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OLHAR CIDADÃO

IPTU alto deixa a cidade de Salvador mais pobre

No início da gestão de Neto, em 2013, o imposto ajudou a causar o empobrecimento da cidade e da população

Por Da Redação

11/09/2022 - 0:30 h
Em Salvador, o IPTU causa, há quase uma década, efeito contrário ao do desejado desenvolvimento municipal
Em Salvador, o IPTU causa, há quase uma década, efeito contrário ao do desejado desenvolvimento municipal -

Foram os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 que consagraram a “função social” da propriedade no Brasil. Não apenas em seu uso, que deve obedecer às regras municipais, mas também no sentido de colaborar com o desenvolvimento da cidade na qual está instalada. Ao ponto de a legislação tributária ter previsto, ao longo dos anos, a possibilidade de aumento progressivo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) para imóveis de maior valor, ou para os que não cumpram sua “adequada utilização” pela sociedade.

Em Salvador, porém, o IPTU causa, há quase uma década, efeito contrário ao do desejado desenvolvimento municipal. Sem regras claras e fortemente majorado sem critérios técnicos desde 2013, no início da gestão do ex-prefeito Acm Neto, o imposto ajudou a causar o empobrecimento da cidade e de sua população.

Em alguns casos, os aumentos de IPTU no período extrapolaram 1.000%, sem que fossem apresentadas justificativas técnicas que sustentassem tal majoração. Nem imóveis sob tutela pública escaparam: na área onde funciona o Centro de Abastecimento da Bahia (Ceasa), na BR-526 (Rodovia CIA-Aeroporto), sob tutela do Governo do Estado, por exemplo, o IPTU saltou de R$ 598 mil para R$ 7,7 milhões por ano, uma elevação de mais de 1.200%.

“A falta de segurança para o contribuinte gera um ambiente de instabilidade que é ruim para os negócios, pois dificulta o planejamento”, avalia o presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-BA, Leonardo Nuñez Campos. “A previsibilidade dos aspectos regulatórios e tributários é fundamental para os empreendimentos.”

“A forma como Salvador administra sua tributação desde 2013 inibe a atração de novos empreendedores e contribuintes, porque a lei que regulamentou o IPTU, além de violar preceitos constitucionais, leva essas pessoas a não poderem orçar ou mesmo dimensionar antecipadamente seus tributos”, complementa a professora de Direito Tributário Karla Borges. “De um ano para outro, literalmente, esses tributos podem alcançar valores absurdos e injustificáveis. Essa insegurança jurídica, essa falta de previsibilidade sobre como será o dia de amanhã, acaba desgastando muito o mercado.”

Sem atrair novos empreendedores – e estrangulando tributariamente os existentes –, Salvador vê a economia do município encolher. “Fizemos um levantamento que mostrou que é muito clara a insatisfação dos empresários”, afirma o vice-presidente de Administração e Finanças do Conselho Regional de Contabilidade (CRC-BA), Sérgio Túlio dos Santos de Moura. “As empresas não conseguem reter ou contratar colaboradores e acabam repassando os custos do IPTU aos serviços que prestam. A forma como está sendo feita a cobrança traz prejuízos para toda a sociedade.”

O advogado tributarista Marcelo Nogueira Reis, vice-presidente da Associação Comercial da Bahia, acrescenta que, de tão alto, o imposto chega a inviabilizar negócios. “Antes, o IPTU era levado em conta por pouca gente, pois pouco pesava na balança, mas hoje se tornou uma pergunta obrigatória (para os investidores) e que pode ser a causa, inclusive, da desistência de um negócio”, afirma. “Hoje, o empresário precisa mesmo saber quanto de IPTU será pago e se a receita de seu negócio consegue pagar isso, e caso não possibilite, o jeito é se desfazer o negócio, desistir do novo empreendimento.”

Onde funciona a Ceasa, o IPTU cresceu 1200%
Onde funciona a Ceasa, o IPTU cresceu 1200% | Foto: Carlos Casaes | Ag. A TARDE

Pobreza

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2010 e 2019 – ainda antes da pandemia –, enquanto o IPTU era fortemente aumentado, Salvador deixou a (já ruim) 21ª posição entre as capitais brasileiras no ranking de PIB per capita (a riqueza produzida pela cidade dividida pelo número de habitantes) para passar a ocupar a 26ª e penúltima posição, à frente apenas de Belém (PA). Ou seja: Salvador passou a ser a capital proporcionalmente mais pobre do Nordeste e a segunda mais pobre do País.

