SALVADOR
Com ameaças, Prefeitura expulsa moradores da Bacia do Rio Mané Dendê
Afetada por obras, população relata casos de todo tipo de tortura; organizações sociais pedem investigação
Por Da Redação
É com lágrimas nos olhos que a professora e pedagoga Maria José Bispo Silva, 54 anos, mostra sua casa, nas proximidades do Rio Mané Dendê, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, à reportagem de A TARDE.
“É uma casa espaçosa, rebocada, toda de piso, com quartos e banheiros grandes e um quintal com minhas plantas e árvores”, diz, orgulhosa, antes de chamar a atenção para o imóvel anexo. “É a oficina que construímos para o meu marido com muito sacrifício. É o que nos sustenta hoje.”
Maria José é uma das centenas de moradores de imóveis da região, a maioria com mais de uma década habitando a área, que estão sendo coagidos pela Prefeitura de Salvador para se desfazer de suas casas e comércios por preços muito abaixo dos praticados pelo mercado, por causa de uma obra que, em tese, seria feita para melhorar a qualidade vida da população da região.
Chamada de “Novo Mané Dendê”, a intervenção, de saneamento básico, urbanismo e regularização fundiária, tem financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), foi anunciada no fim da gestão do ex-prefeito ACM Neto e é divulgada com muita propaganda tanto pela atual administração municipal quanto pelo candidato a governador.
“É tudo balela, tudo história, é como se você estivesse contando um conto de fadas para uma criança”, acusa a professora. “Isso aqui não é uma história para crianças, é a realidade de um povo sofrido, que lutou para ter o que tem. Pago IPTU, água e energia. Não quero sair de minha casa, ninguém ali vai sair por querer. Estamos sendo forçados. Eles jogam uma proposta e você não pode dizer ‘não’.”
“Para nós, que construímos com sacrifício nossas casas, que são amplas e ótimas, com uma vizinhança maravilhosa, é um absurdo o que a Prefeitura está fazendo, ainda mais pelo preço que eles querem pagar”, argumenta Maria José, que desde a infância mora na região.
A professora conta que sua casa ainda não foi avaliada, mas que, pela oficina, o valor oferecido pela Prefeitura foi de R$ 27 mil. “A oficina é nossa fonte de renda e eles ofereceram um valor que não dá nem para comprar um lotezinho para construir outra. Se é para a gente sair, que a Prefeitura valorize o que a gente tem, para que a gente não vá para um lugar pior do que tem hoje”.
Muitos moradores, porém, já perderam suas casas e comércios – e, pior, alguns enfrentam atrasos no pagamento das indenizações. “Estamos sendo coagidos: eles dizem que, se a gente não assinar (o termo de desapropriação), o Ministério Público vai colocar a gente para fora sem receber nada, que a gente tem de assinar de qualquer forma”, diz o trabalhador da construção civil Raimundo dos Santos. “Assinei, saí da minha casa e não recebi. Tive de pegar empréstimo a juros para alugar outro lugar. Já tem gente pagando quase um ano de aluguel e nada foi resolvido.”
“Crueldade”
Nascido na comunidade, o advogado Jeferson Santos da Silva, membro da Comissão Especial do Terceiro Setor da OAB/BA e presidente do Instituto Suburbano de Ciências, Tecnologia e Inovação (ISCTI), qualifica a situação como “crueldade e desumanidade” da Prefeitura com a população.
“Os moradores, na sua grande maioria, acabam acatando os abusos da Prefeitura porque não têm entendimento dos fatos – a maior parte da comunidade afetada é formada por pessoas extremamente vulneráveis, em todos os aspectos, especialmente sociais e econômicos”, relata.
“Quando tentam reclamar, eles ainda são acuados por uma equipe que deveria fazer assistência social e por advogados, que estão lá prestando serviço para a Prefeitura. Famílias são humilhadas, coagidas e hostilizadas, levadas ao sofrimento e ao empobrecimento, por parte da Prefeitura.”
De acordo com o advogado, quando a situação é devidamente explicada para os moradores, eles “entram em desespero”. “Muitos chegam a adoecer e a ter problemas psicológicos”, relata. Maria José confirma: “as pessoas estão ficando doentes por causa disso. Uma vizinha começou a ter gastrite, minha sogra já não dorme, fica zanzando a noite toda pela casa preocupada”, conta. “A casa dela é de laje coberta, toda de piso e com uma área imensa na frente, e eles querem dar só R$ 65 mil. Isso é inadmissível.”
O bitoleiro Laércio Pereira de Oliveira, 52 anos, morador há 33 anos da região, disse ter recebido uma proposta de R$ 55 mil por sua residência. “O problema é que, por esse valor, eu não acho outra nem parecida com a minha” afirma. “Quando tento explicar isso (aos assistentes sociais da Prefeitura), eles dizem que o valor é esse e pronto. E que se eu procurar a Justiça, não vai adiantar nada. A assistente social chegou a falar assim: ‘com esse dinheiro, você consegue um barraco em qualquer lugar’. Como uma pessoa, ainda mais uma assistente social, pode falar isso? Eles estão humilhando as pessoas.”
