ENTREVISTA – GOLI GUERREIRO
‘Foi sempre o povo negro que moldou o Carnaval’
Antropóloga fala sobre a origem dos blocos afros e como eles são fundamentais para a cultura brasileira
Por Divo Araújo
A história dos blocos afros, que completa 50 anos agora, vai muito além do Carnaval baiano. É a história de luta para manter viva às tradições do povo negro e reafirmar a riqueza da cultura que veio do continente africano, se transformou aqui e é muita mais diversa e complexa do que se pensa.
Isso é o que explica a antropóloga e escritora Goli Guerreiro nesta entrevista exclusiva ao A TARDE. Autora de livros como ‘A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador’ e ‘Terceira Diáspora’, Goli fala sobre a influência do candomblé no Carnaval, a criação do samba-reggae e a inspiração de movimentos como black power na formação dos blocos afros, entre outros assuntos. Acompanhe tudo isso na entrevista que segue.
O Carnaval deste ano tem como tema os 50 anos dos blocos afros. Como foi a erupção deste movimento?
Os blocos afros vêm de uma linha evolutiva dos modelos carnavalescos negros. Quando acaba o entrudo (antiga festa luso-brasileira) e começa o Carnaval, no final do século 19 e na virada para o século 20, já tínhamos os afoxés levando a estética religiosa dessacralizada para a avenida. Para mostrar que o candomblé era uma coisa de paz, uma religião que agregava e lutava por uma comunidade. Esse modelo carnavalesco do afoxé é o original, que vai sendo modificado, dinamizado. Depois, vêm as batucadas, os cordões, as escolas de samba, que depois se transformam em blocos de índio e vão se transformar nos blocos afros. Tem toda uma vida comunitária negra envolvida no processo de criação desses modelos. Toda uma ideologia, uma ética que tem uma relação com o território muito forte. Tinham os blocos de bairros, inclusive aqueles que não podiam ir a outro bairro por causa da rivalidade. Porque havia uma relação com o território muito forte, o que você vai ver acontecer também com os blocos Afros. O Olodum do Pelô, o Ilê Aiyê do Curuzu, o Ara Ketu de Periperi. São essas formas orgânicas e altamente sofisticadas de existência do povo negro que dão a marca dessas organizações carnavalescas.
Caminhando para década de 70, como foi o surgimento do Ilê e outros blocos afros?
Na década de 70 a gente tinha ainda as escolas de samba, que são pouco conhecidas e surgiram no final dos anos 60. Essas escolas acabam se diluindo naquilo que se tornou muito forte na década de 70, que são os blocos de índios - os Comanches, os Apaches, os Siouxs. Eram blocos imensos. O que estava acontecendo nos blocos de índio? Eram organizações negras muito fortes, mas que ainda não tinha espaço para se considerarem afros. Então, se identificavam com outro grupo altamente oprimido, os indígenas. Na época, tinha muito filme de faroeste na televisão, no cinema. Como diz Antonio Godi, meu colega, eles se disfarçavam de índios para se afirmar como grupo e lutar por cidadania, por mais atenção da sociedade à sua existência. Os blocos de índio foram se diluindo e o contexto comportamental, ideológico vai dando lastro para eles se assumirem como blocos afro-baianos, blocos negros. Essa é a passagem de uma consciência racial, de um movimento de negritude organizado em forma de bloco afro, em forma de modelo carnavalesco que vai dar essa possibilidade dos blocos negros se dizerem: ‘Olha, nós somos os blocos Afros’. E aí vem o Ilê, que se forma em 1974, e vai para a rua com 100 pessoas no Carnaval de 75. Era de uma ousadia, uma coragem. Aliás, uma marca do povo negro brasileiro que luta e vai, resiste, insiste em conquistar o que é seu de direito.
Até que ponto os movimentos negros de outros países, falando do black power nos Estados Unidos e do rastafari na Jamaica influenciaram na criação dos blocos afros?
