SALVADOR
A TARDE Memória: Ernesto Simões Filho lança um jornal na condição de jovem à frente do seu tempo
Por Cleidiana Ramos
Um rapaz tem habilidade de comunicação, que sabe fazer soar espontânea e leve. O conteúdo que ele apresenta é bem articulado e preciso sobre o que está acontecendo no momento. O país apresenta um contexto político extremamente tenso e marcado por rupturas. Mas a apresentação do seu conteúdo de informação usa de forma adequada a tecnologia disponível para a plataforma que o conecta ao seu público. E tem mais: ele maneja muito bem as estratégias de mobilização para causas que provocam um engajamento imediato, pois escolhe aquelas que são de interesse público incontestável.
Parece referência a um youtuber , instagramer ou personalidade de sucesso do Twitter. Mas este cenário é o ano de 1912 e o perfil descrito é de Ernesto Simões Filho, que tinha acabado de fundar um jornal chamado A TARDE. Ele tinha 26 anos, uma idade em que, para a época, estava bem mais próxima da maturidade do que da juventude, mas ainda assim o novo empresário da comunicação baiana chegava fazendo barulho porque destoava do perfil comum aos donos de jornais do período. Era também o início de décadas de agitações fortes na vida política brasileira, com baianos ocupando espaço de protagonismo. O ano em que Simões Filho fundou seu jornal começou com o bombardeio de Salvador devido à intervenção do presidente Hermes da Fonseca, em um conflito na sucessão ao governo da Bahia.
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Livre de Direito, Simões Filho não vinha de uma família das chamadas elites baianas com várias gerações no poder, por exemplo. Ele nasceu em Cachoeira, em 1886. Seu pai, Ernesto Simões da Silva Freitas, tinha um negócio na esfera do que se chamava “secos e molhados”, um comércio onde se vendia de tudo um pouco. Depois teve que assumir a direção de uma rede de farmácias pertencente a um parente, que o convidou para assumir o negócio quando ficou doente. A família mudou para Salvador.
Vocação
Ainda nos tempos de Ginásio Baiano, ao lado de outros colegas, Simões Filho fundou O Carrasco. O jornal fez tanto barulho no tratamento das questões internas que foi suspenso pela direção. Em 1904, aos 18 anos, lançou O Papão, uma revista literária, que tinha como estilo o humor e rir de tudo, inclusive de quem o fazia, como anunciava seu editorial de estreia.
Após cinco números de O Papão, Simões Filho começou a se preparar para o seu novo negócio: A TARDE. Quando lançou seu periódico, o mercado de jornais tinha sete títulos circulando em Salvador, segundo o pesquisador Nelson Cadena: Diário da Bahia, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, O Democrata, Diário da Tarde, Jornal Pequeno e A Bahia. Para financiar seu jornal, Simões Filho usou a venda e aplicações de ações que possuía. Diferentemente da tendência local, escolheu o modelo de capital fechado.
E começou do zero. Roberto Marinho (1904-2003), por exemplo, herdou O Globo, o primeiro dos veículos das Organizações Globo do pai, Irineu Marinho. Assis Chateaubriand (1892-1968) começou o primeiro conglomerado de mídia brasileiro comprando o O Jornal, uma empresa já constituída.
Para uma aposta alta, era necessário estratégias. As de Simões Filho centraram-se na valorização dos temas e personagens da Bahia, além das campanhas de interesse público. A primeira delas foi apresentada na reportagem intitulada “Campanha de A TARDE pela remodelação das escolas”, publicada em 21 de outubro de 1912. O texto descreve como a Escola Masculina nº 1, localizada no Centro Histórico de Salvador (Rua do Saldanha nº 18) era totalmente inadequada: insalubre, exigia a subida de 34 degraus para chegar à sala de aula, que não tinha mobiliário. Caixotes serviam como mesas e cadeiras disponíveis para os alunos. E mais: a água para beber estava em um pote velho e um copo apenas servia para todos.
Na edição de 3 de julho de 1914, o jornal protestou pela falta de cuidado com a comemoração do 2 de Julho e relata a falta de eventos em lugares-chave para a celebração, como o Campo Grande e o Terreiro de Jesus. Então, o texto incentiva:
UMA IDEIA
Por que o povo não organiza amanhã, para domingo, um préstito, que percorra a cidade com os carros emblemáticos? Certamente, o sr. chefe de polícia e o sr. inspetor de Região não negarão essa organização cívica. O mais, fogos de bengala, etc., uma comissão conseguirá por meio de pequenos donativos, possíveis a todos os bolsos. (A TARDE, 3/7/1914, página 1).
Nove anos mais tarde, na festa dos 100 anos da Independência, A TARDE deu destaque à grande celebração. A edição do dia 2 de Julho de 1923 saiu com 25 páginas. Por mais sete dias a cobertura detalhou as comemorações com destaque para a homenagem a Castro Alves, com a inauguração da estátua em sua homenagem, na praça que leva seu nome. Em 1913, na edição de 2 de Julho, A TARDE apoiava a ideia de uma campanha de doações para dar ao poeta um monumento. O incentivo do jornal é sempre nessa linha: denuncia a negligência do poder público e incentiva saídas por meio da organização coletiva.
Na descrição da cerimônia de inauguração do monumento a Castro Alves há um registro raro: uma referência direta a Simões Filho colocando uma coroa de flores no monumento. É que, analisando edições do jornal, não há autorreferência ao fundador do veículo durante a sua vida, mesmo com sua extensa atividade em política partidária (foi deputado estadual e federal e ministro da Educação e Saúde no segundo governo de Getúlio Vargas).
Simões Filho parece realmente separar as duas trajetórias. A de jornalista é toda devotada ao cuidado com o seu periódico: inovações tecnológicas e gráficas. Assim, um ano após a sua fundação, A TARDE já possuía uma máquina alemã que permitia a impressão de 10 mil exemplares. A partir de 1914, o jornal, que inaugurou a publicação dos clichês na Bahia – reproduções de imagens a partir da gravação em placas de chumbo –, passou a produzir suas próprias peças. A cobertura da Primeira Guerra Mundial foi feita com a então moderna transmissão Western, realizada por meio de cabo submarino.
Em 1920, A TARDE tornou-se o primeiro periódico do Norte e Nordeste a usar o sistema de linotipos. Aos 34 anos, portanto, Ernesto Simões Filho já era o proprietário de uma empresa reconhecida como defensora das causas públicas da Bahia, moderna e que tinha o seu fundador no centro de um furacão por conta da ascensão de Getúlio Vargas ao poder e a instalação do Estado Novo, uma ditadura. Essa nova fase foi de campanhas pela liberdade de expressão, defesa da autonomia baiana diante da intervenção federal, mas também de perseguições, atentados, exílio e a censura ao jornal durante 11 dias. Mas aí já é capítulo para novas histórias.
Fontes: Edições de A TARDE; História da Bahia (Luis Henrique Dias Tavares); A TARDE (Consuelo Novais Sampaio, colaboração especial, CPDOC, FGV)
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