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Centro Antigo é o guardião da memória

A coexistência de diferentes culturas é um dos fatores que influenciaram a formação de Salvador

Publicado sexta-feira, 29 de março de 2024 às 08:00 h | Atualizado em 29/03/2024, 08:55 | Autor: Madson Souza
Imagem ilustrativa da imagem Centro Antigo é o guardião da memória
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Paralelepípedos, casarões coloridos, igrejas barrocas e praças históricas - o Centro Antigo guarda a memória viva dos 475 anos de Salvador. A coexistência entre a arquitetura pensada pelo colonizador português e os elementos da cultura africana no espaço são uma síntese da cidade e até da história do País. E só com pés no chão e ouvidos atentos dá para experimentar essa região tão conhecida, mas ainda com tanto a ser descoberto.

Quem afirma isso é o jornalista, escritor, agitador cultural e dono do restaurante Cantina da Lua, Clarindo Silva. “Andar a pé e de ônibus é a melhor maneira de conhecer a geografia física e social do lugar”, ensina. E há muito para conhecer. De acordo com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur), o Centro Antigo compreende os seguintes bairros: Centro, Centro Histórico, Comércio, Dois de Julho, Calçada, Lapinha, Nazaré, Tororó, Barris, Macaúbas, Barbalho, Saúde, Santo Antônio e Liberdade.

O Centro Histórico de Salvador, bairro do Centro Antigo, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1984 e reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Patrimônio da Humanidade em 1985.

O museólogo e idealizador da empresa Odu Imersão Cultural, Eldon Luís, explica que os centros Antigo e Histórico de Salvador “são mais do que simplesmente áreas urbanas antigas- são testemunhos vivos da história, da cultura e da resiliência do povo baiano, que continuam a inspirar e a moldar o destino da cidade”.

Quem bem sabe disso é Clarindo, uma figura quase que folclórica do Centro Histórico. Não é difícil encontrar com ele - rotineiramente trajado de branco -, nos arredores da Cantina da Lua. O agitador cultural vive na área desde os 12 anos de idade e conta que já viu muita coisa. Quando ele chegou à região, o Centro Histórico ainda vivia as consequências de ter deixado de ser um grande centro político, social e econômico.

Clarindo conta que houve, nos anos 1940, uma migração das famílias tradicionais da região para Vitória, Graça e Barra. Ele acompanhou também um processo de esvaziamento da área nos anos 1970, com o fechamento de pontos importantes para os moradores. Como forma de resistir ao abandono do Centro Histórico, Clarindo fundou - com familiares, companheiros e sambistas da cidade -, em 1983, o Projeto Cultural Cantina da Lua, cujo o primeiro ideal foi “a luta pela revitalização do Centro Histórico e preservação da memória cultural da Bahia”.

Ao contar sobre a Cantina da Lua, Clarindo não esconde o orgulho. “Eu a vejo como quartel-general da luta intransigente pela defesa do Centro Histórico e da preservação da nossa memória cultural. A Cantina é a porta de entrada do Pelourinho e o marco da resistência na luta pela revitalização”, define. Com mais de 50 anos à frente da causa, Clarindo ainda conserva no olhar e na fala o mesmo amor que o motivou desde o início. “Meu partido, abaixo de Deus, é o Centro Histórico. Esse lugar, que é mágico, magnífico. Aqui, está a história desse País”.

Contribuição negra e ameríndia

Até chegar ao Centro Antigo que conhecemos hoje, muita coisa aconteceu. O historiador Daniel Rebouças explica que, nos últimos anos, vem sendo recuperada a contribuição da mão de obra afro-brasileira e também ameríndia na construção dessa paisagem. A divisão entre Cidade Alta e Cidade Baixa, por exemplo, é uma forma de ocupação relacionada a Portugal, mas não foi uma escolha natural dos europeus. Ele explica que a ocupação portuguesa iniciou-se na Barra, mas por conta da resistência indígena, o País colonizador foi obrigado a escolher um ponto alto para se defender melhor.