Esses movimentos influenciaram totalmente, desde o início. Os anos 70 é a explosão do black power no mundo atlântico. Na verdade, todo mundo atlântico está conectado para dar origem a essa invenção, que são os blocos Afro. Não dá para falar dos blocos afros sem falar de Michael Jackson, sem falar de James Brown, Jamaica, Cuba. Não dá para falar dos blocos afros sem falar da independência dos países lusitanos na África. Já havia, desde os anos 60, a descolonização no sentido de desocupação do território africano pelos europeus. Em seguida, vêm os países de língua portuguesa nos anos 70. Aquilo tudo é uma efervescência, uma troca de informações muito vigorosa no mundo atlântico. Para entender a invenção dos blocos afros primeiramente e do samba-reggae, depois, é preciso olhar para o atlântico negro e perceber todas as conexões que Salvador foi capaz de captar e transformar num modelo carnavalesco.
Imagino que a influência do candomblé e do samba do Recôncavo seja também um componente muito importante em todo esse processo?
A gente está falando do global, dessa interconexão atlântica. Mas quando a gente olha para história cultural da Bahia, de Salvador, do Recôncavo, é claro que a gente vai encontrar essa influência. De onde saem os tambores? Dos terreiros de candomblé. A fonte é essa, é inegável. Vem de toda essa estética religiosa. O ijexá, por exemplo, que é um ritmo de Oxum. Ele vai para rua com os afoxés. Depois, vai subir o trio elétrico com Novos Baianos, Moraes Moreira, Gilberto Gil. Está presente na formação do samba-reggae, que é a música dos blocos afros. Quer dizer, o primeiro bloco afro, aquele que está comemorando 50 anos, o Ilê Aiyê, faz o que eles chamam de samba afro. Que é muito mais próximo do samba da Bahia, do samba duro, tem o ijexá lá. Mas são muitas leituras, porque há uma complexidade imensa nesses ritmos. Não dá para simplificar o peso que tem determinado tambor, determinado ritmo. O próprio orixá está ali e é o dono do ritmo. O mundo da percussão é muito complexo, tem uma sofisticação musical elevadíssima. Não dá para gente generalizar, nem resumir, porque você tem que realmente se debruçar sobre cada um dos ritmos que estão envolvidos nesse processo de criação.
A gente está falando da influência do candomblé na sonoridade, mas ela vai muito além...
A influência vai nas coreografias, nas indumentárias, no uso das línguas banto e iorubá. Inclusive, eles são nomeados todos com nomes iorubás e tem o Muzenza que é banto. Através das letras das canções e tudo mais. Esse repertório, essas matrizes que a gente teve a chance de preservar e de atualizar na Bahia estão todas dentro dos blocos afros. De várias maneiras, inclusive nas formas de interação, pelo fato de que eles não são apenas um entretenimento carnavalesco. Eles atuam durante todo o ano no processo de educação. O que eu mais destacaria e comemoraria nesses 50 anos dos blocos afros são a intenção e a capacidade que eles tiveram de educar a sua gente. Inclusive de educar os brancos também, que souberam através dos blocos afros a história da África. Quem é que conta, pela primeira vez no Brasil, a história dos países africanos? São os blocos afros. As escolas de samba do Rio contam, há muito tempo, a história afro-brasileira. Mas quem conta a história dos países africanos, quem mostra a complexidade deste continente, que desconstrói a imagem de que a África é um único país? Quando escolhe falar de Gana, Senegal, Madagascar, os blocos afros mostram todas as particularidades de cada povo do continente africano. Isso é uma capacidade gigantesca de educar uma comunidade, através de métodos inventados por eles próprios. Faz pesquisa, constrói os cadernos de educação, distribui com os compositores, com os alunos que fazem parte das escolas de percussão e das escolas formais e escolas profissionalizantes. É de uma capacidade de articulação e de transformação de mentalidade e de imaginário extraordinário.
Essa capacidade de transformação que você se refere acontece principalmente nas próprias comunidades onde esses blocos estão inseridos?
