SALVADOR
A TARDE Memória: jornal inovou em estilo e forma para destacar o Carnaval
Por Cleidiana Ramos*

Desde as suas primeiras edições, A TARDE compreendeu a importância do Carnaval para Salvador. Mesmo no período em que o jornal ainda tinha poucas páginas, como nos anos logo após a sua fundação em 1912, a festa ganhou espaço privilegiado. Assim, o registro dos eventos realizados nos dias de folia permite não apenas identificar as transformações do Carnaval ao longo do tempo como também o esforço de A TARDE para inovar na linguagem e na apresentação gráfica durante a apresentação do maior evento realizado na Bahia.
A TARDE foi fundado em 12 de outubro de 1912. Infelizmente, na coleção das edições digitais falta a do Carnaval do ano seguinte à fundação, mas está disponível a de 1914. Aquele foi um ano difícil para o mundo devido ao início da I Guerra Mundial, que começaria cinco meses após a festa.
A aposta do jornal para apresentar o Carnaval de 1914 foi em uma linguagem, especialmente gráfica, que se dedicou não apenas à descrição da festa, mas também à sátira ao governador José Joaquim Seabra, mais conhecido com J.J. Seabra (1855-1942). Intitulado “Momo-pleno reinado da folia”- o texto é ilustrado por caricaturas dos personagens da política do período e um clichê, que era a técnica usada para reproduções de imagens usada pelo jornal.

Há ilustrações para marcar os temas abordados na descrição da festa e que nos permite mapear os elementos que integravam a programação do Carnaval em Salvador: os bailes, os clubes, cordões e pranchas que faziam elaborados desfiles pelas ruas.
“Dentre as muitas que circularam destinguiram-se “A Nave Maruja da Encrenca” tripulada por uma bela guarnição que na verdade encrencou a zona com a sua alegria esfuziante e os sons de um quarteto musical”. (A TARDE, 23/2/1914, capa).
Informação e análise
Durante, aproximadamente 40 anos, o jornal continuou a noticiar os preparativos e o desenrolar do dia a dia do Carnaval, mas não circulava no feriado da terça-feira. Na edição de 16 de fevereiro de 1920, por exemplo, um cartum, em quadrinhos, acusa quem parece ser J.J. Seabra, o então governador da Bahia novamente, de após um périplo pelo céu, purgatório e inferno ser rejeitado até por Momo que o acusa de tê-lo assassinado ao que a manchete faz coro: “Chi! Que Carnaval de gelo”.
As ilustrações dos primeiros anos abriram cada vez mais espaço para os clichês que exibiam cenas da festa nas ruas e nos clubes carnavalescos. O aumento da presença dos clichês é um indicativo do empenho de Ernesto Simões Filho (1886-1957), fundador de A TARDE, para utilizar as novas tecnologias relacionadas à impressão de jornais que estavam disponíveis.

