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SALVADOR

Lavagem do Bonfim: um dos indicativos do país da esperança de Stefan Zweig

Por Cleidiana Ramos*

09/01/2021 - 6:02 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
O intelectual austríaco Stefan Zweig | Fotos: Arquivo A TARDE
O intelectual austríaco Stefan Zweig | Fotos: Arquivo A TARDE -

Em 16 de janeiro de 1941, A TARDE publicou uma extensa reportagem sobre a chegada a Salvador de Stefan Zweig (1881-1942). Biógrafo, dramaturgo, romancista e ensaísta, o austríaco foi um dos mais importantes intelectuais do ocidente. Autor de Amok, Maria Antonieta- Retrato de uma mulher comum, Joseph Fouché-Retrato de um homem político, dentre outras obras, ele fazia sua segunda visita ao país após cinco anos quando, em viagem para Buenos Aires, passou pelo Rio de Janeiro. O país o conquistou a ponto de já ter retornado com o projeto de escrever o livro que ganhou o título de Brasil, um país do futuro, obra que deu destaque à Lavagem do Bonfim – que esse ano não vai ser realizada devido à pandemia de coronavírus –, na seção sobre a Bahia. Zweig disse que a atmosfera contagiante o levou a sentir que poderia ser tomado por ela:

“Havia algo de tão violentamente arrebatador e contagioso nessa lavação cheia de gozo que não tive certeza de que, se me achasse no meio daqueles indivíduos exaltados, não agarrasse uma das vassouras. Foi verdadeiramente o primeiro acesso de loucura coletiva que vi e que se tornou mais inverossímil pelo fato de ocorrer numa igreja, sem uso de álcool, de estimulantes, sem música, e em pleno dia, sob um céu magnífico e radiante. (Brasil, um país do futuro p.381).

No texto de A TARDE, na edição de 16 de janeiro de 1941, o repórter destaca o empenho do intelectual em registrar o que vai observando durante a festa:

“O autor de ''Amok", é curioso como um repórter. Quer saber tudo, quer tudo ver, quer que tudo lhe seja explicado. Diante de uma bahiana legitima, de barangandans e chinelas bordado que saber a origem do traje, o nome de cada peça do vestuário. De lápis em punho vai anotando tudo em sua carteira. Escreve em alemão, E sorrindo, nos diz: - Só uma coisa eu não sei anotar. Esse azul maravilhoso do céu e do mar da Bahia. Bahia, terra ideal para os pintores”. (A TARDE, 16/1/1941, p. 2).

Imagem ilustrativa da imagem Lavagem do Bonfim: um dos indicativos do país da esperança de Stefan Zweig
Edições do jornal A TARDE entre os anos de 1941 e 1981 falam da chegada de Stefan Zweig a Salvador e do seu envolvimento com a Lavagem do Bonfim

Utopia

Esse encantamento de Stefan Zweig fez do seu livro sobre o Brasil a tradução da sua esperança em ver renascer um paraíso que considerava perdido, pois a Europa estava envolvida em uma nova guerra e a Alemanha subjugada pelo nazismo. O livro de Zweig é marcado pelo entusiasmo de que o modelo brasileiro poderia ser uma esperança para a convivência harmoniosa entre povos. Em sua análise, no Brasil há interação pacífica entre brancos, negros, descendentes de indígenas e imigrantes de várias partes do mundo. O escritor apontava uma potencialidade cultural na beleza dos sobrados de Salvador, na memória da opulência de Minas Gerais e na riqueza do setor cafeeiro paulista. A então capital do país, o Rio de Janeiro é, de acordo com ele, uma cidade com vocação cosmopolita.

Imagem ilustrativa da imagem Lavagem do Bonfim: um dos indicativos do país da esperança de Stefan Zweig
Zweig (à esquerda) ficou encantado pela Lavagem do Bonfim

“Em uma ou duas horas demos a volta, não a uma cidade, e sim a um mundo, e, ainda levemente atordoados, achamo-nos em pleno tumulto de entes humanos e de casas comerciais: uma dessas ruas do Rio lembra a Cannebière de Marselha, a outra, subindo um outeiro íngreme, Nápoles, os milhares de cafés cheios de homens que conversam, Barcelona ou Roma, os cinemas, com seus grandes cartazes, e os arranha-céus, Nova York. Achamo-nos ao mesmo tempo por toda parte e, apesar disso, sabemos por essa singular harmonia que estamos no Rio”. (Brasil, um país do futuro, p. 224).

