AGRESSÃO
35% dos homens que agrediram mulheres estavam sob efeito de álcool
Pesquisa do Instituto Sou da Paz usou dados do Ministério da Saúde e é referente aos números de 2022
“Culpo o álcool, a hipocrisia, o machismo e tudo o que fez ele ser aquela pessoa, tudo nele. Nunca vou perdoá-lo, mas sinto que já me perdoei e vivo em paz, dentro do possível”, afirma Maria Cecília (nome fictício), que durante quase quatro dos 8 anos de casamento precisou conviver com o consumo excessivo de álcool do ex-marido. Dois desses anos ela passou sendo agredida com cada vez mais frequência. “Bastava a comida não estar do gosto dele, que ele levantava a mão”, lembra ela.
Agressores que abusam do consumo de álcool foram os responsáveis por 35% da violência não letal contra mulheres em 2022 no Brasil. E essas vítimas estavam em suas próprias casas. Divulgada na última quinta-feira (14) pelo Instituto Sou da Paz, que usou dados do Ministério da Saúde, a terceira edição da pesquisa O Papel da Arma de Fogo na Violência Contra a Mulher ainda sinaliza que 25% das notificações de violência armada não letal no Brasil, naquele mesmo ano, indicam suspeita de que o agressor consumiu álcool. O Nordeste, inclusive, ocupa o primeiro lugar no número de homicídios de mulheres com arma de fogo, com 63% dos casos do país.
Com uma filha que, na época, estava com 4 anos, a decisão de Maria para dar um basta na situação veio, principalmente, por não querer ver a criança crescer naquele ambiente – ou pior, se tornar uma vítima das agressões físicas. “Hoje tenho noção que demorei para sair dessa situação, mas a verdade é que você se sente sem saída de muitas maneiras. Eu tinha medo do que poderia vir a acontecer se realmente fugisse dele”, recorda Maria, que hoje vive na casa dos pais com a filha. O ex-marido, até onde ela sabe, foi morar em outra cidade.
Ela denunciou o agressor uma vez, e essa denúncia já foi muito em comparação a tantas outras mulheres que não conseguem nem mesmo registrar uma única ocorrência – pelos mais diversos motivos. Na última semana, por exemplo, recorda a coordenadora estadual da Casa da Mulher Brasileira (CMB) Ana Clara Auto, uma mulher assistida pela CMB contou que o companheiro a agride quando bebe, mas ela não quer fazer o boletim de ocorrência pois acredita no relacionamento quando a bebida não está presente.
“Sabemos que o uso de substâncias psicoativas, seja o álcool ou drogas ilícitas, agrava a situação da violência, temos muitos relatos disso não só em Salvador, mas em todo o estado. Mas presa nessa situação, é como se essa mulher não acreditasse que esse ciclo de violência aconteceria sem o álcool. Por isso a importância de um trabalho de fortalecimento da autoestima para que possamos fazer essa mulher entender que o álcool é um agravante e que esse homem é violento”, explica a coordenadora.
Criado por Dilma
Projeto do Programa Mulher Viver Sem Violência, do governo Dilma Rousseff, a Casa da Mulher Brasileira concentra serviços especializados e multidisciplinares para atender mulheres em situação de violência: acolhimento, triagem, apoio psicossocial, brinquedoteca, além de atendimento da Defensoria Pública, do Ministério Público, da Polícia Militar e Civil, e do Tribunal de Justiça, são alguns dos serviços que a CMB oferece. A sede de Salvador foi inaugurada em dezembro de 2023 e já foi procurada por mais de 600 mulheres.
“É um número que nos anima e nos entristece ao mesmo tempo, pois quer dizer que as mulheres estão procurando ajuda para sair desses ciclos de violência, mas também mostra o quanto a violência doméstica vem aumentando. Os nossos números crescem mais a cada dia”, lamenta Ana Clara Auto. Já a coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Cristina Neme, ressalta o peso e o poder que as nossas atuais leis já têm.
“Porém, elas não são aplicadas como deveriam, mesmo a Maria da Penha. É preciso que os profissionais e órgãos de justiça sejam melhor instruídos nesse sentido, assim como as mulheres. É urgente aumentarmos o debate sobre o assunto e criar meios para trazer um maior nível de consciência para essas mulheres através de debates públicos, alcançando inclusive nossas meninas e meninos. Só assim podemos almejar uma mudança real na sociedade”, afirma Cristina Neme.
E ainda há algo importante a ser mencionado: a questão da igualdade de gênero não é uma luta só da mulher, ela é do homem também, salienta o psicólogo da Secretaria de Política para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), Silvio de Jesus Valadão. “A igualdade do gênero nas relações traz benefício a todos, na medida que proporciona respeito mútuo, mais empatia, mais afeto e mais cuidado com o outro”, afirma Silvio, que trabalha no Núcleo de Enfrentamento e Prevenção ao Feminicídio (NEF) da SPMJ.
No NEF, são realizadas atividades de reeducação com o objetivo de fazer com que os homens agressores tomem consciência de seus comportamentos destrutivos para que suas futuras relações sejam saudáveis. “A sociedade só evolui através da informação e da educação. E embora o NEF atenda a homens em todos os níveis de escolaridade, para muitos esse vai ser o primeiro contato deles com temas como ‘onde e como nasce a violência’, ‘inteligência emocional’, ‘relacionamento abusivo’ e etc”, explica o psicólogo.
Medida protetiva
E esses mesmos homens, como muitos já relataram ao próprio Silvio, conscientizam outros homens nos seus meios sociais – seja um parente, a turma do futebol ou da igreja. “Ou seja, a grande maioria se transforma em multiplicadores. Isso mostra o quanto é importante esse tipo de atividade dentro da sociedade”, afirma o psicólogo. O NEF normalmente é procurado pelo Tribunal de Justiça, após a aplicação de uma medida protetiva, como uma medida alternativa caso o agressor não seja detido.
Lá, o agressor realiza uma entrevista individual e, caso seja apto, começa a participar dos ciclos de encontros, onde eles refletem sobre as violências praticadas e se responsabilizam, fazendo com o índice de reincidência desses homens possa chegar a taxa de 0%. “Acontece, por exemplo, da medida protetiva perder a validade em meio aos encontros, que perdem a obrigatoriedade. Alguns deixam de frequentar, mas outros, mesmo com a medida revogada, continuam participando”, relata o psicólogo.
Mas ainda há meios de evitar que esses homens se tornem agressores de fato, principalmente se o álcool é um elemento agravante dessa situação. O discurso do alcoólatra gira em torno de frases como: “eu bebo com o meu dinheiro”, “não devo nada a ninguém”, “o problema é só meu”, “paro quando eu quero”, “bebo quando eu quero”, lista o representante e membro dos Alcoólicos Anônimos (AA), Narciso Santos (nome fictício). “E são grandes falácias. No meu caso, por exemplo, não passava na minha cabeça que a minha família era codependente também”.
O consumo abusivo de álcool não atinge apenas a pessoa que bebe demais, mas toda a família e pessoas próximas. “O meu consumo e as minhas ações de alcoólatra preocupam a minha família, e ela adoece. Quando bebia, eu não tinha consciência disso, pensava que era um problema só meu. Por isso, o nosso propósito primordial é nos mantermos sóbrios e ajudarmos outros alcoólicos a alcançarem a sobriedade. Isso é um lema nosso: dar de graça aquilo que de graça nós estamos recebendo”, afirma Narciso.
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