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Moradores contam a história de Salvador por meio de suas lembranças

Publicado quarta-feira, 29 de março de 2017 às 13:10 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Euzeni Daltro
Mestre Paulinho, 64, tocou em muitas casa de shows
Mestre Paulinho, 64, tocou em muitas casa de shows -

No ano em que a primeira capital do Brasil completa 468 anos, soteropolitanos – de nascimento ou de vivência – contam um pouco da história de Salvador por meio das lembranças de suas experiências. Além da mudança no modo de vida e nas relações entre as pessoas, os relatos traduzem uma cidade que não existe mais.

Os mestres Clarindo Silva, 75 anos, e Paulo Muniz, 64, contam a tranquilidade dos antigos carnavais e as andanças despreocupadas pelas noites do Centro. Já a artista plástica Martha Muniz, 70, lembra a vida no Maciel de Cima, onde só havia bregas, e dos encontros regados a música da juventude nativa do bairro da Liberdade. E o eletricista e artesão Geraldo do Nascimento, 57, fala de uma época em que apenas as histórias sobre fantasmas amedrontavam a comunidade do bairro de Pernambués, há mais de quatro décadas.

Imagem ilustrativa da imagem Moradores contam a história de Salvador por meio de suas lembranças
Área do atual centro financeiro era o 'play' de Geraldo, 57 (Foto: Margarida Neide | Ag. A TARDE)

O eletricista e artesão Geraldo Cruz do Nascimento, de 57 anos, nasceu e foi criado no bairro de Pernambués, onde ainda vive. Entre as suas lembranças de infância e adolescência estão vivências da época em que a Avenida Tancredo Neves, atual centro financeiro de Salvador, ainda não existia. “Antes só existia o prédio do jornal A Tarde. Onde hoje é o Salvador Shopping era um campo, onde joguei muita bola. O canal atrás da Grande Bahia era um rio limpo. As pessoas pescavam ali. A gente chamava de Rio de Dona Tivinha [referência a uma moradora da época]. Eu não pescava porque era pequeno, mas o banho era certo”, lembra ele.

Geraldo é filho de dona Luíza e seu Silvano, já falecidos. O casal era conhecido pelos trabalhos comunitários desenvolvidos no bairro e, principalmente, o Terno de Reis Rosa Menina. Na década de 70, lembra Geraldo, havia uma mobilização grande em torno dos ternos, tanto por parte da população, quanto dos órgãos públicos. “Todo mundo queria participar. No dia da saída, o terno ia para a Lapinha e, na mesma noite, para a Praça Municipal, onde ocorria o julgamento. Era como se fosse escola de samba, tinha um prêmio para o terno. Cinco dias depois, as rádios anunciavam o vencedor. O terno ganhava medalha de ouro. Naquela época, era de ouro mesmo, não era banhada”, lembra ele, saudoso. 

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Martha, 70, viveu um romance imaginário por mais de um ano (Foto: Margarida Neide | Ag. A TARDE)

A artista plástica Martha Muniz, 70 anos, fala com orgulho sobre as vezes em que as prostitutas do extinto Maciel de Cima, no Pelourinho, externavam o desejo de suas filhas serem como ela. “Eu fui uma referência para elas”, diz Martha, ao passo que batia com a mão direita no peito.

Ainda jovem, ela foi convidada a dar aulas de tecelagem em um projeto desenvolvido para atender os filhos das prostitutas que trabalhavam e viviam no local. O Maciel de Cima, hoje Rua João de Deus, era uma rua onde só havia prostíbulos.

“Não sabia que existia um lugar igual aquele. Foi um choque para mim. Havia muita desigualdade social, muita sujeira, ratos e as pessoas dormindo ali”, lembra ela, cujo ateliê funciona na Rua João de Deus. “Mas não existia esse individualismo de hoje, as pessoas se ajudavam, eram mais próximas, mais amigas. Existia amor entre as pessoas. É desse aconchego que sinto saudades”, lembra ela, que fala com animação sobre as “meninas” da época. “Elas andavam limpas e arrumadas. As p... perderam a elegância”.

Da sua vivência na antiga Salvador, a artista plástica guarda uma lembrança um tanto inusitada das vivências da antiga Salvador, como o período em que “namorou um rapaz sem ele saber” na Rua Chile, como ela mesma descreveu. O caso se deu na época em que todas as segundas-feiras a elite baiana colocava sua melhor vestimenta e ia passear na Rua Chile – famoso ponto de encontro.