O pintor e pastor evangélico Sinésio Anunciação, 46 anos, relata que a situação tem causado brigas familiares. “Tenho observado várias situações assim na comunidade, briga entre irmãos, famílias se separando”, conta. “Como é o poder público, a Prefeitura, quem está pressionando os moradores, as pessoas ficam com a sensação de não ter a quem recorrer. Se sente refém.”
Moradora da região desde os 7 anos, Anacilda Santos, 53 anos, conta que foram oferecidos R$ 3 mil por uma faixa de 23 metros da frente de sua casa. “Um valor desses nem de longe é o justo, não corresponde”, pontua. “E o que a gente faz? Mesmo sem poder financeiramente, a gente tem que dar um jeito e colocar um advogado nessa história.”
Força-tarefa
De acordo com o advogado Jeferson Santos da Silva, a quantidade de reclamações relativas às intervenções da Prefeitura na área está levando as organizações sociais que atuam na região a acionar a Justiça. “Após tanto enfrentarem sozinhas esses problemas, as organizações estão mobilizando a OAB/BA, por meio da Comissão do Terceiro Setor, a Defensoria Pública e o Ministério Público, a fim de formar uma força-tarefa”, informa.
“Acredito que esses órgãos, empenhados na justiça social, estabeleçam uma negociação com a Prefeitura e garantam direitos que trazem dignidade à pessoa”, avalia. “Eu, como advogado, sempre que possível forneço atendimento jurídico aos moradores da região, mas se faz imprescindível a intervenção desses órgãos, porque há uma grande quantidade de pessoas vulneráveis sendo diretamente afetadas pelo projeto.”
O advogado também cobra o BID para que acompanhe e vistorie o andamento das intervenções presencialmente. “A Prefeitura de Salvador, desde o mandato do prefeito ACM Neto, não cumpre as leis do nosso ordenamento jurídico e as diretrizes estabelecidas pelo BID, formalizadas em contrato, para a realização dessa obra”, afirma. “O BID, por sua vez, também não fiscaliza in loco as ações da Prefeitura, ficando refém de relatórios enviados pelos órgãos municipais.”
Silva adverte que, caso não haja intervenções do banco na relação entre Prefeitura e moradores da área do Mané Dendê, as organizações que tentam defender a população podem acionar mecanismos internacionais de investigação para acompanhar o caso. “Se o BID permanecer inerte, vamos acionar o MICI (Mecanismo Independente de Consulta e Investigação), que é o escritório independente que auxilia o banco a averiguar possíveis impactos sociais e ambientais negativos de intervenções financiadas por ele”, afirma o advogado.
Em nota, a Secretaria de Infraestrutura e Obras Públicas (Seinfra) argumenta que as negociações são feitas de forma personalizada com cada morador e, quando escolhida por ele a opção de indenização, o montante é definido por meio de “avaliação justa”, seguindo normas técnicas e assegurando que o morador fique em condição igual ou melhor que a atual. Para tanto, é utilizado valor de mercado que é atualizado anualmente através de pesquisa conduzida pela Secretaria da Fazenda (Sefaz). “Salientamos ainda que os moradores da poligonal beneficiada com o projeto Novo Mané Dendê são atendidos no Escritório Social que possui também uma unidade móvel para tirar as dúvidas e, também, para a negociação e suporte necessários”, diz o texto.
Interesses
A professora Maria José avalia que os interesses envolvidos na requalificação passam longe da melhoria de vida da população da região. “Esse projeto não visa a beneficiar os moradores”, argumenta. “É um projeto que tem uma visão grande de ganho para a construção civil e a especulação imobiliária, porque esse lugar é muito rico por conta da barragem, da cachoeira e do Parque São Bartolomeu, com uma visão linda. Esse projeto é para valorizar a região e privatizar essa área.”
O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento Bahia (IAB-BA), Luiz Antônio de Souza, compartilha da ideia de Maria José. “Intervenções desse tipo, com essa abrangência territorial, não são discutidas com a sociedade, pois sempre possuem interesses por trás”, testemunha. “Por isso, devemos questionar a quem esse tipo de intervenção interessa. Os discursos, em sua maioria, giram em torno da melhoria da condição de vida dos moradores, mas a verdade é que intervenções desse tipo não têm como foco principal a população que mora ali, e sim a atração de investimentos para essas áreas, porque a cidade de Salvador é vista pelo poder público como uma oportunidade de negócios”, afirma.
Souza evoca a lembrança da “requalificação” do Pelourinho, promovida pelo grupo de Antônio Carlos Magalhães, no fim do século passado. “Temos memória curta, mas é bom lembrar do que aconteceu com o Pelourinho: o objetivo era tornar ele um polo de turismo, mas se elegeu um modelo de intervenção que tirava a população de lá, quando muito da sobrevivência daquele lugar dependia de sua população”, recorda.
