Haitianos vêm ao Brasil pedir fim da ocupação | A TARDE
Atarde > Bahia > Salvador

Haitianos vêm ao Brasil pedir fim da ocupação

Publicado terça-feira, 06 de março de 2007 às 20:31 h | Autor: Vitor Pamplona

Na semana em que o presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva recebe o colega norte-americano George W. Bush para firmar uma parceria no campo energético, militantes haitianos dos direitos humanos fazem uma peregrinação pelas principais cidades brasileiras contra a política da Casa Branca e do Palácio do Planalto em relação ao Haiti. Desde 2004, o país caribenho é ocupado por tropas da ONU (Organização das Nações Unidas) comandadas pelo Brasil com apoio dos Estados Unidos.



Integrantes de movimentos sociais como o “Batay Ouvriye” (Batalha Operária, no crioulo haitiano) e professores da Universidade do Haiti, a antropóloga Rachel Beauvoir Dominique e seu marido arquiteto, Didier Dominique, se dividiram para percorrer 11 capitais na tentativa de sensibilizar a opinião pública brasileira para o caos social no país.



Eles divulgam desde a última sexta-feira o relatório “Haiti: soberania e dignidade”, um documento de 112 páginas com informações compiladas pela Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti, grupo que articula ativistas como o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980, e sua compatriota Nora Cortiñas, co-fundadora do movimento das mães da Plaza de Mayo. Nesta terça-feira, Beuavoir esteve em Salvador, onde participou de um debate organizado pela Cese (Coordenadoria Ecumênica de Serviço), entidade ligada a igrejas que financiou a publicação do relatório no Brasil.



Enviadas ao Haiti sob a justificativa de conter a tensão social que se alastrara depois da deposição do padre esquerdista Jean-Bertrand Aristide da Presidência em 2004, as tropas da ONU foram vistas na época como necessárias ao restabelecimento da ordem. Mas Rachel Beauvoir recrimina a presença dos soldados e aponta a missão de paz como um entrave à reconstrução do país. “As tropas são incapazes de dar uma solução para a crise. Elas defendem interesses imperialistas e impõem o terror nos bairros populares, onde balas perdidas matam crianças pequenas”, acusa.



Beauvoir aponta ainda falhas na política de desarmamento implementada pelas forças da ONU. O relatório da missão internacional, que levantou dados sobre os primeiros 18 meses de atuação dos “capacetes azuis”, traz números decepcionantes: em um ano e meio, apenas 265 armas foram confiscadas junto à população. Outras 200 mil, estima a própria ONU, estão em mãos de civis, organizações paramilitares e gangues de criminosos. “A violência está maior agora. As tropas fazem vistas grossas diante da atuação das gangues nos bairros populares. Não há segurança nem perspectiva de segurança”, diz a ativista.



A presença de militares de forças humanitárias no Haiti já sofreu duras críticas de movimentos sociais e organizações de direitos humanos na América Latina. Embora lideradas pelo Brasil, que possui um contingente de 1.200 homens entre os cerca de sete mil que compõem a missão, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, para citar apenas países sul-americanos, também colaboram com efetivos.



Nos Estados Unidos, que comandaram em 1994 a invasão do Haiti por tropas da ONU para acabar com a crise política detonada pelo golpe militar que depôs Aristide após sua primeira eleição, a atuação dos militares chegou a ser associada a massacres como o que teria matado 63 pessoas e ferido outras 30 na Cité Soleil, principal favela da capital Porto Príncipe, nos primeiros meses da ocupação. Só em fevereiro deste ano os “capacetes azuis” ocuparam o bairro, apontado como o mais violento do Haiti.



Militares do 19º Batalhão de Caçadores do Exército, no bairro do Cabula, em Salvador, fizeram parte das forças da ONU e retornaram ao Brasil no final de 2006. Apesar de negar a conivência das tropas com as gangues, o capitão Vando Azevedo, que integrou a missão baiana, reconheceu a gravidade da situação. “Não havia condições mínimas de atendimento à população. Muitas vezes, oficiais do Exército eram obrigados a trocar suas obrigações militares por atividades humanitárias, como cuidados médicos”.



Sem rótulos



Depois de quase duas décadas de ditadura e absoluta instabilidade política, Rachel Beauvoir reconhece: não há solução à vista para o flagelo haitiano. “A situação política é complexa. Existe uma luta muito intensa entre diversos setores da sociedade e não há ninguém com capacidade de representação popular”. O presidente René Preval, um esquerdista ex-ministro de Aristide eleito ano passado, diz ela, entregou o país na mão das forças estrangeiras. “E elas têm defendido os interesses de quem, de que classe?”, indaga, sugerindo grupos financeiros internacionais como resposta.



Com a economia do país devastada, cujo crescimento de 2,5% foi o menor da América Latina ano passado – o Brasil ficou na segunda pior posição, com 2,9% –, os movimentos sociais haitianos tentam criar alternativas para escapar da pobreza extrema. Beuavoir cita a criação de escolas autônomas, que procuram diminuir a taxa de 45% de analfabetos na população, e projetos de irrigação, inviabilizados por interferência “das tropas a serviço do imperialismo”.



O discurso esquerdista clássico, que pode sugerir a intenção de instalar um regime de inspiração socialista no país, contudo, é intempestivamente rechaçado: “É um movimento popular, mas não se atém a rótulos. Na Inglaterra, Tony Blair e o Partido Trabalhista são a esquerda”, desdenha.



Em busca de apoio para a causa da desocupação do Haiti, Rachel Beauvoir estará em São Paulo na quinta-feira, 8, data da chegada do presidente Bush ao Brasil. Ela deve participar da manifestação, organizada por partidos à esquerda do governo Lula, sindicatos e entidades estudantis, para gritar “Fora Bush” e pedir mudanças na política externa brasileira, entre elas a suspensão da participação na missão da ONU no Haiti.



Antes, nesta quarta-feira, em Brasília, Beuavoir se encontra com a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty, e parlamentares da comissão de Relações Exteriores do Senado, presidida pelo senador Heráclito Fortes (PFL-PI).



Resta saber se os integrantes do governo Lula irão tomar partido da luta pela autonomia haitiana diante do presidente, que já demonstrou ser favorável à manutenção das tropas. No Itamaraty, constantemente acusado de usar o comando da missão como moeda de troca para uma possível vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU, já se admite a permanência do Brasil no Haiti até 2011.

Publicações relacionadas