Em 1914, por exemplo, ele enviou ao Rio de Janeiro Diomedes Gramacho, que é considerado o primeiro cineasta baiano, para aprender a técnica de fabricação dos clichês. Com essa iniciativa A TARDE, além de ter sido o primeiro periódico baiano a publicar os clichês, pôde montar a sua própria clicheria algum tempo depois.
Já nas edições sobre os carnavais de 1950 e 1960, começamos a perceber uma cobertura próxima do modelo do jornalismo mais contemporâneo: capas dedicadas completamente à festa e uso de várias imagens para tentar apresentar os diversos aspectos da folia.
Novas abordagens
Com o trio elétrico começando a se solidificar como o principal elemento do Carnaval em Salvador na década de 1970, a cobertura do Carnaval foi ganhando maior espaço e distribuição por vários dias em A TARDE. Recursos gráficos passaram a ser adotados para destacar o período especial, como na capa da edição de 7 de fevereiro de 1970.
Uma ilustração do Rei Momo e de um Careta estão nos extremos da palavra “Carnaval” cercada por outros símbolos da festa, como máscara, pandeiro, serpentina e confetes. É o que se chama “fólio”, recurso visual para enfatizar um conteúdo. A manchete faz coro a essa tentativa de ênfase: “Desde hoje somos súditos de Momo”. As páginas gráficas- fotos acompanhadas de um texto pequeno apenas para contextualização (lidão no jargão das redações) passam a ser mais frequentes e aproximaram a narrativa de um recurso que era utilizado pelas revistas de variedades como O Cruzeiro e Manchete.
Nessa cobertura, as estrelas são os foliões anônimos e o astro com maior visibilidade é o trio elétrico, que triunfa como o principal elemento do Carnaval baiano, em detrimento de outras manifestações, como as escolas de samba. A últimas delas a desfilar, segundo reportagem do jornal, foi a Bafo de Onça em 1985, fechando o capítulo de uma manifestação que, ironicamente, virou um trunfo ainda hoje para o Carnaval do Rio de Janeiro, que é a festa do tipo com maior visibilidade no Brasil. Aos poucos os blocos de Carnaval vão ganhando mais e mais organização semelhante à praticada por empresas. O Carnaval começa a ser compreendido como um negócio, ampliando-se para então se transformar em uma poderosa indústria do entretenimento.
Em meados da década de 1980, a música tocada para durar durante os dias de folia ganhou maior visibilidade para além das fronteiras da Bahia e características de movimento com nome específico: axé music.
Vocalistas de bandas ou com carreira solo conquistam status de realeza. São reis, rainhas e príncipes disputados pelas agremiações carnavalescas para valorizar o seu desfile. Os blocos ficaram mais especializados: de trio; afros, que mantém alegorias, fantasias e temas, em um diálogo mesmo que não tão direto, mas de forma, com as eliminadas escolas de samba; os afoxés levam o ambiente dos terreiros para o Carnaval de rua ao som do ijexá; os blocos de índio começaram a experimentar o desafio de se manterem como for possível; os blocos de samba persistem e insistem. Além disso as novidades ocorrem em um movimento dinâmico e ininterrupto dessa grande festa da Bahia com a consolidação total da indústria vinculada a ela na década de 1990.
“Da Castro Alves à Barra, o Carnaval 90 ganhou dimensões inesperadas, envolto que fora antecipadamente em expectativa pouco animadora: afinal, temia-se a violência desenfreada ou o desânimo decorrente dos preços escorchantes, da ausência de decoração das ruas, do pouco dinheiro no bolso. A animação se sobrepôs, no entanto, às circunstâncias, e a lambada ganhou a avenida, acompanhada por instrumentos de percussão, guitarra eletrificada ou instrumentos de sopro.
Nessa diversidade, blocos afros e de índios cruzavam com blocos de trios, blocos de crítica política, como o "Mudança do Garcia", e blocos de travestidos, como "As Muquiranas" “. (A TARDE, 28/2/1990, capa).
Especiais
O Carnaval de 2003 chegou em meio a uma reforma de estilo e gráfica liderada pelo jornalista Ricardo Noblat. Em janeiro, uma editoria experimental foi instalada para preparar material específico sobre o verão baiano. A estreia foi na semana da Lavagem do Bonfim e a principal característica era a oferta de textos mais leves e exploração de outras linguagens, como as infografias. Em relação aos temas, a pauta incluía história das festas, saúde, nutrição, serviços e eventos.
Durante anos posteriores, a cobertura especial do verão, de dezembro até a proximidade do Carnaval, foi mantida. Esse estilo da editoria de verão migrou para a cobertura do Carnaval de 2003. Com o auxílio do doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Roberto Albergaria, a proposta editorial baseou-se em contar histórias do Carnaval dos anônimos, com pouca ênfase para o desfile dos grandes blocos. Na capa da edição de 27 de fevereiro de 2003, o jornal anunciou a oferta de conteúdo para quem gosta de Carnaval e também para quem não tem tanto apreço pela festa, com reportagens sobre outros temas, como sexualidade, que foram veiculadas exclusivamente no Caderno 2.