“A verdade é que se eles querem 'requalificar' um lugar, é porque ali já existe uma qualidade”, argumenta o arquiteto. “Então essa requalificação é para quem? As pessoas que moram nessas regiões investiram seu trabalho e vidas em um lugar que, socialmente, não tinha importância. Essas pessoas foram para lá, criaram laços, acesso, buscaram formas de ter esgotamento, de ter água e energia. Esses terrenos foram valorizados por causa deles, pelo trabalho deles.”
Depoimentos
“Nós fomos para uma reunião que seria de negociação, mas que na verdade é uma imposição. Eles disseram: ‘o que vamos pagar é isso, ou a senhora aceita, ou vá contestar na Justiça – e se a senhora for à Justiça, sabe que isso vai se estender’. E realmente vai. Eu me sinto completamente coagida e oprimida. Não quero sair de minha casa, ninguém ali vai sair por querer. Estamos sendo forçados. E se é para a gente sair, que a Prefeitura valorize o que a gente tem, para que a gente não vá para um lugar pior do que tem hoje. Vale lembrar que o discurso deles no meio disso tudo é que eles estão fazendo um trabalho de valorização da vida humana. No projeto, eles dizem que iriam nos ressarcir ‘o valor material e imaterial’ perdido com essa requalificação. Eles já não estão valorizando o valor material, imagine o imaterial. Uma das sugestões da assistente social foi que a gente pegasse o dinheiro que eles querem dar, com o valor reduzido, ‘completasse e comprasse outra’. A pergunta é: completar com o que? É uma sugestão imoral. Você construir sua casa e ver demolirem sua história... Eu não vou aguentar. A gente fez tudo, cavou, fez as ferragens, carregou bloco por bloco, trançou concreto, ajudou pedreiro, fez melhorias... (chorando) Não vou aguentar ver derrubarem a minha casa.”
Maria José Bispo Silva, 54 anos, professora e pedagoga, há 43 anos no Mané Dendê
“A gente quer um valor justo para encontrar um novo lugar, para que a gente consiga mudar para um lugar que seja tão bom quanto a nossa casa hoje. E é isso que eles não dão. Nosso trabalho e vida até aqui foram dados para construir essas casas, o nosso lar, e eles nem mesmo fingem que valorizam isso. A nossa vida está aqui, literalmente, e eles fazem muito pouco caso de tudo que construímos. Não fui contra ao projeto, a princípio eles disseram que iam requalificar a região. Mas eles estão apenas desvalorizando a gente, nossas casas, nossos laços com os vizinhos e tudo o que construímos durante a nossa vida aqui.”
Genivaldo de Jesus Silva, 57 anos, mecânico, há 42 anos no Mané Dendê
“Eles estão tirando de quem não tem, por isso eu não entendo porque as pessoas estão ‘comendo’ caladas. Sei que eles estão com medo de represálias, mas a situação toda é absurda. Na minha casa, eles querem tirar 23 metros na frente, do meu quintal, e querem pagar apenas R$ 3 mil. Um valor que nem de longe é o justo. Não corresponde. É uma área particular. E o que a gente faz? Mesmo sem ter condições financeiras, a gente tem que dar um jeito e colocar um advogado nessa história. Muitas outras casas estão nessas áreas que eles dizem ser da Prefeitura e ficam alegando que foi invasão, mas a grande maioria dessas pessoas estão aqui há muitos e muitos anos. Cadê o direito dessas pessoas? Eu estou aqui desde os 7 anos de idade. As famílias aqui têm filhos, netos e até bisnetos criados nessas casas, e eles chegam querendo tirar tudo dessas pessoas.”
Anacilda Santos, 53 anos, desempregada, há 46 anos no Mané Dendê
“Hoje estou vendo tudo que consegui construir indo por água abaixo com esse projeto que eles estão fazendo. Com o valor que eles estão querendo me dar – R$ 55 mil – eu não acho outra casa nem parecida com a minha. Quando eles marcam as reuniões, eles simplesmente não deixam a gente falar, não deixam a gente contestar e dizem que, se não aceitarmos, vai ser pior para a gente. Com esse valor a gente não consegue achar uma casa digna e, quando a gente tenta explicar isso, eles dizem que o valor é esse e pronto. A assistente social chegou para mim e disse: ‘com esse dinheiro, você consegue um barraco em qualquer lugar’. Como uma pessoa, ainda mais uma assistente social, pode falar isso? E a advogada deles ainda me disse que se eu for procurar a Justiça para tentar resolver, será pior, porque eu ainda terei os gastos com o advogado e não vou resolver nada. Ela pode falar isso para as pessoas? É humilhação, a Prefeitura está humilhando as pessoas. Trabalhei tanto, durante tantos anos, para ter minha casinha, para agora ela virar nada e eu precisar começar do zero. É difícil e humilhante.”
Laércio Pereira de Oliveira, 52 anos, bitoleiro, há 33 anos no Mané Dendê
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