Na comparação com a média nacional, a situação de Salvador é ainda mais grave. Se no começo da década passada o PIB per capita soteropolitano representava 73% do PIB per capita nacional, em 2019 essa proporção caiu para 63%. Não à toa, Salvador é a segunda metrópole brasileira com mais pessoas vivendo na extrema pobreza (12,2% da população), segundo o levantamento Boletim Desigualdade nas Metrópoles, que utiliza dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE. Em primeiro, aparece Recife (PE), pouco à frente, com 13%.

“A conta é simples: ao se aumentar arbitrariamente impostos como o IPTU, se penaliza a economia, sobretudo a de uma cidade que tem no setor de serviços sua maior fonte de renda (o setor responde por 79% do PIB municipal)”, afirma o deputado estadual Robinson Almeida (PT), que recentemente promoveu uma audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia para discutir os aumentos tributários de Salvador. “Ao ter a economia paralisada, a cidade deixa de gerar empregos e não se desenvolve.”

Na contramão, a arrecadação municipal com o IPTU não para de crescer desde que ACM Neto assumiu a prefeitura, em 2013. Desde lá, os tributos pagos pela população pelo direito de possuir uma propriedade na cidade praticamente triplicaram, de R$ 285 milhões em 2013 para R$ 800,5 milhões, em 2020, segundo o anuário Multi Cidades – Finanças dos Municípios do Brasil, da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP).

Como comparação, Fortaleza (CE), a segunda maior capital do Nordeste, com população similar à de Salvador (a capital baiana tem 2,9 milhões de pessoas, segundo estimativa do IBGE, ante 2,7 milhões da capital cearense), arrecadou R$ 554 milhões com IPTU em 2020, ou 30,8% a menos.

Os valores aferidos pelo IPTU em Salvador poderiam ser ainda bem maiores, se a inadimplência não tivesse disparado no período. “A estimativa é que metade da população esteja em inadimplência”, relata Karla Borges. “O contribuinte não deixa de pagar porque não quer pagar, mas porque não consegue. Em muitos casos, ou ele paga, ou ele come.”

Falta de planejamento

Os números apontam não apenas o empobrecimento da cidade, na comparação com o resto do País, mas a falta de planejamento das administrações de ACM Neto e de seu sucessor, Bruno Reis. A inadimplência decorrente dos expressivos aumentos no IPTU causam, ano após ano, frustração de receita municipal em Salvador.

Desde 2014, quando os valores do imposto começaram a ser majorados, Salvador arrecada menos do que o previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA). Em alguns casos, a diferença foi de mais de 15%. Em 2013, antes da revisão do imposto, por exemplo, o município havia arrecadado 5,5% a mais que o previsto na LOA. Em 2014, no primeiro ano de aumento do imposto, porém, arrecadou 21,8% a menos que a projeção – o suficiente para impossibilitar investimentos em melhorias na cidade.

Leonardo Nuñez: "Falta de segurança para o contribuinte gera instabilidade nos negócios"
Leonardo Nuñez: "Falta de segurança para o contribuinte gera instabilidade nos negócios" | Foto: Divulgação

Fortaleza, por outro lado, apesar de ter uma arrecadação com o IPTU significativamente menor que a de Salvador – e uma população também menor –, tem um orçamento maior que a capital baiana. Para este ano, por exemplo, a metrópole cearense estimou uma arrecadação de R$ 9,9 bilhões, ante R$ 8,7 bilhões de Salvador.

Isso ocorre porque, apesar de ser uma importante fonte de receita municipal, o IPTU compõe uma parte da arrecadação das cidades, em geral menos de 15% do total do orçamento. O restante depende do aquecimento da economia do município – além de repasses de outras esferas de poder. Assim, do ponto de vista tributário, seria financeiramente mais vantajoso para a administração pública de Salvador criar um ambiente amigável ao empreendedorismo do que apostar na “saída fácil” de majorar os impostos que cobra diretamente da população.

Artifícios jurídicos provocam ações de inconstitucionalidade

Construído no bairro da Vila Laura na primeira metade da última década, o condomínio Villa Privilege conta com cinco torres de apartamentos de três metragens distintas, mas distribuídos igualmente entre as unidades, que compartilham a mesma área comum. Três dessas torres foram entregues pela construtora em 2013. As outras duas, em 2014. Quem mora nas três primeiras paga IPTU médio de R$ 700 por ano. Para quem mora nas torres entregues alguns meses depois, o tributo médio é de R$ 2,5 mil.

