SEMANA NACIONAL DE ARQUIVOS
Com ação para povo de santo, Cedoc A TARDE encerra participação na SNA
Evento reuniu sacerdotisas e sacerdotes de terreiros de Salvador e Lauro de Freitas
Por Tallita Lopes
“É importantíssimo saber que nossa história está sendo gravada, que tem alguma coisa para que amanhã os que estão chegando possam ver e conferir o nosso legado, o que nós deixamos e o que nossos ancestrais deixaram. Eu fiquei muito feliz hoje de ver fotos de acontecimentos que eu vivenciei. Foi muito importante lembrar de algumas ancestrais que estavam nas fotos desse arquivo. É saber da nossa história”. O depoimento de Mãe Neuza Cruz, ialorixá da Casa Branca do Engenho Velho da Federação, é uma amostra da atividade marcada pela emoção que encerrou, ontem, a participação do Centro de Documentação A TARDE (Cedoc) na 8ª Semana Nacional de Arquivos.
Organizada pelo Arquivo Nacional, a ação teve como tema “Arquivos Acessíveis”. A participação de A TARDE foi um marco no evento, pois é a primeira vez que um grupo de comunicação, com plataformas ativas, aderiu à proposta.
Além da Casa Branca, a atividade contou com a participação de membros das comunidades dos terreiros Cobre, Gantois, Kalé Bokun, Tumba Junsara, Alaketu, São Jorge Filho da Goméia, Santa Bárbara, Ilê Axé Opô Afonjá e Vodun Zo. A programação foi composta por uma apresentação sobre a história e serviços do Cedoc, com destaque para a exibição de registros sobre as religiões afro-brasileiras que compõem o acervo da unidade do Grupo A TARDE.
Relevância
Doté Amilton Costa, do Terreiro Vodun Zo, disse que, para ele, o evento teve importância pessoal e comunitária. “Para mim, que nasci e me criei no candomblé, tudo isso é muito significativo. O candomblé já foi muito perseguido. Hoje, ainda enfrentamos perseguições, mas também recebemos homenagens. É fundamental termos eventos como este com mais frequência para mostrar que somos gente boa, iguais às de todas as outras religiões”.
Mãe Lúcia Neves, mameto (o posto de liderança) do Terreiro São Jorge Filho da Goméia, localizado em Lauro de Freitas, elogiou a ação de abertura do Cedoc. “Foi emocionante. É importante como um evento como esse mostrou que existe um conteúdo que podemos acessar”, acrescentou.
Para Suzane Barbosa, ebomi do Terreiro Alaketu, acervos como o do Cedoc são o registro, em outras linguagens, do que se aprende nas casas de santo. É, portanto, em sua avaliação, mais uma oportunidade pedagógica especialmente para os mais jovens. “Toda a memória tem que ser partilhada e celebrada. Os jovens precisam conhecer a história e viver um pouco do que está relatado por meio desses acervos”, disse.
Tânia Bispo, ebomi do Terreiro Kalé Bokun, afirmou ver o acervo do Cedoc sobre religiões afro-brasileiras como uma reparação e uma tradução da linha do tempo dos terreiros de candomblé e uma forma contemporânea de registrar o cotidiano dos terreiros. “Hoje nós estamos aqui em um jornal, com nossas vestes, com nossos símbolos, com nossa identidade” ressaltou.
“É uma honra poder participar e quero parabenizar o Grupo A TARDE por nos possibilitar visitar este acervo nessa semana dedicada aos arquivos”, destacou Pai Valdemir Melo, tata de inquice do Terreiro Santa Bárbara, localizado em Lauro de Freitas.
Lindinalva Barbosa, ebomi do Terreiro do Cobre, ressaltou a sensação reconfortante que experimentou ao saber que existe uma memória fotográfica e textual sobre os terreiros. “É muito importante a gente ter acesso a uma memória que está resguardada, que é viva”.
Para o ogã e presidente da Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opô Afonjá, Emanuel Nascimento, a importância do acervo do Cedoc ultrapassa o universo do candomblé. “O acervo traz memórias e as gerações futuras podem aproveitar muito bem”.
Iorrana Verena, ebomi do Gantois, disse que, de tão emocionada, aproveitou para fazer os registros de todos os espaços que visitou. “Eu tenho filhos e saber que meus filhos podem vir aqui e buscar histórias sobre Mãe Menininha, sobre o Gantois e outros terreiros é gratificante”, reiterou.
O dia em que presenciei um novo discurso da luz das imagens de um acervo
Cleidiana Ramos*
De março de 2007 a dezembro de 2009, quando apresentei a dissertação intitulada O Discurso da Luz, orientada pelo professor Cláudio Luiz Pereira ao programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (Pós-Afro – Ufba), conheci a força das emoções que a materialidade da memória, como uma fotografia, é capaz de despertar. Lembro das lágrimas de uma sacerdotisa do Bogum diante de uma imagem de Doné Ruinhó, que faleceu em 1975. Após se recompor por conta do choro de cerca de dez minutos, ela disse: “É minha mãe, que não vejo há mais de 30 anos”. A minha relação com a coleção de fotografias das religiões afro-brasileiras do Centro de Documentação A TARDE (Cedoc) e outras peças do acervo tem ganhado novos contornos a partir de projetos como a coluna A TARDE Memória e REC, mas como tudo neste campo sempre vai surpreender. Na atividade desta terça-feira, 11, como parte da integração do setor à 8ª Semana Nacional de Arquivos eu tive a sorte de presenciar material do Cedoc se conectar à memória de representantes das comunidades de terreiro de Salvador e Lauro de Freitas.
