SALVADOR
A TARDE Memória: conflito entre católicos e muçulmanos deixou mortos e feridos em Salvador
Por Cleidiana Ramos*
Por volta das 19 horas do dia 6 de dezembro de 1914, um domingo, na Rua dos Capitães, hoje Rua Ruy Barbosa, localizada no Centro Histórico de Salvador, ocorreu um conflito que abalou a comunidade de imigrantes vindos de locais que hoje são países independentes, como Líbano e Síria. A confusão terminou com dois mortos, alguns feridos e 42 presos. De um lado estavam católicos e do outro muçulmanos. Essa história registrada em edições de A TARDE aponta para islâmicos mais ou menos organizados na capital baiana, no início do século XX, e formada por outros grupos étnicos que não os descendentes de africanos malês.
>>Salvador sediou conflito entre católicos e muçulmanos atarde.com.br/atardememoria
Além disso, o episódio mostra a importância de batalha constante contra o ódio religioso em um estado de impressionante diversidade nesse campo como é a Bahia, protagonista na criação do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que será celebrado no próximo dia 21. Esta data celebra a memória da Ialorixá baiana Mãe Gilda Santos, vítima de seguidos ataques por conta da sua fé que deterioraram sua saúde e culminaram em sua morte por infarto.
Os mortos no conflito de 1914 foram o católico Abrahao Crachette (sobrenome também grafado como Krachette) e o muçulmano Mamede Geudi. O brasileiro Salvador Ferreira, que passava pela rua no momento da confusão, foi baleado no braço e na região das nádegas. Elias Barden também ficou ferido na região da cabeça, mas acabou preso ao lado de Abraham Sahama, José Antônio, Sute Chalone, José Mamede, Felippe Abrahao, Mamede Abdon, Rafhael Levita e Alexandre Antônio, dentre outros. Segundo a reportagem da edição de A TARDE de 7 de dezembro de 1914, as prisões ocorreram devido à denúncia de populares.
“De tempos a essa parte, nas ruas em que é mais densa a colônia turca irrompem conflictos, perturba-se a ordem tendo-se dado já scenas de sangue. Hontem, porém, à noite, à rua dos Capitães o movimento assumiu proporções alarmantes, de verdadeira luta à mão armada sendo trocados tiros e cahindo ao deflagrar das pistolas e dos revólveres dois cadáveres, registrando-se vários ferimentos”. (A TARDE 7/12/1914, p.5).
Questões complexas
Já a edição de 10 de dezembro traz mais detalhes que apontam como a desavença ultrapassou a questão religiosa. Os imigrantes do que seria depois chamada de comunidade sírio-libanesa ficou conhecida como “turca”, pois seus integrantes estavam na condição de súditos do Império Turco Otomano, um governo poderoso que começou por volta do século XIII, na região da atual Turquia, dominou parte do oriente médio, do leste europeu e do norte da África. Este governo, inclusive, herdou o que sobrou do império romano oriental com a queda de Constantinopla em 1453. Portanto, o grupo de povos reunidos nesse vasto território possuía características étnicas - religião, línguas, dentre outros componentes - diversificadas e muita instabilidade política. Com o início da I Guerra Mundial o sultão MehmedVI aliou-se à Alemanha.
“Essas tensões entre cristãos e muçulmanos ocorridas na Rua dos Capitães podem ser explicadas a partir de conflitos religiosos que já ocorriam no seio do Império Turco Otomano. Para o historiador André Gattaz ocorreram ao longo dos séculos XVII a XIX tensões entre as heterodoxias cristãs e muçulmanas, o que acabou estimulando o movimento emigratório”, explica a doutora em história e professora da Uneb, Cristiane Santana, que é autora do livro Maoísmo na Bahia (1967-1970).
De acordo com Cristiane Santana o alistamento militar imposto aos cristãos na área do hoje Líbano foi um dos componentes para a insatisfação política. “A emigração era uma forma de fuga. As Américas foram o destino de muitos, de modo que no Porto de Santos houve a entrada de 11.101 imigrantes sírio-libaneses em 1913”, completa a historiadora.
Dentre os imigrantes cristãos que chegaram na Bahia, a maioria professava o rito maronita, que é parte da comunhão católica mas mantém autonomia, inclusive com um patriarca próprio. Em Salvador de 2000 a 2004, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada na Avenida Sete, ocorriam celebrações maronitas, que tem como uma das características orações em aramaico, a língua da Palestina do tempo de Jesus. O rito foi instalado com autorização do então arcebispo de Salvador, cardeal dom Geraldo Majella com o objetivo de atender a comunidade sírio-libanesa da capital que professa essa fé. Os católicos turcos, portanto, tinham mais afinidade, devido a questões históricas e políticas, com a França, inimiga da Alemanha na I Guerra.
“Quando falamos desse território que foi o império turco muitas vezes pensamos a partir do que conhecemos agora, mas foi uma longa caminhada para que o Líbano e a Síria, por exemplo, se tornassem países. Os cristãos na Líbia são 30% da população. Muitos dos que vinham para cá professavam a fé maronita. Da mesma forma a religião muçulmana é bem diversa. São casos complexos, um mosaico religioso”, aponta o desembargador e escritor Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto.