Essa experiência ainda persistiu no ano seguinte, 2004, mas ganhou experimentação com escala maior no projeto intitulado “Carnaval do Papão”, desenvolvido em 2005. A ação foi inspirada na revista literária “O Papão” dirigida por Ernesto Simões Filho oito anos antes de fundar A TARDE e que tinha como principal característica a narrativa centrada no humor. Os textos da cobertura de Carnaval inspirada em O Papão tiveram uma linguagem mais próxima da crônica, mas sem perder o foco no que estava acontecendo, que é a base do jornalismo.
Foi uma narrativa híbrida. Para manter segurança em relação aos fatos do Carnaval sem depender apenas do inusitado foi fixado um tema: “Os sete pecados capitais”, com o mote de que em dias de folia era possível romper alguns limites, inclusive na própria equipe da redação de A TARDE. Assim, editores se transformaram em repórteres durante os dias de Carnaval.
Outra inovação foi o uso de pseudônimos para a assinatura dos textos, uma forma de aproveitar a relação do Carnaval com a brincadeira de esconder a identidade sob o uso das máscaras.
“Poucos lugares no mundo são tão propícios ao pecado como as ruas, vielas e becos da cidade da Bahia. A liberação panfletária, o prazer exacerbado, hedonismo assumido. Nosso destino é pecar. E a equipe de A TARDE entrou no Reinado de Momo com a proposta de romper com o ‘carnaval espetáculo’. Vamos em busca do humor dos pasquins, mergulhando no verdadeiro espírito da folia. Nosso programa: Rir. Inspiração: os 7 pecados capitais. Julgamento? Nenhum. Como padrinho, bebemos nas águas do pasquim O Papão, revista literária de 1904, criada pelo jornalista Ernesto Simões Filho, fundador de A TARDE. Vamos conosco, abram alas para o prazer, que o povo de A TARDE vai atrás da alegria”. (A TARDE, 5/2/2005, capa).
Por mais dois anos, O Papão continuou sendo a inspiração da cobertura do jornal. Em 2006, o simpático ogro, que era o símbolo do projeto, foi visitar os deuses do Olimpo e, no ano seguinte, brincou com o universo do cinema. Do ponto de vista gráfico, O Papão adotou uma apresentação mais leve e o retorno da combinação de fotografias com ilustrações que era típico do jornalismo do início do século XX quando a revista literária homônima surgiu.
Publicações especializadas
Mesmo nesses projetos especiais o jornalismo de serviços foi reforçado, mantendo-se informações sobre a infraestrutura de serviços públicos e privados relacionadas ao Carnaval, como também o que estava fora dele: saída da cidade, destinos mais procurados, dentre outros.
Outros produtos especiais foram criados, como o caderno Folia & Cia, publicado alguns dias antes do início da festa, que chegou a ter um equivalente em formato utilitário (Folia de Bolso), e a revista Camarote, que teve como linha editorial o noticiário específico desses ambientes frequentados por celebridades dos mais variados segmentos.

A partir de 2007, a cobertura de Carnaval voltou ao modelo cotidiano, mas o espírito da crônica reforçada pelo período de O Papão ainda persistiu, mesmo que de forma mais sutil. Nos últimos 20 anos, tendo como parâmetro os anos de 2010 e 2020, A TARDE voltou a adotar o estilo padrão de narrativa jornalística, mas ainda assim a cobertura de Carnaval não deixou de receber uma atenção cuidadosa: projeto gráfico específico; edições que, na Quarta-feira de Cinzas, chegavam a ter quatro cadernos, totalizando mais de 50 páginas especializadas na festa; material editorial com linguagem diversa, inclusive com as colunas especializadas, como as que retratavam o universo dos camarotes e integração entre as várias editorias, que possibilitava informações também sobre economia, folia no interior do estado, a partir do apoio de sucursais, nas outras capitais brasileiras e nos países que o celebram de forma mais forte.
Além disso, diante da revolução digital, a convergência com outras plataformas do Grupo A TARDE, como A TARDE FM, A TARDE Online, Revista Muito e aplicativos ganhou reforço para oferecer conteúdo em multilinguagens: vídeos, áudios, conexões com redes sociais, dentre outras.
A TARDE continua, dessa forma, a avaliar o Carnaval como um evento vinculado à potencialidade cultural baiana, reforçando um dos seus slogans: o jornal de toda a Bahia.
Na capa da edição de 26 de fevereiro do ano passado, Quarta-feira de Cinzas, o jornal celebrou um Carnaval marcado pela diversidade de ritmos. Mal sabíamos que passaríamos a olhar para esta edição com nostalgia, mas também renovando a esperança de que em 2022 já estejamos imunizados contra esse terrível coronavírus. Assim estaremos aptos para voltar a fazer uma festa com várias possibilidades do registro que alimenta a nossa memória coletiva, como tem feito A TARDE por mais de um século.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE
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