Doutor em filosofia, João Carlos Salles, reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) explica que Stefan Zweig vivia o desencanto com a Alemanha que, mesmo com a sua tradição de criação de escolas filosóficas e das ciências sociais sucumbiu ao populismo de Adolf Hitler (1889-1945) e o consequente nazismo. Zweig era austríaco, outro país com uma sólida tradição em revelar intelectuais, como Sigmund Freud (1856-1939) de quem era amigo, que perdia seu vigor. Com a ascensão de Hitler e o desenrolar da II Guerra, Zweig tornou-se um nômade. Mudou-se para a Inglaterra, depois viveu em Nova Iorque e em 1941 passou a morar em Petropólis, no Rio de Janeiro.

“Zweig foi um escritor com grande sensibilidade à cultura. Ele tentou abraçar um país, o Brasil, agarrando-se a ele como uma forma de superar o trauma com o seu mundo europeu ”, avalia João Carlos Salles. A publicação do livro acabou inaugurando um purgatório para Zweig em meio à sua visão de paraíso. O livro foi duramente criticado por parte da intelectualidade brasileira. Para alguns era uma propaganda ideal para o governo de Getúlio Vargas ao minimizar qualquer tipo de tensão no país que vivia em meio a uma ditadura e com vários problemas de persistência histórica, como a pobreza. Além disso, os estereótipos são constantes na narrativa de Zweig, inclusive em relação à Bahia:

“O que no resto do Brasil já foi polido pelos costumes modernos, o que já tem suas origens encobertas, pelo que é europeu e foi por ele suplantado – tudo isso, o primitivo, o instintivo, e o extático ainda se conserva em vestígios misteriosos na Bahia, e em algumas raras manifestações sentem-se ainda resquícios da sua existência (Brasil, um país do futuro, p.383).

Mas este tipo de observação não foi exclusividade de Zweig. Em relação à Lavagem do Bonfim, por exemplo, o professor titular em antropologia da Ufba, Jocélio Teles dos Santos, aponta como o botânico John von Spix e o zoólogo Carl von Martius em viagem ao Brasil de 1817 a 1820 referiram-se à Festa do Bonfim:

“Ficaram estupefatos com tamanha expressão do sagrado conjuntamente com a participação profana pelas ruas da capital e em direção a Igreja. Não à toa, e com um olhar de cunho evolucionista reinante no mundo científico do século XIX salientavam que isso se constituía um dos mais imponentes “quadros da vida” que um visitante estrangeiro poderia encontrar. Seria um espetáculo da evolução humana com representantes de todas as épocas e de todos os continentes”, destaca Jocélio Teles dos Santos no artigo Festa e Lavagem ao Nosso Senhor do Bonfim em anos oitocentistas, publicado no site e revista eletrônicos Flor de Dendê.

A festa também chamou a atenção na década de 1860 do arquiduque da Áustria, Maximiliano de Habsburgo. Em sua avaliação, de acordo com Teles, a festa tinha uma atmosfera de feira. “Salientava o austríaco que o dia da lavagem da Igreja do Bonfim “era uma festa longamente esperada onde os negros sentiam-se em casa”, em que “todos se misturavam e se empurravam”, ocasionando, muitas vezes gritos, vociferações e, às vezes, iam “às vias de fato” nos espaços internos. Enfim, disputas na ocupação do templo sagrado”, destaca Teles.

