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Construído nas ruas, movimento antirracista ocupa as redes sociais

Ativistas digitais abordam questões raciais de forma direta ou transversal

Publicado segunda-feira, 20 de novembro de 2023 às 05:20 h | Autor: Jane Fernandes
Léo Santos criou Mãe Rita
Léo Santos criou Mãe Rita -

Cerca de 70% da população brasileira usa redes sociais, segundo o Data Reportal, iniciativa que compila dados de hábitos online em 230 países. Alguns divulgam seus empreendimentos, outros se conectam com amigos e muitos utilizam esses canais para combater preconceitos. Hoje, Dia da Consciência Negra, certamente não faltarão postagens abordando a desigualdade racial, mas para os criadores de conteúdo entrevistados por A Tarde, o combate ao racismo faz parte do cotidiano.

O desejo de reverter a escassez de personagens com foco nas religiões de matriz africana provocou o nascimento de Mãe Rita, criada por Léo Santos, como marco inicial da sua carreira de ator, em 2019. Com mais de 113 mil seguidores no Instagram @leosantos_, ele concentra suas postagens nessa rede que tem mais de 113 milhões de contas ativas no Brasil (segundo a Meta), embora também poste conteúdo no TikTok e mantenha uma página no Facebook.

“Quando a gente sente essa necessidade como artista, a gente procura tentar agregar no meio social, colocar coisas que as pessoas possam se identificar”, comenta Léo. Embora tenha alguns outros personagens e também mostre um pouco de si nas redes, é Mãe Rita a principal porta-voz do seu discurso pela preservação das tradições do candomblé, onde foi iniciado aos seis anos, e contra a intolerância religiosa e o racismo.

O debate da desigualdade racial começou a ficar mais evidente no trabalho de Joanna Guerra quando sua produção voltada para moda sustentável desembocou no empreendedorismo, com foco exclusivo em mulheres pretas. Quase dez anos se passaram desde que criou seu blog, já extinto, e começou a ganhar espaço no IG @joannaguerraoficial. Para ela, independente da abordagem direta no conteúdo postado sua presença digital é sempre antirracista.

Atualmente, Joanna fala de beleza, crossfit e autoconhecimento. “Eu estou fazendo curso de psicanálise, então a minha ideia é falar sobre saúde mental da mulher negra especificamente. Não tem como não falar de forma racializada, porque eu sou uma mulher preta que mora em Salvador. Inclusive essa temática da saúde mental é pensando também de forma antirracista, de, digamos assim, enegrecer a psicanálise. Então eu falo desse lugar, de coisas que me atingem, me afetam”, ressalta.

Diferenças

Enquanto Joanna diz ainda estar entendendo a dinâmica do TikTok, Samira Soares considera que é nessa rede onde está seu conteúdo mais orgânico, indo além da política, mas sem fugir dela. “Falar sobre empoderamento, sobre a beleza negra, poder discutir sobre uma maquiagem que funciona em pele negra, isso ainda é política, mas eu gosto de falar também com um aspecto mais fluido”, argumenta a doutoranda em Literatura.

Presente no TikTok e no IG com a página @narrativasnegras - onde tem 10,2 mil e 22,3 mil seguidores respectivamente - ela começou no Facebook, há oito anos, escrevendo críticas sociais, e depois agregou o feminismo negro, que fundamenta sua atuação até hoje. “No Instagram eu falo mais sobre questões raciais, literatura, ainda faço algumas análises e críticas sociais, e o lifestyle, que é exatamente essa minha rotina de estudante, palestrante, organizadora de festa literária…”, conta.

Adotando Príncipe do Gueto como nome social, para além de nomear sua persona digital, o ativista passa temporadas de três a quatro meses em Salvador, mas ainda não mora na cidade, onde pretende fixar residência. Nascido em São Paulo, ele trabalhou como fotógrafo em Nova York, morou nas ruas por quatro anos e hoje seu IG @umprincipedogueto é seguido pelo ministro Sílvio Almeida, entre outras figuras de destaque na luta pela igualdade racial.

Documentarista e produtor, ele tem cerca de 115 mil seguidores no IG e está buscando ganhar espaço no TikTok. Quando começou a usar as redes, seu objetivo era mostrar suas fotografias, mas elas foram cedendo espaço a comentários sobre igualdade racial, até que a mobilização do Black Live Matters fez com que o conteúdo antirracista ocupasse todo seu espaço. “Eu falo que nós, pessoas negras, a gente já nasce no ativismo”, analisa.

