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BRT chega com atraso e é o mais caro já construído no Brasil

Além das questões ambientais, urbanísticas, a falta de estudos aapontou para a falta de sustentabilidade

Publicado domingo, 18 de setembro de 2022 às 00:00 h | Autor: Da Redação
Canteiro de obras do BRT em trecho  da avenida Lucaia
Canteiro de obras do BRT em trecho da avenida Lucaia -

A relação custo-benefício consagrou o sistema BRT (Bus Rapid Transit) no mundo, na segunda metade do século passado. Tratava-se de um conceito simples de transporte público, que unia faixas exclusivas para o trânsito de ônibus, deixando os deslocamentos mais rápidos, e facilidades para o passageiro (estações elevadas, na altura da entrada dos veículos, e pagamento antecipado de passagem). 

Além disso, o BRT desestimulava o uso de automóveis particulares por onde passava, ao delimitar um espaço exclusivo para a circulação de coletivos nas vias preexistentes. 

Tudo por um investimento proporcionalmente muito baixo, por parte do poder público, na comparação com outros modais, como metrô e trem.

Meio século depois, enquanto alguns dos BRTs mais bem-sucedidos do mundo no passado enfrentam questionamentos e problemas graves, em meio a uma nova realidade socioeconômica global, o sistema finalmente chega a Salvador. E chega sem nenhum dos predicados que o levaram a ser tão popular em alguns países até o início deste século. A começar pelo custo.

Previsto para ter operações iniciadas na próxima sexta-feira (23), em fase de testes, o BRT de Salvador é, de longe, o mais caro já construído no Brasil. 

O trecho que será inaugurado nesta semana, de 4,4 quilômetros, em área nobre da cidade – ligando a Pituba, na altura do Posto dos Namorados, ao Itaigara, nas proximidades do Shopping da Bahia –, custou R$ 283 milhões, segundo informações da própria Prefeitura, ou R$ 64,32 milhões por quilômetro. 

Como comparação, o valor é maior do que o investido pelo governo do estado na construção da moderna Via Metropolitana Camaçari–Lauro de Freitas, com extensão de 11,2 quilômetros (R$ 215 milhões).

O valor proporcional chega a ser seis vezes maior que o investido em sistemas semelhantes de outras capitais, como Recife, Fortaleza e Rio. E muito mais que o estimado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que calcula em entre R$ 10 milhões e R$ 30 milhões o custo por quilômetro de uma obra do gênero. 

Poderia ser pior: os próprios consórcios responsáveis pela obra ofereceram “descontos” à Prefeitura para a realização da construção, após o Tribunal de Contas da União (TCU) apontar indícios de sobrepreço nas licitações e iniciar auditorias nas contas. 

Neste primeiro trecho de operação, segundo o próprio prefeito Bruno Reis (UB), o “desconto” chegou a 46% do valor. Ou seja, pela licitação promovida pela Prefeitura, o custo para os cofres públicos seria o dobro.

Sem estudos

O elevado custo da obra, porém, está longe de ser o único problema do BRT em Salvador. Em um movimento sem precedentes na administração pública contemporânea do País, a Prefeitura, então sob gestão de ACM Neto, deu autorização para que as obras do modal fossem iniciadas, em 2018, sem que fosse apresentado nenhum tipo de estudo de viabilidade. 

Nem ambiental, nem de mobilidade, nem de impacto urbano, nem econômica. Ao ponto de os Ministérios Públicos Estadual e Federal ingressarem com Ação Civil Pública (ACP) conjunta contra a realização do empreendimento. O processo tramita na 14ª Vara Federal Cível.

A reação da opinião pública contra o início da construção também foi instantânea. Artistas do calibre de Caetano Veloso e Tom Zé, entidades de classe, como o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-BA), e ONGs globais, como o Greenpeace, e regionais, como o Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) e o movimento Canteiros Coletivos, se posicionaram contra o sistema BRT ainda antes de as obras começarem. Em vão. 

“A sociedade civil foi ignorada em seus pedidos”, afirma a vereadora Maria Marighella (PT), presidente da Frente Parlamentar Mista Ambientalista da Câmara Municipal de Salvador. 

O coordenador do Gambá, Renato Cunha, complementa: “não houve nenhuma possibilidade de diálogo com a Prefeitura”, afirma. “Apesar da nossa disposição em compartilhar os estudos que fizemos e os dados que levantamos, nunca quiseram nos ouvir”.

Riscos ambientais

Não tardou para que os resultados da ausência de estudos aprofundados sobre a construção aparecessem. Na contramão do que prega o urbanismo moderno, a extensa área verde que fazia as vezes de canteiro central da Avenida Juracy Magalhães Jr (Lucaia), até então uma das mais belas da cidade, desapareceu, para dar espaço a três viadutos. 

Mais de 300 árvores, algumas centenárias, foram retiradas. Dois rios que atravessam a região, o Lucaia e o Camarajipe, tiveram trechos tamponados.

“As avenidas percorridas pela obra do BRT acolhiam um grande corredor ecológico que abrigava inúmeras espécies de fauna e flora e servia como abrigo e travessia para muitos animais”, afirma a gestora do movimento Canteiros Coletivos, Débora Didonê. 

“Como em todas as obras invasivas da cidade, a Prefeitura não foi capaz nem mesmo de fazer o manejo de fauna. Cobras e outros animais foram encontrados perdidos nas proximidades das obras desde o início dos cortes das árvores”, completa a gestora.

