SALVADOR
Em Salvador, Papais Noéis negros chamam atenção
A figura do Bom Velhinho atrai a atenção do público, ao se tornar uma representação que reflete a diversidade
Por Ian Peterson*
A representatividade é uma das palavras que podem descrever o Natal de Salvador deste ano. A cidade, com a população mais negra fora da África, agora tem um Papai Noel negro como representante da prefeitura, o principal órgão público municipal. Essa figura tão tradicional do Natal em todo o mundo tem uma identidade única na capital baiana.
"A gente vê nos olhos das pessoas a felicidade", diz orgulhoso Evilásio da Silva Bouças, o Papai Noel negro da cidade de Salvador, sobre a reação das pessoas que o veem no Centro Histórico da cidade, trajado como o Bom Velhinho.
Evilásio contou como foi escolhido para representar o Papai Noel de Salvador, que cumpriu várias programações pelo Centro Histórico, incluindo um cortejo. "Os organizadores da prefeitura de Salvador buscaram uma temática especial, destacando a cultura baiana com desfiles de baianas, capoeira e representação dos indígenas, além de carros alegóricos representando os diversos segmentos que contribuem para a efervescência cultural da cidade."
Bouças, que também é presidente do Conselho Municipal das Comunidades Negras (CMCN), falou sobre o sentimento de ser uma representatividade. “Vemos nos olhos das pessoas a felicidade. Gente chorando, abraçando 'que felicidade! Agora a gente tem um Papai Noel negro', batendo na pele ou batendo no peito e mostrando o punho cerrado. Mas a gente quer transformar isso em ações que beneficiem as pessoas”, destacou.
Inclusão
O sociólogo Aílton Ferreira destaca a importância de incluir representantes negros como uma das figuras icônicas do Natal e os motivos que levam a presença do Papai Noel negro a mudar a visão da sociedade sobre a comunidade.
“Gerações anteriores viram um homem branco, de barba branca, olhos azuis, simbolizando a bondade e a esperança de um dia melhor. No Brasil, sempre se associaram gestos positivos aos homens brancos e gestos negativos aos homens negros. No entanto, quando Salvador tem um Papai Noel negro, as crianças se veem nele porque a nossa população é 85% negra; as pessoas se veem nele e aprendem com ele que a possibilidade de homens negros serem generosos, serem bondosos é algo real, que é possível”.
Aílton também destaca que, apesar de ser uma figura lendária e um bem cultural disseminado, "são poucas figuras simbólicas do planeta que têm a representação que o Papai Noel tem".
Outro representante de Papai Noel é Orlando Nascimento, que desempenha o papel no Parque Shopping da Bahia, em Lauro de Freitas. Ele faz esse papel desde o ano passado e contou que se sentiu acolhido por todos. “Crianças, adultos, idosos de todas as cores vinham me abraçar e diziam como estavam orgulhosos de me ver naquele papel. É 100% de aproveitamento. O shopping gostou, as pessoas gostaram, e eu me sinto muito honrado representando a comunidade”, contou.
Inspiração
A icônica figura natalina também vem chamando atenção em outro shopping. Leopoldo Conceição está no Shopping Center Lapa e se emociona ao falar da sensação de ser inspiração para pais e crianças. “Muitos chegam, me abraçam e falam para o filho ‘olha aí, o nosso representante’”, contou. Além das crianças, os adultos também querem tirar fotos com o Noel.
Entre as crianças que passavam no local, estava a pequena Alice Ohana Matos, que fez questão de tirar uma foto com o Papai Noel Leopoldo, expressando animadamente seu desejo: "Eu quero uma boneca". A inocente manifestação de Alice revela que, para ela, a cor do Papai Noel não tem importância, evidenciando a naturalidade com que as novas representações são recebidas pelas crianças.Para Leopoldo, a tendência é que o cenário continue mudando e que a presença desse representante para a população negra seja uma tradição e destacou a participação das pessoas nesta mudança. “A nossa evolução está muito grande. O povo está se conscientizando cada dia mais sobre o que ele deve fazer e o que ele pode fazer. Acredito que terá muitos e muitos por aí”. comenta.
Sobre o cenário de mudanças, Ailton Ferreira enfatiza que o Papai Noel negro rompe a tradição que sempre teve como representante um bom velhinho de origem europeia, um Papai Noel de origem católica, como enfatizou o sociólogo. Para ele, o atual Papai Noel rompe com essa tradição ao ser representado como um homem negro do candomblé.
"Ao circular pela cidade, ele simboliza uma expressão de autoafirmação e aceitação, especialmente para a criança negra que se vê representada nesse ícone festivo. Esse novo retrato do Papai Noel é mais do que uma simples mudança estética; é a criança negra se vendo num lugar legal. Cada menino que vê o Papai Noel na televisão ou na rua, ela começa a se ver lá também. Isso é didático, isso é uma cultura antirracista”, afirmou.Apesar de achar positivo um natal com diversos símbolos de Papai Noéis, o sociólogo afirma que ainda é cedo para considerar uma tradição consolidada a presença de um Papai Noel negro.
Tradição
A tradição ainda é o branco. Precisamos ter mais "Papais Noéis negros nas escolas, nas brincadeiras de escola, nos clubes, nos shopping centers", explicou. Na visão dele, a escassez de Papais Noéis negros pode refletir um padrão mais amplo de sub-representação em cargos de destaque. "Quando você olha para os retratos dos governadores da Bahia, não vê um negro. Dos prefeitos de Salvador, tivemos apenas um prefeito negro há 40 anos, 50 anos atrás, que mesmo assim ficou por pouco tempo", conta.
Segundo Ferreira, ao olhar para um desses retratos, uma criança pode se perguntar por que não há uma pessoa que a represente nas fotos. Apesar disso, ele vê como uma grande conquista ter um representante negro na figura do Papai Noel. "É um bom começo para sinalizar para a sociedade que as pessoas negras também podem estar em todos os lugares, assim como as brancas. Temos o Papai Noel, e por que não ter um governador um dia?", frisa.
Por fim, o sociólogo destacou que a imprensa pode desempenhar um papel importante na maior aceitação desses novos tempos. "Foi por meio dos meios de comunicação que várias gerações aprenderam a admirar a representação branca. Seguindo essa lógica, os meios de comunicação são fundamentais para discutir diversidade e abordar a questão da inclusão racial', finalizou Aílton.
* Sob a supervisão do jornalista Luiz Lasserre
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