Isso, primeiramente ali nas comunidades e aquilo vai ganhando capilaridade. Porque você é do Curuzu, é de Itapuã, mas se move pela cidade e multiplica esse conhecimento. A produção de conhecimento gerada pelos blocos afros é sem dúvida um dos maiores legados da nossa cultura. Falando de história recente, 50 anos é meio século, muita coisa. Por mais que não tivessem tido o apoio necessário dos governos, do poder público, eles sempre se mantiveram lá. Eles nunca disseram: ‘Chega, não aguentamos mais tanta indiferença, tanta dificuldade, tanta humilhação para botar o bloco na rua’. Isso se manteve sem demonstração do menor sinal de desistência. Foi incrível essa continuidade. E agora, o que a gente está vendo? Uma nova onda fortíssima em relação aos blocos afros. Ver, o palco do Festival de Verão, que tinha acabado de receber Lulu Santos, Gabriel Pensador, e aí vem Daniela Mercury com Ilê Aiyê, com Margareth Menezes, ministra da Cultura do Brasil. Você vê ali a grandeza da coisa.
O fato de Margareth hoje ser ministra da Cultura e João Jorge, fundador do Olodum, presidente da Fundação Palmares, de certa forma fortalece esse movimento?
O fato deles se tornarem expoentes já é uma amostra do poder dessas agremiações. Eles são fruto desse processo de construção de conhecimento e de empoderamento, para usar uma expressão bem comum. Eles vieram dessas comunidades e estão aí representando a gente.
Antes dos blocos afros, como você já explicou, vieram os afoxés. Criado em 1949, os Filhos de Gandhy é um dos mais tradicionais. Qual foi a influência dos afoxés, e mais especificamente dos Filhos de Gandhy, na criação dos blocos afros?
Os afoxés são, como Edison Carneiro descreveu, candomblé de rua. É aquela transição. Sai do terreiro com os instrumentos, vai para rua através dos afoxés e, depois, isso vai desaguar de várias maneiras, como a gente já falou. Vai subir nos trios elétricos e alimentar a mistura rítmica que deu origem ao samba-reggae, que é a nossa estrela, é o capital simbólico de Salvador. Repare na quantidade de clássicos que o samba-reggae gera. E o ijexá está aí dentro como estética, como ideologia. A música do candomblé, quando ela vai para rua através dos modelos carnavalescos, modifica a nossa gestualidade. Ela amansa. O que fez o Carnaval de Salvador de 1950, quando pega de Pernambuco o frevo e transforma em trio elétrico? É aquela coisa do galope, aquela velocidade. E aí vem o ijexá.
Pode-se dizer que o samba-reggae moldou nosso Carnaval?
Foi sempre o povo negro que moldou o Carnaval. O Carnaval europeu teve uma vida sempre muito conturbada pela presença negra, no melhor sentido falando, porque não conseguia ficar imune a grandeza rítmica do Carnaval dos pretos. Acabou o entrudo no Brasil, que era considerado uma coisa violenta, água suja na cara das pessoas, e vamos civilizar o Brasil. Vamos nos inspirar no Carnaval francês e no italiano, com os confetes, as serpentinas e tal. E onde? Nos salões. Vamos sair da rua e vamos para os salões, o Teatro São João, na Praça Castro Alves. E aí? Viaje para o início do século 20. Está rolando o baile de Carnaval no Teatro São João e vem a Baixa de Sapateiro subindo para Castro Alves com suas batucadas, o lundu, o maxixe. O baile não conseguia ficar imune a essa musicalidade. Tanto que o lundum e o maxixe entram nos bailes dos brancos. Eles contratam músicos, orquestras para tocar e entreter os brancos. O baile era só para os brancos e os pretos fazendo sua musicalidade nas ruas, criando modelos carnavalescos, inventando coreografias. Ao mesmo tempo, tinham os clubes de rua, os préstitos. Clubes negros e clubes brancos. O que é isso? As camadas brancas se inspiravam nas cortes europeias para fazer os desfiles de carros alegóricos, mulheres vestidas com máscaras italianas... E os clubes negros fazendo o quê? Tematizando as civilizações africanas. Em 1899, a embaixada africana tematizou o Egito. Fizeram um búzio gigante no carro alegórico, o faraó saía dentro do búzio. Uma coisa apoteótica. Rafael Vieira tem um trabalho maravilhoso sobre o Carnaval desse período. Então, essa tradição de contar a história da África, através do Carnaval vem desde o final do século 19 e a passagem do século 20, através dos préstitos, dos clubes negros, da embaixada africana, pândegos da África. Havia muita gente de uma elite econômica negra que bancava o alto estilo dos desfiles.