Imagem ilustrativa da imagem Lavagem do Bonfim: um dos indicativos do país da esperança de Stefan Zweig
Monumento a Stefan Zweig, na Barra, reinaugurado em 1981

Modelo

Mas essa festa em que o povo desafiava qualquer tipo de ordem foi o que acabou predominando como defesa de um modelo para a Lavagem do Bonfim nas narrativas de A TARDE. Na edição de 11 de janeiro de 1951, uma reportagem contava como a polícia controlou o cortejo até a chegada ao Bonfim. O título já dava uma ideia da crítica que permeou todo o texto: “A policia organisou a lavagem”. Com ironia o texto arremata:

“O repórter, que. não conhecia a lavagem do Bonfim, sinão pelas páginas de Zweig, quase estoura da emoção ante a grandiosidade da cena e a eficiência da polícia, no cumprimento das ordens recebidas”. (A TARDE 11/1/1951, p. 2).

O modelo ideal, portanto, era o que deixava a liderança para o povo e que despertava a admiração de estrangeiros como Zweig. O seu entusiasmo e elogio à Salvador festiva, equilibrando o moderno e o antigo apresenta-se também na música de Dorival Caymmi, na literatura de Jorge Amado, nas narrativas das mídias, da indústria do turismo e do poder público.

Imagem ilustrativa da imagem Lavagem do Bonfim: um dos indicativos do país da esperança de Stefan Zweig

Talvez por isso, um jornal como A TARDE, mediador nesses debates sobre um elemento tão importante na construção ou manutenção das identidades da cidade, como são as festas populares, manteve a atenção à celebração da memória de Stefan Zweig. Foi o jornal que realizou uma campanha de doações para que fosse construído um monumento em sua homenagem - uma herma - instalada na Barra, em frente ao Hospital Espanhol. Na edição de 13 de junho de 1958, A TARDE denunciou um ataque ao monumento. Em 29 de novembro de 1981 noticiou a reinauguração da peça no centenário de nascimento do escritor. Três dias antes, a primeira página do Caderno 2 trouxe uma reportagem com a reprodução de um texto da carta que Zweig deixou ao se suicidar, em 1942, ao lado da esposa, Elizabeth Lotte. Zweig estava desconsolado com as notícias de sucessivas vitórias de Hitler:

“Antes de, por minha livre vontade e de espírito lúcido deixar este mundo, impõe-se-me cumprir um último dever: o de agradecer efusivamente ao Brasil, a este maravilhoso país que de forma tão amável e hospitaleira me deu o repouso necessário para poder trabalhar....Mas depois dos sessenta anos seria preciso uma força muito especial para mais uma vez começar inteiramente de novo. E a minha foi-se esgotando nos muitos anos de desterro errante....Saúdo todos os meus amigos! Oxalá eles ainda possam ver a aurora após esta longa noite. Eu, por demais impaciente, vou adiante. (A TARDE, 26/11/1981, Caderno 2, p.1).

Imagem ilustrativa da imagem Lavagem do Bonfim: um dos indicativos do país da esperança de Stefan Zweig

O destaque reiterado sobre o impacto que a Lavagem do Bonfim, sem controle oficial excessivo, produziu em um intelectual cosmopolita e que sonhou com um ambiente de respeito à diversidade parece ter dado algum tipo de resultado. Na edição de 15 de janeiro de 1953, A TARDE comemorou o retorno do modelo que agradou Zweig dando o mérito à Comissão Organizadora da Lavagem e à Prefeitura de Salvador:

“Cavaleiros, pedestres e as “típicas bahianas” em cortejo puxado pela banda do Corpo de Bombeiros, desfilaram pela cidade baixa, com a presença de autoridades, entre as quais o próprio prefeito da Capital, demandando a Sagrada Colina, para a lavagem simbólica do adro do templo, sem carater de heresia ou sacrilégio, antes, com aquele colorido pictórico e regionalismo que prendeu a atenção do autor de "Brasil-pais do futuro ". (A TARDE, 15/1/1953, p.2).

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantêm a grafia ortográfica do período. Fontes: edições de A TARDE, Cedoc A TARDE, Brasil, um país do futuro (Stefan Zweiger, L&PM [1941], 2006), Festa e Lavagem ao Nosso Senhor do Bonfim em anos oitocentistas ( Jocélio Teles dos Santos, Flor de Dendê - https://flordedende.com.br/).

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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