Amor e ódio

Com diferentes formas de combater o racismo nas suas redes, todos os produtores de conteúdo entrevistados têm um ponto comum na presença digital: recebem relatos de transformação e também ataques raivosos. Eles são unânimes em dizer que os chamados haters passaram a aparecer menos à medida que seus trabalhos ganharam maior alcance e os seus próprios seguidores cuidaram de rebater os comentários agressivos, mas cada um lida com a questão a seu modo.

“Eu sempre lido com haters, porque nosso país é um país que não acredita que existe racismo, então o primeiro hater é aquele que nega a existência do racismo no Brasil, diz que é mimimi, que isso não existe, que eu estou me vitimizando. Isso para mim é muito absurdo de observar, eu já tive um canal no Youtube. Lá em 2014, quando eu criei esse canal, eu sofri muita violência racial na internet”, comenta Samira, do @narrativasnegras.

Embora garanta que sua ‘bolha’ é generosa, pois pouco tem haters, Joanna já se deparou com comentários ofensivos que terminam em argumentos equivocados na linha “não sou racista, meu marido é negro”. Quando ocorrem ataques, ela ignora, mas dedica bastante atenção às mensagens contando sobre suas mudanças de percepção a partir do seu IG. “Vêm no direct dizer que nunca tinham pensado sobre aquilo, que não sabiam que aconteceu ou que não queriam enxergar daquela forma”, relata.

Alerta

Doutor em Estudos Comparados sobre as Américas e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Richard Santos chama a atenção para limitações do ativismo antirracista quando ocorre exclusivamente nas redes sociais digitais, considerando que também nos organizamos em redes fora da internet. Um dos pontos destacados por ele é a ideia de que ter um grande número de seguidores será suficiente para furar a ‘bolha’ e alcançar novos públicos.

“A rede social é programada para uma manutenção de poder”, alerta o pesquisador. Ele ressalta que essas plataformas foram criadas para a pesquisa de comportamento e tendências, buscando entender os usuários enquanto consumidores e “desconstruir a sua cidadania”. Assim, todas as contas nessas redes são parte do interesse desse algoritmo que orienta a entrega dos conteúdos e “foi construído para uma manutenção de poder”.

“As redes sociais, as plataformas, as programações… toda a estrutura tecnológica por trás delas parte de uma matriz brancocêntrica de dominação e para manutenção dessa dominação”, argumenta Santos. Dentro dessa perspectiva, quando é aberto espaço para os historicamente excluídos desses canais de comunicação gera uma ideia de alívio, mas o algoritmo cuida de fazer com que elas se comuniquem entre si, sem alcançar quem não integra aquele ativismo.

Para fragmentar o poder do algoritmo, ele afirma ser necessário conjugar a articulação nas redes com o sólido papel das ruas, para que assim o algoritmo não necessariamente consiga controlar o alcance do ativista. Em sua avaliação, os movimentos centrados nas ruas também ganham ao agregar o uso dos canais digitais, podendo trocar experiências com grupos em diferentes partes do mundo.

Programação

Hoje (20/11)

-       A 44ª Marcha Zumbi e Dandara dos Palmares sai da Praça do Campo Grande, às 14h; no mesmo horário acontece a concentração da 20ª Caminhada da Liberdade, em frente à Senzala do Barro Preto, no Curuzu, no mesmo horário.

-       Abertura do Festival Afrofuturismo – Ano V, que segue até amanhã e acontece simultaneamente em oito espaços do Centro da cidade. Acesse a programação completa no site afrofuturismo.com.br.

Amanhã (21/11)

-       Colóquio Internacional de Embaixadores Africanos, no Museu de Arte Contemporânea, às 19h, com apresentações do Balé Folclórico da Bahia e de Lazzo Matumbi.

-       Início do Festival Internacional do Audiovisual Negro do Brasil, que segue até o dia 25, com atividades em diversos pontos da cidade. Veja a programação no site fianb.com.br.

Quarta-feira (22/11)

-       Começa o Festival Salvador Capital Afro, que segue até o dia 25 no Quarteirão das Artes Barroquinha. Confira a programação no site salvadordabahia.com/festivalcapitalafro.

Sábado (25/11)

-       Desfile de blocos afro e afoxés (Olodum, Ilê Aiyê, Araketu, Malê Debalê, Muzenza, Filhos de Gandhy, Didá, Filhas de Gandhy, Cortejo Afro, A Mulherada, Bloco da Capoeira, 100 baianas) pelo Centro antigo, a partir das 14 horas.

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