Um conjunto de 31 fotografias saiu do seu estado de repouso no acervo do Cedoc, onde ficam acondicionadas em pastas de papel para garantir a sua conservação devidamente acompanhada pelo cuidado dos arquivistas Rubem Coelho e Valdir Ferreira. Elas foram organizadas para que sacerdotisas e sacerdotes representando quatro das nações do candomblé- angola, ijexá, ketu e jeje- pudessem vê-las em uma de suas representações materiais mediada pelas novas tecnologias- a digitalização.
É uma experiência mágica observar como Mãe Neuza Cruz, ialorixá da Casa Branca do Engenho Velho da Federação, recordou detalhes do dia em que árvores sagradas necessitaram ser aparadas por ameaçar algumas construções do terreiro. Foram muitas cobranças para que o poder público municipal fosse até a Casa Branca que já estava com o status de bem cultural do Brasil, o primeiro da ampla cultura afro-brasileira reconhecido nesta categoria pela então Sphan em 1984.
Naquele dia de 1985, quase um ano após o tombamento como se popularizou dizer, funcionários da Superintendência de Parques e Jardins da Prefeitura de Salvador (SPJ) foram submetidos a um rito de purificação. As ferramentas também- motosserra, facão, dentre outras- necessitaram ser banhadas, pois iam tocar em locais sagrados. É uma alegoria de como o Estado brasileiro, em suas várias instâncias, precisa reconhecer que há grupos culturais que necessitam ser tratados com direitos, mas respeitando que um deles é o de ser diferente na sua organização social. Segundo Mãe Neuza, o único que se machucou foi exatamente o funcionário que se negou a passar pelo rito de purificação para tocar nas árvores sagradas.
Quem é próximo das comunidades de terreiro sabe bem que o mágico não é algo aleatório ou distante da realidade. Apenas muitas vezes não é compreendido pelo cartesianismo da nossa cultural ocidental. Ainda assim, mesmo os racionalistas se dobram ao materialismo mágico como dizia o grande professor Ubiratan Castro de Araújo. Ou por Caetano Veloso que imortalizou essa certeza nos versos de Milagres do Povo: “Quem é ateu/e viu milagres como eu”. Pois é. O povo de candomblé sabe de muitas coisas e, por isso, não desdenha dos mistérios que lhes ensinaram a não separar mundo físico e mundo sagrado, urbano e natureza, afinal estão todos eles juntos e misturados. A sacerdotisa da foto que mencionei no início desse texto, Doné Ruinhó, a primeira a ser homenageada com um busto em área pública na capital da Bahia, durante a administração de Lídice da Mata, disse que sem folha e sem água não tem vodun, o nome que se dá aos deuses da nação jeje.
Ao abrir as portas do seu saguão principal e depois do seu acervo criado para atender a uma necessidade da produção do seu maior negócio, que é a informação, para o povo de santo, o Grupo A TARDE conectou-se a essa memória que é tátil, mas ao mesmo tempo carregada de carga simbólica. É material, mas se não tivermos a sensibilidade para a contemplarmos sob várias perspectivas volta para o seu estado de repouso e se cala. Assim não pode contar ou melhor evocar as muitas e muitas camadas de uma herança cultural de tantas civilizações que possuíam diferenças, mas tiveram que fazer a aliança pelas semelhanças, pois do contrário teriam sucumbido diante das consequências que foi essa tragédia chamada de escravidão.
Uma das grandes intelectuais negras brasileiras, Luiza Bairros, me disse certa feita que gostava da minha dissertação por mostrar algo que diante de tantas lutas que precisamos travar acabamos esquecendo: nós, povo de santo, sempre fomos muito visíveis nessa Cidade da Baía de Todos-os-Santos e, por isso, incomodamos alguns que alimentam o racismo e a intolerância. Segundo Luiza aquelas imagens do Cedoc A TARDE mostram e nos fazem lembrar disso. A coleção de mais de 1.400 registros exibem visitas de reis africanos aos terreiros baianos reconectando os dois lados do Atlântico; ritos de celebração, mas também da despedida da vida, como axexês e sihuns; presentes, e tantos outros elementos de religiões que souberam se manter dinâmicas inclusive na sua relação com a comunicação social.
Abrir o acervo para um grupo ainda pequeno diante das atuais possibilidades dos nossos projetos foi um grande passo para uma empresa do setor privado que está aprendendo a importância da memória e como ela não é sobre o passado, mas sobre o agora. Na era em que as tecnologias da informação e comunicação apresentam tantas novidades que nos deixam muitas vezes sem saber direito para onde nos levam, um arquivo analógico dá uma sonora gargalhada- como soa a de Exu, orixá patrono da comunicação social na tradição nagô- para em seguida sussurrar: “Ei. Não se deslumbrem tanto com o futuro porque o dia de hoje é resultado do que construímos ontem”. São pistas para compreender que abrir as caixas das memórias nos permite acessar as camadas para conectar o tangível e o sensível, uma conversa que a filosofia de base africana já domina muito bem há milênios.
*Cleidiana Ramos, iaô do Terreiro do Cobre, é jornalista, doutora em antropologia, coordenadora dos projetos sociais do Grupo A TARDE e curadora do acervo Cedoc A TARDE
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