“Eu namorava com um cara e ele não sabia. Foi meu primeiro amor. Namorava de longe. Cheguei a mandar uma carta me declarando, mas não disse que era eu. Por mais de um ano, eu dizia para as pessoas que tinha namorado. Mas não tinha nada”, contou.

Filha do bairro da Liberdade, Martha viveu onde hoje funciona a Feira do Japão e relata um cenário completamente diferente do atual. “A Feira do Japão e a Rua Lima e Silva eram lugares de encontro de intelectuais. E a gente se reunia para fazer serenatas e festas”, lembra.

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Mestre Clarindo Silva, 75, fala com saudade dos antigos carnavais (Foto: Margarida Neide | Ag. A TARDE)

As escadas rolantes da extinta Loja Duas Américas, na Rua Chile, virou atração turística em Salvador, no final da década de 50. Todos queriam ver e andar na nova engenhoca. “Foi uma emoção muito grande”, revelou mestre Clarindo Silva, 75 anos, da Cantina da Lua, que fez questão de conferir a novidade de perto.

Andar nas escadas rolantes da Duas Américas só não era mais emocionante que os antigos carnavais do Centro, quando, segundo ele, havia mais glamour. “Eu tenho uma saudade muito grande do Carnaval de antigamente. Tinha os caretas, os mascarados, tinha confete e aquela coisa de você jogar lança-perfume nas moças. As famílias colocavam as cadeiras de lonas na rua para assistir aos blocos passarem. Só tiravam as cadeiras na quarta-feira de cinzas e ninguém mexia”, conta ele. Com o riso sutil que lhe é peculiar, mestre Clarindo lembra o episódio em que o carro alegórico do bloco Mercadores de Bagdá incendiou, após o desfile no domingo de Carnaval, na Ladeira da Praça, em meados da década de 80. O carro trazia um dragão que cuspia fogo. “Todos os jornais publicaram que o bloco não desfilaria na terça-feira de Carnaval. Mas Nélson Maleiro [dono do bloco] bateu pé firme que sairia. Então ele colocou a seguinte frase no carro alegórico: ‘Os maus por si se destroem’. E o bloco desfilou. Nélson era muito inventivo”, lembra Clarindo.

O professor de percussão Paulo Muniz de Souza, 64 anos, o mestre Paulinho, é natural da cidade de Juazeiro, mas vive em Salvador desde os 12 anos. Filho único, conta que veio sozinho quando os pais morreram. E desde essa época começou a ganhar a vida com música. Há 15 anos, ele dar aulas na Escola de Percussão Didá. “Quando cheguei aqui, fiquei no Quartel dos Bombeiros, na Ladeira da Praça. Eu tocava lá”, lembra.

Da estadia no quartel, ele passou a tocar em blocos tradicionais de carnavais como o Jacu, os Barões da Barra, Vai Levando e no Baile Iemanjá do Clube Português. Tudo graças à ajuda de Cacau do Pandeiro. “Meu instrumento sempre foi bateria mas, naquela época, usava mais caixa de bateria”, disse.

Ele conta que trabalhou e ganhou muito dinheiro tocando nas casas de shows, nos bregas e durante os antigos carnavais. Na lista de lugares, estão os famosos bregas da Ladeira da Montanha como o “Meia três”, o 73 e o Maria da Vovó. “A melhor casa era a boate Tabaris, na Castro Alves, onde era o Glauber Rocha. Tinha muita mulher bonita, o dono da casa ia buscar as mulheres no interior”, conta ele. O dono era conhecido como maestro João da Matança. “Ele morreu novo. Tinha esse nome porque só faltava o instrumento dele falar. Ele era o melhor guitarrista da Bahia”, completou.

Já um dos melhores bailes, para mestre Paulinho, era o do Clube da Cruz Vermelha. Além de ser muito animado, o agradava ver as empregadas domésticas mais arrumadas que as patroas. O baile era sábado. Quando ele gostava de alguma moça, marcava para encontrá-la segunda-feira, no Largo do Papagaio, na Ribeira, outro ponto de encontro da época.

“Eu gostava de namorar na porta. Os pais da moça apareciam na janela toda hora. Teve um dia que eu saí zangado porque eu queria dar um beijo nela e eles na janela”, contou ele.

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