Havia uma aceitação desses clubes negros por parte da sociedade?
Rafael Vieira mostra nos jornais como eram elogiados os clubes negros. Eles tinham uma musicalidade muito mais interessante e mais rica que os clubes brancos. Dominavam a Rua Chile, Avenida Sete. É aí que começam os primeiros camarotes. As pessoas levavam suas cadeiras e amarravam nos postes para assistir a esses desfiles. Sempre os negros davam um banho no Carnaval de rua. Isso vai indo a ponto de as autoridades brancas proibirem as tais temáticas selváticas e tiram os clubes negros de circulação. Por incrível que pareça, falar de arte era considerado uma temática selvática, como falar de indígenas também. Eles tiram de cena, tamanho o poder que essas agremiações tinham. E aí se fortalecem os clubes fechados, mas o carnaval na rua sempre acontecendo. O povo negro sempre teve várias estratégias para enganar os brancos. O sincretismo religioso, a capoeira. Fingir que está reverenciando um santo e está cultuando seu próprio orixá. Tudo isso era feito também no Carnaval.
Indo um pouco para frente, quando o Ilê Aiyê começa a desfilar e proíbe a presença de brancos no bloco. Esse um gesto de afirmação do povo negro?
É um chamamento. ‘Escuta, a gente é proibido de entrar em tantos blocos da cidade. É assim que vocês fazem e a gente vai ensinar a vocês. Vocês proíbem, vocês negam’. É um ato de afirmação e tem que ser assim. Tem que desenhar para entender que a segregação existe. O que é muito interessante é que as estratégias não são óbvias. Surpreendem. ‘Ah, segregou, mas o que vocês fazem com a gente há décadas?’ Isso é uma prática que vem lá do entrudo. No entrudo só podia pretos entre pretos, brancos entre brancos. A segregação racial sempre existiu no Carnaval e infelizmente continua existindo. Nos anos 90 foi criado um bloco Eu também sou Ilê, que era para brancos. Não tinha graça nenhuma. Durou um ano, no máximo dois. O Ilê é um clássico. Você desconstruir isso é muito perigoso.
O samba-reggae que, como você já mencionou, é a marca do Carnaval baiano. Como ele surgiu e qual é a sua força hoje?
O samba-reggae surge desse momento de transformação de mentalidade do movimento de negritude. Ele é uma invenção conectada com todo o atlântico. Não dá para pensar em samba-reggae sem falar do Caribe, dos Estados Unidos, da Europa, da África. É uma invenção cultural de grandes proporções. A gente precisa juntar muitos fios, pontas, para entender a invenção do samba-reggae. Existem muitas leituras sobre ele. O crédito do Olodum a invenção do samba-reggae é inquestionável. Mas vem do Ilê Aiyê a fonte, Neguinho do Samba. Ele já tinha passado por várias instituições carnavalescas, como músico que sempre foi uma coisa fora da curva. Também vem do Ilê João Jorge, um intelectual que tinha lido tudo, estava sabendo de tudo e tinha uma proposta ideológica e estética para o Olodum. E vem Neguinho do Samba com uma vontade de voar musicalmente, porque o Ilê é tradição. Não havia muito espaço para mexer na musicalidade. Era samba afro e pronto. E ainda é assim até hoje. Mas Neguinho queria experimentar outras coisas. O ouvido dele já estava capturando o Atlântico inteiro. Ele chega ao Olodum, que nasce em 1979. Nos primeiros anos, em 1982, 1983, o Olodum não consegue sair. Mas João Jorge, Neguinho e muitas outras pessoas vão levar o Olodum a uma virada de chave. No sentido, olha, vamos internacionalizar essa música. Vamos falar em hibridismo racial.
