Se pudermos ajudar, nós ajudamos, desde que elas também façam a parte delas para melhorar a situação familiar”, afirma.
O advogado Fabio Oliveira destaca ainda algo importante que, muitas vezes, passa despercebido: o papel da rede de apoio e da compreensão da sociedade em situações de abandono infantil. “Muitas famílias enfrentam pressões e desafios que, para alguns, podem parecer insuperáveis, levando a decisões extremas. A falta de conhecimento sobre alternativas como a entrega voluntária para adoção e o medo de serem julgados pela sociedade e pelas autoridades são barreiras que precisam ser derrubadas”, aconselha.
Serviço oferece acolhimento
Criado pela Fundação Cidade Mãe (FCM), que é vinculada à Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SMPJ), o Serviço Família Acolhedora oferece um lar provisório para crianças e adolescentes em situação de risco social em famílias voluntárias e habilitadas, que recebem capacitação e acompanhamento técnico. O objetivo é proporcionar um desenvolvimento saudável para a criança, até que ela possa retornar à família de origem ou ser encaminhada para adoção.
“Hoje, temos 11 crianças acolhidas nesse serviço, e a diferença que isso faz na vida e desenvolvimento delas é algo apaixonante de ver. Quando uma pessoa ou família se mostra interessada, nós fazemos uma entrevista e a capacitamos para receber essa criança e prestar esse serviço à sociedade, permitindo que esse bebê abandonado no hospital ou que essa criança deixada na rua saiba o que é ter uma família”, explica a gerente de proteção social e especial da Fundação Cidade Mãe (FCM), Virginia Nascimento.
No entanto, Virgínia alerta: se tornar uma Família Acolhedora não é uma forma de driblar a fila de adoção. “A questão do apego e laço criado no Família Acolhedora é sempre levantando pelos interessados, mas costumamos dizer que esse serviço é algo muito semelhante a você passar um tempo com o sobrinho em sua casa para ajudar uma irmã: você se apega, dá amor, mas sabe que ele vai voltar para casa dele. E nada disso acontece de uma hora para outra, há todo um processo também”, explica a gerente de proteção.
Além de não estar cadastrada no sistema de adoção, a pessoa ou família que deseja se inscrever para ser uma Família Acolhedora precisa: no mínimo 21 anos, morar em Salvador, e ter boa saúde e tempo para cuidar da criança ou adolescente. Para mais informações ligue para (71) 3202-2428/2429 ou acesse o www.familiaacolhedora.salvador.ba.gov.br.
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