“São imóveis iguais, localizados no mesmo endereço, no mesmo condomínio, com o mesmo padrão construtivo e o mesmo valor de mercado”, ressalta a advogada Linéia Ferreira Costa, líder do Movimento IPTU Justo. “A cobrança diferenciada de IPTU pela Prefeitura é uma ilegalidade que fere o princípio constitucional da isonomia tributária”.

A professora de direito tributário Karla Borges concorda com a ilegalidade da cobrança e explica que ela é fruto de um artifício jurídico inventado pela Prefeitura de Salvador durante o processo de formulação da lei tributária da cidade, em 2013.

“A Prefeitura criou um artifício, uma ‘trava’ no IPTU, no qual determinou que imóveis entregues até 2013 são beneficiados e seguem pagando o mesmo IPTU de antes, apenas ajustado com as correções inflacionárias, enquanto os entregues a partir de 2014 pagam o IPTU tendo como base a Planta Genérica de Valores (PGV) de 2013, que tem valores astronômicos, resultando em vizinhos que pagam valores de IPTU muito diferentes, em alguns casos dez vezes mais”.

ITIV

Muitas ações de inconstitucionalidade contestando as cobranças diferentes de IPTU já correm na Justiça – assim como ocorre no caso do Imposto sobre a Transmissão Intervivos (ITIV), aplicado sobre as operações de compra e venda de imóveis.

Sob a gestão de Acm Neto, a Prefeitura decidiu que passaria a cobrar o ITIV não com base no valor da negociação (como é feito em todo o País), mas aplicando os valores venais previstos pelo PGV, ou seja, calculando o tributo com base no preço que a administração municipal acha que o imóvel deveria valer.

“Nosso mercado está sendo sacrificado”, lamenta o presidente da Associação Baiana dos Corretores de Imóveis (Asbaci), Edmilson de Andrade Araújo. “Quando o comprador se depara com o valor do ITIV, tenta baixar o preço do imóvel, para compensar. O proprietário acaba desistindo do negócio. Já encontramos caso de o ITIV, sozinho, custar o dobro do valor de mercado do imóvel”.

“O ITIV aplicado irregularmente provoca a paralisação do mercado imobiliário, porque as pessoas passam a não ter recursos para comprar um imóvel”, concorda o advogado tributarista e vereador de Salvador Edvaldo Brito (PSD). “Como resultado, as construtoras reduzem as atividades, deixando de gerar empregos”.

No caso da cobrança do ITIV, porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já emitiu sentença determinando que o cálculo do tributo deve ser feito com base no valor da negociação. “A Prefeitura segue desafiando a Justiça e cobrando o ITIV com base nos valores da PGV”, conta Karla Borges. “O contribuinte de Salvador precisa ir à Justiça para que a cobrança do imposto seja ajustada, onde ele consegue um mandado de segurança que obriga o município a emitir um boleto com o valor real da transação, não com o valor venal”, instrui a especialista.

Avaliações irreais na raiz do problema

“Tenho um imóvel em Luís Anselmo (bairro de Salvador) que a prefeitura diz que vale R$ 457 mil, mas estou tentando vendê-lo por R$ 250 mil há dois anos e não consigo”, afirmou o funcionário público e ex-vereador Gilmar Santiago, durante uma audiência pública sobre os aumentos dos tributos municipais de Salvador realizado na Assembleia Legislativa da Bahia, no início de agosto. “Dou até desconto para a prefeitura, se ela quiser comprar pelo preço que ela diz que vale”, ironizou, na sequência.

Apesar do tom de brincadeira, Santiago tocou na raiz do problema que envolve o expressivo aumento do IPTU e de outras taxas municipais em Salvador: a avaliação do preço dos imóveis, o chamado valor venal, que é previsto pela Planta Genérica de Valores (PGV) e que norteia a aplicação do IPTU.

O ex-prefeito ACM Neto costuma justificar os aumentos de IPTU, iniciados em sua gestão, argumentando que a Prefeitura “apenas atualizou a PGV”, que, de acordo com ele, “estava desatualizada havia 19 anos” quando as majorações começaram, em 2014.

“O valor dos imóveis é atualizado anualmente de forma totalmente injusta e ilegal pela Prefeitura”, rebate a advogada Linéia Ferreira Costa, líder do Movimento IPTU Justo. “Eles alteram o padrão construtivo e o valor da construção, por exemplo, para o valor venal aumentar, fazendo subir também os tributos. Desta forma, imóveis de classe média ganham status de imóveis de luxo, sendo que a realidade não é essa”.