Uma posição mais flexível...
Que é a ideia do mestiço dentro da comunidade negra, que chamam de pardo hoje. O movimento negro estava justamente idealizando essa base que é considerar negro, os pretos e os pardos. O Olodum já estava trabalhando na mesma direção de dizer: ‘Olha, a tinta fraca vale sim. Vamos embora. Queremos os pardos também’. Ainda se usava o termo mestiço na época. É uma navegação existencial, estética.
Você considera que essa postura mais flexível do Olodum contribuiu para que ele seja o bloco mais conhecido internacionalmente?
Não sei se diria flexível. Diria que o Olodum estava mais conectado com essa nova construção racial que o movimento negro estava idealizando, que os negros são pretos e pardos. O mais importante é a gente ter essa diversidade de pensamentos negros. A gente está aqui falando da importância do Ilê se manter como ele é. E a importância que o Olodum teve de abrir para outras possibilidades. Cada um ocupando seu espaço, inclusive para mostrar que negro não é uma coisa só. Existem várias escolas de pensamento dentro do mundo negro, várias formas de produzir conhecimento.
Inclusive com divergências entre uma escola e outra de pensamento...
Como é a espécie humana, que diverge, se reúne, que depende do contexto para se aliar. Essa é a riqueza do mundo negro na música afro-baiana, porque você entende o Brasil. Afinal, o Brasil é o maior país negro fora da África.
Aí vem Daniela Mercury, que começou a cantar samba-reggae e incorporar as coreografias do candomblé, e Gerônimo, com o álbum ‘Eu sou Negão’, considerado um manifesto da negritude. Qual foi a influência desses artistas no fortalecimento do movimento?
Daniela passou por essa prova de fogo de ser aceita pelo Ilê Aiyê. Poderosa, Daniela, de chegar lá e dizer quero cantar dentro de um ensaio. De chamar a atenção e ponto de dizerem: ‘Pô, essa branquinha aí canta...’ O impacto que Daniela causou nacionalmente todo mundo conhece. Ela é uma personagem fundamental dessa história da música afro-baiana. E Gerônimo é o cara que fez o hino, que fez o manifesto. Ele também narra uma cena do cotidiano do Carnaval quando ele faz ‘Macuxi muita Onda’, que é o encontro do trio elétrico com um bloco afro. A disputa de espaço, o desrespeito do trio em relação ao bloco afro. Essa capacidade de você está em cima de um trio, observar o que está acontecendo e conseguir fazer uma música que se torna um manifesto, um hino... E revela as nuances do que está acontecendo. Porque o Carnaval é uma coisa muito complexa. Por isso, tenho muita paixão pelo que (José Carlos) Capinam escreveu no prefácio do livro. Quando ele fala que, na 'Trama dos Tambores', eu vou levando a história junto com o meu corpo. Eu sou uma foliã carnavalesca. Não é, ‘Ah, vou escrever e ver o Carnaval pela televisão’. É rua, é pipoca. Entra em beco, sai em beco, como se diz. Na época, a editora falou, ‘Pôxa ele gostou mesmo’. Eu conhecia Capinam de nome. Nunca tinha estado com ele. Esse prefácio me emociona profundamente até hoje. Já são 24 anos da primeira edição. É um livro que está muito vivo, porque é uma história muito poderosa.
O mundo descobriu o samba-reggae através de Paul Simon, depois Michael Jackson. Como o samba-reggae hoje está inserido no mundo?
