SALVADOR
O primeiro fricote
Por JORNAL A TARDE
Salvador virou o trampolim de um movimento que mudou para sempre a face do Carnaval e da indústria cultural brasileira
Ceci Alves
O ano é 1985. No rádio, nas bocas e nos corpos de toda a Bahia, naquele Carnaval, só dava o Fricote, música de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, interpretada por Luiz Caldas, que, descalço, olhos pintados, brincos exuberantes, fardão de general e voz matreira e anasalada, redefiniu os padrões comportamentais da época.
Assim, o Fricote inaugurava uma nova forma de cantar, dançar e se comportar, que extrapolou o Carnaval e passou a contaminar os 365 dias do baiano e, logo, do País. Começava, assim, no Carnaval de Salvador, a onda da axé music. E lá se vão 21 anos.
E Salvador à época, com 436 anos foi o trampolim da transformação do Carnaval e da indústria cultural brasileiros produto e produtor que, segundo deixam transparecer os autores Edmundo Barreiros e Pedro Só, no verbete O último Carnaval sem axé, do livro 1985
O ano em que o Brasil recomeçou, nunca mais foram os mesmos.
O que a imprensa do Sudeste não anotou na época foi um fenômeno que mudaria para sempre as folias do País: o despertar da axé music. Daí em diante, nunca mais haveria um fevereiro sem axé, diz a publicação, lançada recentemente. Arremata Luiz Caldas, o precursor do movimento: Salvador era, na época, um tubo de ensaio, uma democracia musical. A cidade preparou o terreno. Essa mudança não poderia se dar em nenhum outro lugar do mundo, a não ser neste território das livres manifestações.
O cantor, compositor e multiinstrumentista segue: A cidade cumpriu o lugar de mãe sempre acolhedora, para onde toda a Bahia afluia e todas as influências se encontravam. Foi desse solo fértil que nasceu o axé, lembra Caldas, exemplo vivo do que fala: ele próprio nasceu em Feira de Santana e, hoje, é cidadão soteropolitano, com muito orgulho e título conferido pela Câmara de Vereadores.
SOLO FÉRTIL Um dos adubos desse solo foi ademais das riquezas da Bahia, em que cada um tem seu sotaque e sua linguagem, como argumenta Luiz o substrato da vanguarda, que sempre existiu por Soterópolis, e que andava, na metade dos anos 80, revolvido e à flor da pele por conta da passagem da enxurrada tropicalista.
Enxurrada que, em finais da década de 60, também escolheu Salvador como palco aglutinador dos ideais de Gilberto Gil e Caetano Veloso, baluartes da Tropicália e que propunham o é proibido proibir da mistureba pop-elétrica-estrangeira com as manifestações folclóricas mais intrínsecas do Brasil.
Além do humus tropicalista, a boa terra soteropolitana estava regada com as águas da cultura pop mundial, que, àquela época de Madonnas e Michael Jacksons, despejava nos ouvidos e corações ávidos seus ídolos, seus sons, e a fórmula rápida e fácil da qual se utilizavam para atingir o Olimpo das massas.
Da conjunção dessas variáveis, eclodiu o fruto mais suculento e criado dessa safra: o despretensioso axé, que soube entender o ideário antropofágico da Tropicália, de ser comercial ao mesmo tempo que imanente; ser intensamente promíscuo na mistura, sem se importar com radicalismos roots; ser leve na fórmula, buscando o popular e a transmissão imediata das mensagem. Enfim ser popular e pop e sem vergonha disso.
DO FRICOTE AO AXÉ Luiz Caldas concorda que a origem da axé music está no Tropicalismo, mas, assume: à diferença do movimento político-musical-comportamental dos anos rebeldes, a grande contribuição do axé não é musical. Alegria é o grande segredo de nossa música, o descompromisso é fundamental.
E, para Caldas, a axé music mudou a forma de se fazer Carnaval pela alegria, resume, explicitando ainda mais o ponto discordante entre a mãe (a Tropicália) e o rebento (o axé): Quem tem que educar o povo é o governo; música deve divertir, não está aí para falar de problemas políticos. Claro, que com uma pitadinha de sugesta, mas sem maiores conseqüências, arremata.
Assim, pela galhofa e descartabilidade características básicas da indústria pop aquele novo estilo musical de 1985, a princípio chamado apenas de Fricote, como o título da canção que catapultou Luiz Caldas para a fama tomou de assalto a Bahia e o Brasil.
Este fenômeno, logo intitulado pela mídia baiana satírica crivo de Edmundo Barreiros e Pedro Só como axé music, criou uma nova cultura de mercado, industrializando a música baiana e profissionalizando o Carnaval. E serviu de válvula de escape para que os aspirantes a superstars não quisessem apenas copiar fórmulas, mas dessem tratos à bola para lançar mão dos elementos de que dispunham no seu imaginário regional e fizessem sua música e seu sucesso.
Daí, subiu ao trio elétrico soteropolitano sim, o carro de som que, há 50 anos, subverteu a lógica carnavalesca também é daqui, de Salvador o ideal de pop star de uma geração, lastreado por uma mescla de sons caribenhos e afro-brasileiros, com uma pitada de frevo pernambucano, herdada também da tradição de Dodô e Osmar, os precursores do Carnaval elétrico. E um balançar de cadeiras, irresistível, que tirou o País do sério. Vamo rebolar um pouquinho: isso, em Salvador, é Carnaval, exorta Luiz Caldas.
Mas a década de 80, era dos heróis pop, acabou. E, hoje, o produto axé music movimenta US$ 240 milhões a cada edição da folia no Estado e é acusado de acabar com a ingenuidade e tradição da festa de rua. Mas se, em 2006, Bono Vox, vocalista da banda mais pop do universo, U2, vem a Salvador e canta chupa toda para Ivete Sangalo, o mundo ouve os rumores e se debruça na janela dos camarotes para ver a carnavalização baiana, deve-se a esta mistura que uniu um vocábulo iorubá, que remete à ancestralidade, a uma palavra inglesa, representando o pé no mundo, na cultura pop. E os dois mundos se encontraram na Soterópolis.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes