SALVADOR
Ditadura tentou intimidar a UNE ameaçando expulsar seu presidente do país
Por Cleidiana Ramos*
Em 1982 estava avançando o processo de redemocratização do país após a ditadura militar iniciada com um golpe que começou em 31 de março e foi finalizado em 1º de abril de 1964. Mas em um regime de exceção não há segurança legal ou institucional, como o então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Francisco Javier Ulpiano Alfaya Rodriguez, pôde sentir na própria pele.
Javier Alfaya nasceu na Espanha, mas vivia no Brasil desde os 7 anos. A nacionalidade estrangeira foi o pretexto utilizado pelo ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, para tentar expulsar o estudante do país. O que o governo ditatorial militar, auxiliado por alguns civis, não previu foi a reação em cadeia contra o procedimento. Uma campanha em favor de Javier Alfaya foi iniciada e com força para ganhar apoio de diversos segmentos sociais, como registraram as edições de A TARDE.
Esse episódio do início da trajetória política de Javier Alfaya, que já teve quatro mandatos na Câmara de Salvador, foi deputado estadual e assumiu por um mês a vaga de deputado federal após ficar na suplência, lembra em alguns momentos a história do livro O processo, de Franz Kafka. No romance, Joseph K. vive a angústia de ser processado sem entender os motivos enquanto cada vez mais o peso da máquina judicial começa a esmagá-lo. No caso de Javier Alfaya, o ataque do Ministério da Justiça surpreendeu por chegar em um momento em que a ditadura começava a perder fôlego. Tanto que eleições diretas para senador, deputado federal, deputado estadual, prefeitos e vereadores – com exceção das capitais dos estados que ainda estavam na condição de áreas de segurança nacional – foram marcadas para novembro daquele ano.
A possibilidade de expulsão do então presidente da UNE foi noticiada com chamada na capa de A TARDE em 5 de maio de 1982: “Caso venha a participar de qualquer manifestação de caráter político ou se associe a organização ou partido político, o presidente da UNE, Javier Alfaya, espanhol de nascimento, mas desde os 7 anos no Brasil, poderá ser expulso ou deportado do país. A este respeito, ele será, novamente, alertado pela Delegacia de Estrangeiros de Salvador ou de São Paulo, locais onde concentra suas atividades, depois de ter indeferido, pelo ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, seu pedido de naturalização. A justificativa apresentada pelo Ministério da Justiça para não atender ao pedido de Alfaya, hoje com 25 anos, foi a de que não preenche os requisitos do Artigo 112 da Lei dos Estrangeiros, que exige, em seu item VIl, “bom comportamento” do interessado”. (A TARDE, 5/5/1982, capa).
Na avaliação de Javier Alfaya, ao torná-lo alvo de um procedimento administrativo, mas que ameaçava sua estadia no país onde vivia desde criança, a ditadura tentava, em meio à proximidade de sua derrota, mostrar algum tipo de força. A tentativa de intimidação veio por meio da chamada Lei dos Estrangeiros, que estava sendo usada também, de acordo com Alfaya, contra padres da Igreja Católica que apoiavam movimentos populares e pela posse da terra.
“A Comissão Pastoral da Terra (CPT) tinha muita força no oeste da Bahia onde aconteciam muitos casos de grilagem. Vários padres estrangeiros davam apoio a trabalhadores rurais. Em Salvador, ações em bairros como o Beiru e São Caetano tinham à frente padres, em sua maioria italianos”, relata Alfaya. De acordo com ele, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde cursava arquitetura, havia acontecido um caso de expulsão de uma aluna estrangeira do curso de economia, mas antes de 1975, ano em que ele ingressou.
Javier Alfaya foi eleito para a presidência da UNE em setembro de 1981. Anteriormente tinha exercido o cargo de diretor de cultura da entidade representativa dos estudantes e que havia se tornado um dos polos de resistência e enfrentamento à ditadura.
Surpresa
Mas se o plano era intimidar qualquer tipo de ação da UNE, a ameaça de expulsão de Javier Alfaya foi em direção oposta. A campanha por sua permanência ganhou fôlego e se tornou um movimento apoiado por artistas, sindicatos e políticos. Na edição de 10 de junho de 1982, por exemplo,
A TARDE noticiou que uma proposta de concessão de título de cidadão de Salvador para o presidente da UNE, sugerida pelo vereador Agenor de Oliveira, foi considerada passível de aprovação até por Osvaldo Barreto, um vereador do Partido Democrático Social (PDS), a sigla que substituiu a Aliança Renovadora Nacional (Arena) que deu apoio ao regime ditatorial na era do bipartidarismo, quando a oposição a ele estava aglutinada no Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Na Assembleia Legislativa da Bahia (AL), o caso ganhou repercussão com o discurso do deputado Filemon Matos, do PMDB, que foi rebatido por Luís Cabral, do PDS. Em sua réplica, Matos questionou por que o colega recentemente havia apresentado um pedido de título para um filho de espanhol além de apontar o que considerava ilegalidades no processo. Esse debate foi publicado em A TARDE na edição de 26 de maio de 1982.
Para defender a permanência do então estudante foi criada a Comissão Pró-Naturalização e Permanência de Javier. A partir da mobilização foram organizados shows, vigílias e outras ações. O slogan “Javier é brasileiro” passou a correr o Brasil e a campanha chegou a outros países, como a Espanha, onde estava parte da família de Javier.