Essa forma de ocupação também é compartilhada pelos indígenas Tupinambás, que valorizavam regiões altas ou próximas de grandes rios. “Era a forma de ocupação mais comum deles. Isso explica porque foram encontrados recentemente achados arqueológicos na região do São Bento, por exemplo. Prova que a ocupação Tupinambá nessa região alta, vamos chamar assim, em contraponto a uma baixa, também faz parte da história indígena”, diz.

Já com relação à cultura negra, Daniel comenta que a influência ocorre de várias formas nesse espaço, principalmente no cotidiano. “Essa ocupação acontece do ponto de vista também da arquitetura, dos espaços, mas principalmente através de uma ocupação urbana cotidiana: na forma de trabalho, na forma de transporte, na forma de cultura”, lista.

Essa coexistência de diferentes culturas é um dos principais fatores da formação da capital baiana, de acordo com o historiador. “O fato é que os sinais dessas contribuições, digamos, principais da formação soteropolitana, que são os portugueses, os africanos e os seus descendentes, os indígenas e depois também outros grupos de imigrantes, marcam muito a cara dessa região”, completa.

Rosário dos Pretos: maior símbolo de fé e resistência

Quem vai ao Centro Histórico se vê cercado de igrejas por todos os lados. E quem visita a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, às terças-feiras, quando é celebrada uma missa católica que incorpora instrumentos da cultura africana, se vê em meio à diversidade religiosa típica de Salvador.

O cônego Lázaro Muniz, capelão da igreja, explica que esse é um local de acolhida da população negra. “O Rosário se constitui um dos marcos históricos dessa cidade. Ali os negros puderam ser acolhidos e viver enfim a fé cristã católica, mas a partir do seu olhar de negritude. Isso é importante, e essa igreja se traduz hoje como um dos polos de manifestação da religiosidade cristã católica com seu caminho de acolhida dos elementos de negritude”.

Esse movimento de resistência vai muito além da presença de instrumentos como atabaque e agogô. Adilma Sacramento, da Irmandade do Rosário dos Pretos, conta que cresceu se achando feia e lidando com imposições, como a de não poder usar batom ou esmalte vermelho por conta de sua pele. Foi ao conhecer a missa de terça-feira que Adilma mudou.

“Passei a me encontrar, passei a gostar de mim, a gostar da minha cor. Foi isso que me atraiu mais. Chegava aqui e via as irmãs daqui com os cabelos black e tal. Com o passar do tempo, fui acompanhando e me envolvendo com as atividades da igreja até chegar no estágio em que estou”, conta.

Para o cônego Lázaro, esse papel de resistência não pode se perder. “O Rosário é um lugar para fazer eco dessa cultura, dessa beleza, dessa dinâmica da fé, dessa dinâmica da resistência, da espiritualidade, de resistir diante de todo o racismo. Racismo religioso, racismo estrutural, racismo institucional, de todo esse processo de banalização da fé, das pessoas, de exclusão dos negros e negras, que ainda está hoje tão presente”, defende.

Rotina de lazer

A memória viva dos 475 anos de Salvador está nas pessoas que habitam o Centro Antigo, nas suas fabulações e histórias. É na praça ao redor do Coreto do Santo Antônio que mães tomam cerveja no fim de tarde enquanto os filhos brincam, e pessoas como o fotógrafo Paulo ‘Pilha’ se reúnem para esperar o pôr do sol. Enquanto contempla e aguarda, Paulo conta que nem sempre o Santo Antônio foi o polo gastronômico badalado que é hoje.

A coordenadora da Casa Cultural Reggie, Jussara Santana, que há 45 anos mora no Pelourinho, também testemunhou muitas mudanças. “Ando na Rua do Passo, em que foi filmado ‘O Pagador de Promessas’, vi Michael Jackson e Nelson Mandela. Faço parte disso. Tive meus filhos aqui, meus netos, sempre trabalhando com a cultura. Esse é um espaço de afirmação da diversidade cultural que vem trazida pelos nossos ancestrais. É a cara do Brasil”, resume.

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