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SALVADOR

O primeiro fricote

Por JORNAL A TARDE

29/03/2006 - 0:00 h

Salvador virou o trampolim de um movimento que mudou para sempre a face do Carnaval e da indústria cultural brasileira



Ceci Alves


 

O ano é 1985. No rádio, nas bocas e nos corpos de toda a Bahia, naquele Carnaval, só dava o Fricote, música de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, interpretada por Luiz Caldas, que, descalço, olhos pintados, brincos exuberantes, fardão de general e voz matreira e anasalada, redefiniu os padrões comportamentais da época.



Assim, o Fricote inaugurava uma nova forma de cantar, dançar e se comportar, que extrapolou o Carnaval e passou a contaminar os 365 dias do baiano e, logo, do País. Começava, assim, no Carnaval de Salvador, a onda da axé music. E lá se vão 21 anos.



E Salvador – à época, com 436 anos – foi o trampolim da transformação do Carnaval e da indústria cultural brasileiros – produto e produtor que, segundo deixam transparecer os autores Edmundo Barreiros e Pedro Só, no verbete “O último Carnaval sem axé”, do livro 1985 –



O ano em que o Brasil recomeçou, nunca mais foram os mesmos.



“O que a imprensa do Sudeste não anotou na época foi um fenômeno que mudaria para sempre as folias do País: o despertar da axé music. Daí em diante, nunca mais haveria um fevereiro sem axé”, diz a publicação, lançada recentemente. Arremata Luiz Caldas, o precursor do movimento: “Salvador era, na época, um tubo de ensaio, uma democracia musical. A cidade preparou o terreno. Essa mudança não poderia se dar em nenhum outro lugar do mundo, a não ser neste território das livres manifestações”.



O cantor, compositor e multiinstrumentista segue: “A cidade cumpriu o lugar de mãe sempre acolhedora, para onde toda a Bahia afluia e todas as influências se encontravam. Foi desse solo fértil que nasceu o axé”, lembra Caldas, exemplo vivo do que fala: ele próprio nasceu em Feira de Santana e, hoje, é cidadão soteropolitano, com “muito orgulho” e título conferido pela Câmara de Vereadores.

  

SOLO FÉRTIL – Um dos adubos desse solo foi – ademais das “riquezas da Bahia, em que cada um tem seu sotaque e sua linguagem”, como argumenta Luiz – o substrato da vanguarda, que sempre existiu por Soterópolis, e que andava, na metade dos anos 80, revolvido e à flor da pele por conta da passagem da enxurrada tropicalista.



Enxurrada que, em finais da década de 60, também escolheu Salvador como palco aglutinador dos ideais de Gilberto Gil e Caetano Veloso, baluartes da Tropicália e que propunham o “é proibido proibir” da mistureba pop-elétrica-estrangeira com as manifestações folclóricas mais intrínsecas do Brasil.



Além do humus tropicalista, a boa terra soteropolitana estava regada com as águas da cultura pop mundial, que, àquela época de Madonnas e Michael Jacksons, despejava nos ouvidos e corações ávidos seus ídolos, seus sons, e a fórmula rápida e fácil da qual se utilizavam para atingir o Olimpo das massas.



Da conjunção dessas variáveis, eclodiu o fruto mais suculento e “criado” dessa safra: o despretensioso axé, que soube entender o ideário antropofágico da Tropicália, de ser comercial ao mesmo tempo que imanente; ser intensamente promíscuo na mistura, sem se importar com radicalismos roots; ser leve na fórmula, buscando o popular e a transmissão imediata das mensagem. Enfim ser popular e pop – e sem vergonha disso.

  

DO FRICOTE AO AXÉ – Luiz Caldas concorda que a origem da axé music está no Tropicalismo, mas, assume: à diferença do movimento político-musical-comportamental dos anos rebeldes, a grande contribuição do axé não é musical. “Alegria é o grande segredo de nossa música, o descompromisso é fundamental”.



E, para Caldas, “a axé music mudou a forma de se fazer Carnaval pela alegria”, resume, explicitando ainda mais o ponto discordante entre a mãe (a Tropicália) e o rebento (o axé): “Quem tem que educar o povo é o governo; música deve divertir, não está aí para falar de problemas políticos. Claro, que com uma pitadinha de sugesta, mas sem maiores conseqüências”, arremata.



Assim, pela galhofa e descartabilidade – características básicas da indústria pop – aquele novo estilo musical de 1985, a princípio chamado apenas de Fricote, como o título da canção que catapultou Luiz Caldas para a fama – tomou de assalto a Bahia e o Brasil.



Este fenômeno, logo intitulado pela mídia baiana “satírica” – crivo de Edmundo Barreiros e Pedro Só – como axé music, criou uma nova cultura de mercado, industrializando a música baiana e profissionalizando o Carnaval. E serviu de válvula de escape para que os aspirantes a superstars não quisessem apenas copiar fórmulas, mas dessem tratos à bola para lançar mão dos elementos de que dispunham no seu imaginário regional e fizessem sua música e seu sucesso.



Daí, subiu ao trio elétrico soteropolitano – sim, o carro de som que, há 50 anos, subverteu a lógica carnavalesca também é daqui, de Salvador – o ideal de pop star de uma geração, lastreado por uma mescla de sons caribenhos e afro-brasileiros, com uma pitada de frevo pernambucano, herdada também da tradição de Dodô e Osmar, os precursores do Carnaval elétrico. E um balançar de cadeiras, irresistível, que tirou o País do sério. “Vamo rebolar um pouquinho: isso, em Salvador, é Carnaval”, exorta Luiz Caldas.



Mas a década de 80, era dos heróis pop, acabou. E, hoje, o produto axé music movimenta US$ 240 milhões a cada edição da folia no Estado e é acusado de acabar com a ingenuidade e tradição da festa de rua. Mas se, em 2006, Bono Vox, vocalista da banda mais pop do universo, U2, vem a Salvador e canta “chupa toda” para Ivete Sangalo, o mundo ouve os rumores e se debruça na janela dos camarotes para ver a carnavalização baiana, deve-se a esta mistura que uniu um vocábulo iorubá, que remete à ancestralidade, a uma palavra inglesa, representando o pé no mundo, na cultura pop. E os dois mundos se encontraram na Soterópolis.



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