“Se era uma tentativa para intimidar a UNE, não funcionou. A campanha cresceu muito. Foram muitas ações, mas me lembro de uma charge que dá uma boa dimensão do que estava acontecendo. Ela mostrava o presidente da Volkswagen e da Mercedes porque essas multinacionais tinham estrangeiros como presidentes e que davam opinião sobre as questões nacionais, especialmente a política econômica. Então as gravuras mostravam os dois com a inscrição ‘eles podem’, mas não o presidente da UNE”, relata Javier Alfaya.
E isso para alguém que havia vivido 18 dos seus 25 anos em Salvador. “Meu pai veio em 1962 para trabalhar na fábrica da aguardente Jacaré e da fábrica Saborosa. Um ano depois eu, minha mãe e minha irmã viemos ficar com ele. E antes, em 1912, um tio já tinha vindo para Salvador’, completa.
Batalha
No âmbito jurídico, a luta se concentrou em tentativas de obtenção de habeas corpus e mandados de segurança, pedidos seguidamente negados pela justiça. A defesa de Javier ficou sob a responsabilidade, inicialmente, da advogada Ronilda Noblat, conhecida por seu empenho em defender vítimas do regime ditatorial.
“A advogada Ronilda Noblat deu entrada ontem, na Justiça Federal em um habeas-corpus preventivo em favor do presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Javier Alfaya indiciado na Lei dos Estrangeiros por atividades políticas. Durante quatro horas e meia, Alfaya prestou depoimento ontem na Polícia Federal, em Salvador onde falou de suas atividades na Presidência da UNE e de sua atuação política”. (A TARDE, 22/5/1982, p.3).
Outros conhecidos juristas dedicados à defesa de vítimas da ditadura também participaram das estratégias para a defesa de Javier Alfaya, como Luiz Eduardo Greenhalgh e Luiz Carlos Sigmaringa Seixas. “Foi um período tenso porque havia, inclusive, muita provocação. Eu passei um tempo sendo atacado por panfletos apócrifos colados em postes próximos à minha casa. No programa comandado por França Teixeira, em uma TV local, eu era seguidamente atacado. Então decidi que iria aceitar ser entrevistado. Pedi ajuda ao empresário Pedro Irujo, que também era espanhol e depois entrou no ramo da comunicação, mas coloquei algumas condições: não aceitava os closes usados para constranger os entrevistados; tinha que ser ao vivo e assim aconteceu. Mas durante a entrevista, França Teixeira perguntou o que eu achava das forças armadas. Eu apenas respondi que militares fizeram barbaridades com estudantes. E isso foi adicionado ao inquérito”, acrescenta Javier Alfaya.
Pela necessidade de cuidados como esse, Javier não pôde, por orientação dos advogados, ir a um dos atos em seu apoio, que aconteceu no Campo Grande, onde fica a estátua em homenagem ao 2 de Julho, e que teve a participação de artistas como Lazzo Matumbi.
Na edição de 12 de junho de 1982, A TARDE noticiou outra das atividades em apoio ao estudante: o show “Canta Bahia em Defesa de Javier”, realizado no Teatro Vila Velha com a participação de artistas como Zelito Miranda, Carlinhos Cor das Águas, Lui Muritiba, Jorge Papapá, Lula Carvalho, Sueli Sodré, Grupo Garagem, grupo de dança Tran-Chan e os dançarinos Pedro Paulo e Ema Alfaya, esta irmã de Javier.
A TARDE publicou, entre março e novembro de 1982, ao menos 14 textos sobre o caso. Um, inclusive, no espaço do editorial que é a área em que um veículo de jornalismo expressa sua opinião. Com o título “O governo e a UNE”, a nota de poucas linhas adotou o tom de crítica em uma amostra que, mesmo com a ameaça ainda de censura, era uma nova postura de crítica ao autoritarismo: “Espanhol de nascimento, mas vivendo no Brasil a quase totalidade dos seus 25 anos, o atual presidente da UNE. Javier Alfaya, teve indeferida a sua naturalização brasileira, sob uma alegação — ausência de bom comportamento — que não esconde o evidente significado político do ato”. (A TARDE, 8/5/1982, p.4).
Espera
Mas para não deixar dúvidas do quanto é angustiante um contexto sem democracia, o alívio para Javier Alfaya só ocorreu no início do governo de José Sarney, em 1985. Eleito como vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, ainda de forma indireta por meio de votos de deputados e senadores, Sarney assumiu o governo em março. Tancredo Neves, após uma cirurgia que resultou em várias complicações, morreu em abril e, assim, José Sarney se tornou o presidente da chamada Nova República iniciando o período de redemocratização do país que se sedimentou com a promulgação de uma nova constituição em 1988.
“Com a Nova República, Ronilda Noblat e Luiz Eduardo Greenhalg pediram o arquivamento do inquérito. O ministro da Justiça, Fernando Lyra, publicou a portaria e ele foi suspenso. Até então eu estava na condição de um estrangeiro com visto permanente. Em agosto ou setembro de 1985 é que saiu a minha naturalização em um ato em que, com mais nove colegas estudantes, recebi o meu certificado de nacionalidade brasileira”, acrescenta Javier Alfaya.
A memória dessa história vale para lembrar que, infelizmente, a euforia com o discurso de Ulisses Guimarães ao erguer a atual Constituição em vigor – quando disse que tínhamos ódio e nojo à ditadura – não foi a derrota completa do autoritarismo. Ele continua à espreita como os casos em que artistas e professores vêm sendo coagidos, inclusive em processos movidos pelo Ministério da Justiça devido a críticas contra o presidente Jair Bolsonaro. São ações que surpreendem por ter como ponto de partida elementos banais, mas o caso que envolveu Javier Alfaya mostra que, muitas vezes, o ardor autoritário se aproveita de um pequeno detalhe.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia
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