Descendente de libaneses ele escreveu o livro Os primos, que conta a trajetória da sua família ao mesmo tempo que contextualiza historicamente a chegada de imigrantes ao Brasil. O bisavô de Britto, por exemplo, trouxe um dos filhos temendo a sua convocação para o exército turco. Já a sua esposa teve que ficar e morreu de fome em uma das muitas crises provocadas, além dos conflitos humanos, por desastres ambientais, como praga de gafanhotos.
De acordo com Britto, o Brasil se tornou um horizonte para os libaneses devido a relações mais antigas. Em 1876, por exemplo, Dom Pedro II visitou o país e fez esforços para que cidadãos libaneses viessem ao Brasil para se dedicar à agricultura, embora não lhes tenha sido oferecidas terras diferentemente do que ocorreu para atrair italianos e alemães. “Logo chegavam notícias de que havia no Brasil o cultivo de um fruto de ouro, que era o cacau. Foi assim que meu bisavô e avós migraram. Mas muitos se dedicavam ao comércio tanto no interior, como também na capital”, completa Britto.
Chefe muçulmano?
O informante da reportagem da edição de A TARDE de 10 de dezembro de 1914 tem o perfil adequado ao apontado por Lidivaldo Britto. Segundo o texto, João Geerge Rafful chegou a Salvador em 1910, depois de ter passado um tempo em São Paulo. Na capital paulista se dedicava a negócios com café, mas ao chegar em Salvador montou um escritório de miudezas. No texto há pistas que o mostram como alguém bem sucedido: as filhas, de 14 e 12 anos, foram educadas em um colégio francês, ainda em São Paulo. Ele morava em um chalé, era católico e fez considerações desabonadoras sobre os muçulmanos e o governo de Mehmed VI, além de elogiar a França.
“João Rafful em entrevista ao Jornal A TARDE clamava que a França libertasse os cristãos das garras do sultão. Essa tensão existente e a saída forçada do seu país de origem explicaria também a postura dos cristãos diante dos muçulmanos e o que eles representavam para sujeitos como João e muitos outros. Na Síria quase a totalidade da população é muçulmana”, analisa a historiadora Cristiane Santana.
Foi também Rafful quem contou uma versão mais pormenorizada dos dias anteriores ao conflito e que dá as pistas de que poderia haver uma organização da comunidade muçulmana. De acordo com ele, a confusão teve origem em uma subscrição que estava sendo feita para a Cruz Vermelha francesa. O muçulmano Mustafá Geballe, segundo ele, um “homem de bem apesar da sua religião”, comprometeu-se a ajudar, mas Mohamed Hage Hassan Bogdade que ele aponta como “chefe da seita” não gostou. Disse que o procurou para demovê-lo com os argumentos de que o Brasil era um país cristão, mas que não adiantou:
“Não fui attendido. E a conspiração se fez, agiu, tremenda, num prédio à rua dos Capitães. Dentro em breve, começou a compra de armas, punhaes, revolvers etc. Intervi de novo e recebi a promessa de que não haveria conflito. E infelizmente domingo se deu a tragédia”. (A TARDE, 10/12/1914, capa).
A linha seguida por Rafful apontou Hassan Bogdade como o principal responsável pelo conflito. O texto informa que ele era mascate, casado com uma brasileira e que fugiu. Há também uma invisiblização da vítima muçulmana. Depois da primeira notícia seu nome não é mais citado e, segundo Rafful, o enterro de Mamede Geudi foi providenciado pela polícia, enquanto o de Crachette ocorreu em grande estilo com o público ocupando seis bondes. Já o acusado pela morte de Crachette foi Ali Habaibi. Preso, alegou que não entendia português e um homem denominado Selim Salomão foi designado como intérprete. Sobre um suspeito de matar o muçulmano Mamede Guedi nenhum dos textos aponta.
A última edição com desdobramentos do caso é a de 15 de dezembro. Na capa o texto informa sobre uma visita da reportagem a dom Jerônimo Thomé da Silva, então arcebispo de Salvador sobre o caso. Este se mantém o tempo inteiro à margem tecendo considerações mais gerais sobre o cristianismo na França, que considera capaz de se reerguer. Sobre o conflito, dom Jerônimo aparenta a disposição de se manter em uma posição diplomática.
Novidade
O líder da comunidade islâmica na Bahia, sheik Ahmad Abdul disse que não tinha conhecimento de um conflito envolvendo muçulmanos em Salvador no século XX. O sheik está em Salvador desde 1992 em um esforço para recuperar as raízes do islamismo a partir dos chamados malês, uma corruptela da palavra “imale”. Essa expressão era usada para designar povos africanos de diversas etnias, como os hauças, convertidos ao islamismo.
Em 1835 foram os chamados malês que lideraram uma grande revolta contra a escravidão que sacudiu a América escravocrata e foi relatada no livro Rebelião Escrava no Brasil, do historiador baiano João José Reis, que já se tornou um clássico. “É uma informação nova e preciosa. É importante sempre saber de outros detalhes sobre o islamismo na Bahia. Precisamos explicar mais sobre nossa prática religiosa para combater o preconceito”, completa o sheik.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantêm a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Saiba mais: Os primos - crônicas de uma família libanesa na Bahia (Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto, 2004); Do Líbano ao Brasil: história oral de imigrantes (André Gattaz, 2ª edição. Salvador: Editora Pontocom, 2012) O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 (Sean McMeekin, São Paulo: Globo, 2011).
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia
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