RECURSOS
Na orla de Salvador, a ‘velha política’ em nova embalagem
Ações de revitalização da área da capital baiana deveriam ser deleite, mas viraram fonte de desperdício
Por Da Redação
A assinatura, pelo prefeito Bruno Reis (União Brasil), da ordem de serviço para o início das obras de revitalização da orla de Pituaçu, um trecho de 3,5 quilômetros, no último dia 14, inaugurou um novo capítulo em uma história que deveria ter final feliz para Salvador. Apesar disso, ela segue contaminada por desperdício e suspeitas de desvios de recursos públicos e por flagrantes de falhas de planejamento, de abandono e de falta de zelo por parte da administração municipal.
As revitalizações de trechos da orla da capital, iniciadas na gestão de ACM Neto na Prefeitura de Salvador, costumam ser apontadas por ele como motivo de “orgulho”, como exemplo de capacidade de gestão, de modernidade e de “olhar para os problemas” da cidade e de sua população. “Na verdade, são obras que escancaram práticas arcaicas de fazer política, desperdiçando recursos públicos e prejudicando quem realmente precisa do governo, para favorecer financeiramente amigos empresários e aliados”, alerta o vereador Henrique Carballal.
Com orçamento anual médio de R$ 6 bilhões na última década – bastante inflado durante a gestão de ACM Neto com aumentos expressivos no IPTU e com a crescente arrecadação com multas de trânsito –, a Prefeitura de Salvador está gastando, contando com as obras de Pituaçu, cerca de
R$ 700 milhões na repavimentação desses trechos de orla. Até o momento. Trata-se do maior gasto feito pela gestão municipal em um único projeto desde a posse do ex-prefeito, em 2013.
Como termo de comparação, esse montante é quase 50% maior que o investido pelo governo do Estado da Bahia para construir a Via Expressa Baía de Todos os Santos, uma das mais importantes intervenções urbanas da história de Salvador, que envolveu dezenas de desapropriações, construções de viadutos e quatro passarelas e custou R$ 497 milhões.
‘Maquiagem’ cara
Pejorativamente chamado de “maquiagem” pela oposição ao grupo do ex-prefeito, o projeto de revitalização dos trechos da orla deveria ser um deleite para residentes e turistas da capital baiana. Virou, porém, sinônimo de desperdício e de suspeitas de desvios de dinheiro público. Desde a primeira intervenção do gênero, realizada no Farol da Barra entre 2013 e 2014, nos primeiros anos de administração de Neto. Chamou a atenção, já naquele momento, o montante investido na obra, que foi conduzida pela construtora Odebrecht: R$ 62 milhões, ou R$ 110 milhões em valores atualizados pela inflação, por cerca de 6 quilômetros de intervenções. “São inacreditáveis mais de R$ 10 milhões por quilômetro”, reclamou, à época, o deputado estadual Robinson Almeida (PT).
“Não ocorreram grandes intervenções de macrodrenagem ou de edificação nesta obra. Basicamente, foi a troca de piso e a instalação de alguns equipamentos de praça e jardinagem. Para se ter uma ideia comparativa, a implantação e pavimentação de uma rodovia asfaltada de 6 quilômetros, com acostamento, é orçada em menos de R$ 20 milhões.”
Não tardou para que um potencial motivo para o custo tão alto surgisse. Em 2017, em delação premiada no âmbito da Operação Lava Jato, o então diretor da Odebrecht para a Bahia, André Vital Pessoa de Melo, informou à Justiça que houve irregularidades na licitação da obra, possivelmente como contrapartida para uma doação que a construtora havia feito para Neto, de R$ 2,2 milhões (R$ 1,8 milhões dos quais como “caixa 2”). Na época, foi tornado público quem recebeu o dinheiro, em nome de Neto: Lucas Torres Cardoso, amigo de longa data do ex-prefeito e apontado como o operador financeiro da campanha de Neto.
Passagem de bastão
Com a Odebrecht fora da disputa pelas obras em outros trechos de orla, quem tomou a dianteira nas reformas foi a própria empresa de Lucas Cardoso, a Construtora BSM. Na época, o sócio-diretor da empresa era um primo de Lucas, Bernardo Cardoso, que vinha a ser também sobrinho do então gerente de projetos da Casa Civil da Prefeitura, Manfredo Cardoso. Mais tarde, Lucas assumiu oficialmente a frente dos negócios: em uma nova reconfiguração da empresa, realizada no ano passado, a Five Participações, de Lucas, passou a ser a controladora da construtora.
Os altos valores destinados a essas obras, consideradas simples por arquitetos e urbanistas, e manobras suspeitas nas licitações chamaram a atenção tanto da oposição à gestão municipal quanto do Ministério Público. Alguns trechos causaram mais desconfiança, como o de apenas 3,3 quilômetros, localizado entre os bairros de Amaralina e Pituba. Sozinha, essa obra, realizada entre 2019 e 2020, no fim do mandato de Neto, consumiu quase R$ 50 milhões (ou R$ 14,55 milhões por quilômetro).
Inicialmente orçado em já altos R$ 39 milhões – mais que o valor investido pelo governo do Estado para construir o Complexo Viário 2 de Julho, que desafogou o trânsito da região do aeroporto, por exemplo –, o projeto ainda recebeu aditivos de mais R$ 9 milhões ao longo da empreitada. À frente das obras, estava a BSM, por meio do Consórcio Orla Marítima. Neste caso, causou estranheza, além do alto valor, o fato de sete das nove concorrentes da licitação terem sido previamente vetadas do certame, sob alegação de falta de experiência em obras do tipo.
Pouco tempo antes, a BSM também não tinha tal expertise, mas levou o contrato – com o preço mais alto entre os postulantes. O fato integra uma representação apresentada por deputados estaduais, em julho, ao Núcleo de Investigação dos Crimes Atribuídos a Prefeitos (CAP), do Ministério Público. “Estamos aguardando o resultado dessas investigações na expectativa que um inquérito civil seja aberto”, afirma do deputado Robinson Almeida.
Investigações
As investigações têm como alvo primário a Superintendência de Obras Públicas (Sucop), que à época era gerida pelo atual prefeito de Salvador, Bruno Reis. Já Lucas Cardoso atuou ativamente na pré-campanha eleitoral de Neto ao governo do Estado, cooptando aliados. Estrategicamente, tanto Cardoso quanto a BSM – cujo site está fora do ar antes do início da campanha eleitoral – estão sendo ocultados.
Cálculos indicam que, desde o início das obras de revitalização da orla na cidade, a BSM, que era uma empresa inexpressiva antes de Neto assumir a Prefeitura, virou um colosso: já recebeu cerca de R$ 500 milhões da administração municipal desde 2013. E a conta segue subindo. A empresa, integrante do Consórcio Orla Atlântica, está à frente do projeto de revitalização de Pituaçu, inicialmente orçado em R$ 135,4 milhões – R$ 35,8 milhões por quilômetro –, com previsão de entrega no verão de 2024, segundo a Prefeitura.
Chama a atenção a falta de interessados em participar de uma licitação de tal monta. Além do Consórcio Orla Atlântica, apenas dois concorrentes pleitearam a bolada – e um deles, a Metro Engenharia e Consultoria, é parceira da BSM em várias outras intervenções na cidade. “Chegamos a participar de algumas das licitações, mas vimos que é perda de tempo”, afirma o executivo de uma empresa do setor, integrante do Sindicato da Indústria da Construção do Estado da Bahia (Sinduscon), que pediu anonimato. “Vencem sempre os mesmos.”
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