É o caso do apartamento do analista de sistemas Alex Ricardo Araújo, um imóvel de 85 metros quadrados do Residencial Maria Lúcia Coutinho, no bairro da Vila Laura. “Meu IPTU está em R$ 4.350, um absurdo”, reclama. É o mesmo valor de uma mansão de 200 metros quadrados no Corredor da Vitória (área com os imóveis mais valorizados de Salvador). E a prefeitura faz vista grossa para as dificuldades que estão sendo enfrentadas por parte da população que paga esse IPTU estratosférico”.

Para a professora de Direito Tributário Karla Borges, o aumento arbitrário, sem análise técnica ou pesquisa de mercado, do valor venal dos imóveis de Salvador cria um caráter “confiscatório” para o IPTU de Salvador, o que é ilegal. “O imposto está sendo elevado de tal forma que impossibilita ao cidadão pagar, seja o de sua residência ou de seu negócio, o que é, por si, inconstitucional”, avalia. “Conheço um contribuinte de Stella Maris (bairro de Salvador) que viu o seu IPTU mudar de R$ 1.034,40 para R$ 28.463,49 de um ano para o outro. É simplesmente injustificável.”

De acordo com Lineia Costa, o que se pretende com o Movimento IPTU Justo é que a Prefeitura revise a Planta Genérica de Valores “de forma justa e realista”, com base no valor de mercado dos imóveis, além de promover a isonomia tributária “que respeite o princípio constitucional da capacidade contributiva” do cidadão.

“Com uma revisão decente (da PGV), que respeite a capacidade contributiva do cidadão e calcule o valor venal do imóvel de forma real, baseada no mercado, o IPTU seria menor e muito mais justo para todos, impedindo que cobranças sejam feitas de formas erradas”, avalia. “A Prefeitura precisa calcular os impostos com base em fatos verídicos e apurados, e não continuar na loucura de atribuir valores de forma aleatória aos lares de pessoas. O que se quer é que as pessoas saiam de Salvador? Muitas já têm feito isso”.

Qual o destino da “taxa do lixo”?

Aumentar linearmente um tributo em 50% para todos os contribuintes, de um ano para outro, seria suspeito em qualquer situação. A forma como o aumento foi autorizado, incluído como artigo dentro de um projeto de lei encaminhado pela Prefeitura que versava sobre projetos culturais, aumenta a desconfiança. Em ano eleitoral, então…

Segundo a professora de Direito Tributário Karla Borges, não há motivo para a Taxa de Coleta, Remoção e Destinação de Resíduos Sólidos Domiciliares (TRSD), também conhecida como Taxa do Lixo, ter sido reajustada em 50% este ano, na comparação com o ano passado. “Assim como está sendo feito com o IPTU, é mais uma ação de efeito confiscatório da Prefeitura”, avalia. “Há casos de imóveis que passaram a ter a taxa do lixo tão cara quanto o IPTU. Passa a ser um tributo tão alto que o contribuinte é economicamente incapaz de pagar”.

Karla Borges afirma que não foi apresentada nenhuma justificativa para o aumento, o que fere a lei
Karla Borges afirma que não foi apresentada nenhuma justificativa para o aumento, o que fere a lei | Foto: Shirley Stolze | Ag. A TARDE

Karla afirma que não foi apresentada nenhuma justificativa para o aumento, o que fere a lei. “O STF determina que o tributante tem o dever jurídico de demonstrar a relação de proporcionalidade entre o valor a ser arrecadado e a despesa, além de comprovar a efetiva aplicação do montante”, argumenta.

Quando a Prefeitura anunciou o aumento, a Secretaria da Fazenda do município emitiu nota alegando que o reajuste era necessário porque “parte da realização dos serviços de limpeza urbana e manejos de resíduos sólidos em Salvador é financiada por meio da taxa” e que esses serviços incluem “varrição, capina e poda de árvores em vias e logradouros públicos e outros eventuais serviços pertinentes à limpeza pública urbana e preservação do meio ambiente”.

A especialista, porém, rebate: “para a aplicação da TRSD, o STF entende como serviço específico e divisível apenas o da coleta de lixo proveniente de imóveis”, argumenta Karla. “A TRSD deve estar dissociada de outros serviços públicos de limpeza realizados em benefício da população. É inadmissível justificar um aumento de 50% para financiar a conservação e limpeza de logradouros e bens públicos como ruas e praças, pois esses serviços já são custeados pelos impostos pagos pelos contribuintes soteropolitanos, como o IPTU.”

De acordo com ela, assim como nos casos de falta de isonomia tributária do IPTU e dos valores fictícios aplicados ao cálculo do ITIV, também é possível para o contribuinte ingressar na Justiça para contestar o aumento de 50% da taxa do lixo.

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