A ativista alerta para riscos diretos que a obra, da forma como foi feita, traz para a população. “Rios foram tamponados, ou seja, foram cobertos. Eles deixam de fluir? Eles deixam de encher? As águas nunca abandonam seus territórios”, aponta Débora. “O futuro já se apresenta. As fortes chuvas já mostraram alagamentos severos em alguns pontos da obra e em seu entorno.”

Trecho da ACP movida pelos MPs Federal e Estadual, baseada em pareceres técnicos, demonstram outros prejuízos para a cidade. 

“O dano ambiental ocorreu; observa-se (…)  a morte dos rios que, entre outras funções, mantêm a temperatura amena e recebem água das chuvas a cidade”, diz o texto. 

“A poluição visual e sonora aumentou com a derrubada das árvores, a poluição do ar também aumentou, tornando as pessoas mais receptivas a problemas respiratórios. A concepção da obra não levou em consideração o bem-estar que uma cidade mais arborizada proporciona, nem as vidas envolvidas com a existência das árvores e rios”.

A advogada Gislane Junqueira Brandão, ativista ambiental e integrante do Movimento Não ao BRT, lembra que a tendência mundial é contrária às vias elevadas, que causam forte impacto visual e concentram “ilhas de calor” nas metrópoles. 

“Salvador anda na via contrária da tendência mundial de derrubar essas estruturas, inutilizá-las ou transformá-las em parques, uma vez constatado seu danoso impacto paisagístico, urbanístico e ambiental”, salienta. 

“A obra do BRT em Salvador impacta negativamente a cidade, a sufoca, a enfeia com suas estruturas pesadas, sufocantes. É uma aberração, um dano irreversível. Salvador não merecia isso”, afirma.

(In)sustentabilidade

Para além das questões ambientais, urbanísticas e de saúde pública, a falta de estudos aprofundados sobre a implementação do BRT em Salvador apontou para outro problema grave: a falta de sustentabilidade econômica do projeto. 

Levantamento realizado pela própria Prefeitura um ano depois do início das obras, em 2019, mostrou que, em horário de pico da manhã, a demanda pelo serviço que será oferecido pelo Trecho 1 do BRT era de menos de 15 mil passageiros – o que aponta, segundo o Manual do BRT, editado em 2008 pelo então Ministério das Cidades, para a subutilização do sistema. 

Ou seja, o BRT, onde está sendo construído, sequer era necessário e tende a ser deficitário. O parecer técnico do IAB-BA, incluído em uma ACP movida pelo instituto contra a obra, foi claro: “(trata-se de) um gasto desproporcional de recursos públicos se comparado a outras alternativas mais econômicas e eficientes” (de transporte). “Há alguma demanda no sentido da região do Shopping da Bahia para a Pituba, mas do Parque da Cidade até a Lapa (Trecho 2) é uma demanda que não existe”, avalia o arquiteto Carl Von Hauenschild, do IAB-BA. “Na verdade, mais de dois terços da demanda apontada por eles (Prefeitura) não chega realmente a ser necessária, mas esse cálculo foi feito por eles para justificar um empreendimento desse tamanho”.

Segundo o governador Rui Costa, a Prefeitura sabe que o sistema dará prejuízo. “É uma operação extremamente deficitária pelo volume de passageiros e pelos custos que estão embutidos nesse sistema, o município sabe disso”, afirma, lembrando que a administração de Salvador está andando na contramão do urbanismo mundial. “O BRT é um modelo ultrapassado. No mundo inteiro, está se retirando o BRT e Salvador está colocando. No mundo inteiro está se retirando esses elevados e fazendo vias no solo e Salvador está construindo elevado”.

A ACP movida pelos MPs estadual e federal chega a levantar a hipótese de que a obra do BRT tenha sido feita para outros fins. “A obra, de imensa monta, atende, na verdade, ao transporte individual, com mais pistas para carros que para os ônibus BRT”, diz o texto, lembrando que um dos objetivos de se construir sistemas de transporte público é exatamente o de tentar reduzir o número de automóveis particulares em circulação. 

Para carros

A conclusão dos MPs é a mesma da nota técnica produzida pelo IAB-BA, que ainda registra que 61% do investimento feito pela Prefeitura para o sistema de transporte público foi, na verdade, destinado a obras de melhorias do tráfego individual. “Já a partir daí é perceptível que a fonte de financiamento foi desvirtuada: como você gasta o dinheiro para melhorar o transporte público, mas mais de 60% disso vai para o transporte individual?”, questiona Carl Von Hauenschild.

“Essa obra é uma falácia, um projeto desnecessário travestido de BRT que, no fundo, só serve para ampliar o espaço do automóvel individual motorizado”, avalia o doutor em Urbanismo pela Ufba e coordenador do Observatório da Mobilidade Urbana de Salvador (ObMob), Pablo Florentino. “No fim das contas (e dessa obra), o que vamos constatar é que os carros continuarão sendo priorizados em detrimento do transporte público, do pedestre e do ciclista”.

“Soluções menos ‘opressoras’ poderiam ter sido usadas, que conversariam com o meio ambiente, com os espelhos d’água e que manteriam a flora e a fauna daquela região – e que custariam muito menos”, argumenta o urbanista. “É uma intervenção violenta no tecido urbano, que não é só demorada, mas também muito mal planejada”.

Von Hauenschild concorda. “O futuro do desenvolvimento urbano é a redução de automóveis individuais, o incentivo ao transporte público, seja ônibus ou metrô, e que eles passem por corredores verdes”, afirma. “Esses elevados de concreto estão sendo destruídos no mundo inteiro, enquanto nós estamos construindo. É um contrassenso: estamos investindo no passado”.

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