As bandas de samba-reggae só fazem se multiplicar mundo afora. Na América Latina, Argentina, Chile; na Europa, com a Espanha. É muita banda de samba-reggae no mundo, que também veio no impulso da Timbalada e Carlinhos Brown. É meio chato falar isso, porque já é um clichê, mas Carlinhos Brown é um gênio. Você pega o Candeal, que tem uma história cultural fortíssima, com tamarineiro, Terreiro de Ogum, com os africanos que chegaram aqui em busca de seus parentes. Gente abastada. Que é outra narrativa contra-hegemônica, porque se imagina que no período da escravidão só tinha escravo. Isso não é verdade. Havia uma imensa comunidade negra livre. Tinha uma grande comunidade com poder econômico. Que dominava setores do mercado como alimentação. E tinha muito comerciante que ficava de lá para cá pelo Atlântico trazendo coisas do culto, trazendo os obis, o pano da costa, os elementos para religião. Essa ideia generalizada que os blocos afros ajudam a gente a desconstruir, que só existe um tipo de negro, que só existia escravo no período escravista. É muito mais complexo, tinham muitos atores em cena e os blocos afros mostram isso de outro jeito. No caminho do livro, escrevendo, pensando, eu fiz um mapa de Áfricas imaginadas. Como cada bloco afro constrói uma determinada África. O Ilê constrói uma África tradicional. O Olodum, uma África científica. O que é Faraó? É a tese de doutorado de Cheikh Anta Diop, pesquisador senegalês, O Muzenza é a África nômade. Malê Debalê, a África islamizada. O Cortejo Afro, a África estilizada. A Timbalada é a África cosmopolita. Essas são as Áfricas imaginadas pelos blocos afros baseado em fatos reais, pesquisa, conhecimento, viagens.
Estamos falando muito de personagens homens, mas as mulheres também têm um grande peso nesse movimento?
É aí que entra mais uma vez a grandeza do Neguinho do Samba de criar a Didá. Dentro do Olodum, ele tentou, tentou... Mas não andava porque os tambores sobravam para as mulheres quando os homens não estavam ensaiando.E ele sai do Olodum e funda a Didá. Nesse mesmo ano, em 1994, vem a Bolacha Maria, no Candeal. Carlinhos Brown pegava um bule e transformava em tambor. Teve toda uma preparação. Veio gente da pesada para criar e dar uma forma ao Bolacha Maria. Elas participaram do Percpan, festival que também foi muito importante para a história da música afro. Então vem essas duas bandas, que fazem uma cena nova, que é a presença feminina nos tambores. Isso a gente não pode deixar de falar porque essas bandas de samba-reggae que estão se formando fora daqui, na América Latina e na Europa, a maioria é formada por mulheres.
A gente falou muito do passado, mas queria saber como você vê o presente e o futuro desse movimento de fortalecimento da cultura afro pela música, pelo Carnaval?
A cultura afro sempre se fortaleceu pela música e pelo Carnaval. O mundo negro sempre se fortaleceu pelo futebol. O que está mais do que na hora é esses campos se expandirem. A gente precisa lutar para que, em todos os campos de produção de conhecimento, econômico, intelectual, essa força negra esteja devidamente representada. A música é como aquele porto seguro. Ninguém tira isso dos pretos. Mas é preciso expandir para as artes visuais, a literatura, para o cinema, a televisão, para tudo que é campo de produção e de realização humana, de existência da gente. No presente, a gente está lutando por isso. E é isso que espero do futuro. Que essa expansão se realize. Depois de escrever a “Trama dos Tambores”, eu fui me dedicar a buscar a presença negra em todos os outros campos de criação. E o livro ‘A terceira Diáspora’ é exatamente isso. Essa cartografia do mundo atlântico e as comunidades negras produzindo conhecimento, arte em todos os campos. E produzindo dinheiro. No presente, a gente tem que pensar em estar aprofundando isso. E que no futuro venha essa tão sonhada igualdade de condições de existência humana.
Raio-X
Baiana de Salvador, Goli Guerreiro é pós-doutora em antropologia, ensaísta e curadora de fotografia. Pesquisadora independente da diáspora africana, se debruça sobre repertórios estéticos do mundo atlântico traduzidos em vários formatos. Tem seis livros publicados, entre eles “Terceira diáspora”, “Trama dos tambores” e o romance “Alzira está morta”. É curadora do Acervo Arlete Soares - AAS e idealizadora do Estúdio África, que desenvolve projetos de fotografia com artistas e comunidades no Brasil e na África. Saiba mais em https://youtu.be/k4iFd_Jtn1I?si=2ErP2divNFdx40zn.
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