URBANO
Proteção às pessoas em situação de rua
Com arquitetura hostil em diversos pontos, capital baiana precisa se adequar às novas determinações do STF
Por Jane Fernandes
A criação de mecanismos para proibir o emprego de arquitetura hostil à população em situação de rua é uma das determinações do Supremo Tribunal Federal (STF), resultante de votação concluída na última segunda-feira, 21. Embora uma lei com esse foco tenha sido sancionada em Salvador em abril deste ano, exemplos dessas intervenções podem ser vistos em vários pontos da cidade, em espaços públicos e privados.
Em duas áreas tradicionalmente ocupadas por pessoas em situação de rua na capital baiana, grandes bolas, pássaros coloridos e vasos quadrados, todos feitos de cimento e bastante pesados, ilustram a chamada arquitetura hostil. Quem vive sob a marquise de um prédio abandonado na Sete Portas ou embaixo da quadra que cruza a Rua Direita da Piedade, no Politeama, não têm dúvida quanto ao objetivo de dificultar que se alojem.
No Politeama, Andreia Tomas, 51 anos, afirma ter visto muita gente indo embora após a colocação dessas peças, restando a família dela - formada por ela, o marido, cinco filhos, um genro e seis netos - e alguns outros resistentes. Já na Sete Portas, os moradores passaram a mover as esferas e vasos de acordo com as suas necessidades, muitas vezes usando como ponto de fixação dos panos e lonas usados nas tendas.
Doutora em arquitetura e urbanismo, Isadora Costa explica que a arquitetura hostil é caracterizada pela implantação de elementos construtivos que repelem as pessoas e também por aspectos de equipamentos urbanos que dificultem o uso. “Quando a gente tem, por exemplo, bancos de praça que são seccionados. Eles têm o braço em seu cumprimento, então você não pode recostar com mais facilidade, as pessoas em situação de rua não podem permanecer ali”, comenta.
Canteiros com cactos e outras plantas espinhosas, marquises gradeadas e estacionamentos cercados durante a noite também são citados por Isadora como exemplos dessa arquitetura em prédios residenciais e comerciais, e estabelecimentos diversos. No Politeama, a mureta do canteiro na frente de uma casa tinha pontas de metal em forma de seta, dificultando o acesso e impedindo que sentem na borda.
“Acho que a partir de agora eles vão precisar rever inclusive seus próprios status. Por exemplo, quando a gente pensa nas praças públicas, à noite algumas são fechadas com gradis”, pondera Isadora. Em sua opinião, é preciso permitir o acesso das pessoas em situação de rua, que acabam sendo impedidas de passar a noite nesses locais, ainda que a alegação oficial para o fechamento seja a segurança.
O emprego da arquitetura hostil está entre os pontos combatidos pelo Núcleo Especializado de Atendimento à População em Situação de Rua da Defensoria Pública da Bahia. O defensor Armando Fauaze afirma que a atuação do Núcleo já resultou na remoção de vários obstáculos representativos da aporofobia - neologismo que significa medo e rejeição a pessoas pobres.
Falta abrigo
“Regularmente a gente tem que fazer visita institucional, tem que conhecer todos os órgãos da rede, tem que acompanhar para ver se está funcionando e infelizmente está tudo sucateado”, avalia o defensor. Para ele, a insuficiência das unidades de abrigamento para as pessoas em situação de rua é uma das principais lacunas em Salvador, principalmente diante do aumento dessa população.
Quando necessário, a Defensoria aciona a Justiça para resolver problemas verificados pelo núcleo, mas a efetividade acaba sendo limitada. “A pessoa chega com a demanda, a gente sensibiliza, movimenta a máquina judiciária, judicializa, mas daqui que o juiz mande citar o Município ou o Estado aquela demanda passou e a pessoa já aparece com outra demanda”, conta Fauaze.
No mês passado, durante reunião do prefeito Bruno Reis com o titular da Secretaria de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre), foi informado que Salvador atualmente tem mais de cinco mil pessoas em situação de rua. O número foi divulgado como uma antecipação de dados do Censo da População em Situação de Rua, com previsão de publicação ainda este ano.
A TARDE questionou a Sempre sobre os dados completos do Censo e solicitou entrevista com um representante da secretaria sobre as políticas direcionadas a esse público, mas não teve retorno até o fechamento desta edição.
Redução de danos
Na esfera estadual, a secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, Fabya Reis, comentou que a partir da decisão do STF, “o desafio dos poderes públicos é aprimorar e implementar ações de acolhimento, de assistência social, redução de danos e inclusão plena deste segmento. Estamos unindo esforços, em diálogos com os municípios, também na parceria com o Governo Federal, para a avançar neste sentido e efetivar ações à altura deste delicado tema”.
Entre as ações executadas pelo Estado, ela destacou o programa Corra pro Abraço, com foco na redução de riscos e danos a populações vulneráveis. Superintendente de Políticas sobre Drogas e Acolhimento a Grupos Vulneráveis da Seades, Gabriel Oliveira conta que o Corra atualmente está presente em Salvador, Feira de Santana e Vitória da Conquista.
Na capital baiana, o programa tem um Centro de Referência, inaugurado no último mês de abril. “É um equipamento que faz atendimento e acompanhamento dessas pessoas, dessas famílias… Um programa que a partir do momento que entra em contato, cria um vínculo com essas pessoas, essas famílias, consegue identificar demandas e encaminhar eles para serviços”, explica Oliveira.
Entenda a votação
No último dia 21, o STF referendou a decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 976, apresentada pela Rede Sustentabilidade, PSOL e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Foi determinado que o governo federal tem um prazo de 120 dias para elaborar um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua. Já os estados e municípios precisam adotar medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Também devem proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua.
Os horários fixos e as diversas regras características dos abrigos e centros terapêuticos formam uma barreira na adaptação de muitas pessoas em situação de rua, que acabam preferindo voltar para suas tendas de pano e plástico. De volta à Sete Portas, Luciano Cardoso de Oliveira, 38 anos, conta que se sentia oprimido no centro onde viveu um tempo, em Barra do Jacuípe.
Ele foi para a unidade para se livrar da dependência do crack, mas com a suspensão do seu auxílio-aluguel decidiu voltar a Salvador para resolver o problema, enquanto isso, permanece sob uma marquise na Rua Cônego Pereira. No centro terapêutico, Luciano não podia usar crack, nem consumir álcool, substância que também lhe causa problemas.
Quando A TARDE chegou ao local, uma equipe do Município estava abordando os moradores. Segundo Carlos Costa do Carmo, 24, o intuito era retirar as tendas montadas no local, deixando todos sem abrigo para dormir. Como a Secretaria de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer não deu retorno ao pedido de entrevista até o fechamento desta edição, não foi possível confirmar a informação.
Andreia Tomas, de 51 anos, disse que uma equipe também esteve no Politeama no mesmo dia (última quarta-feira), mas não reclamou da abordagem. No local há quase sete anos, ela recebe o Bolsa Família e a renda é complementada pelo trabalho do marido e do genro com reciclagem. Sua expectativa é resolução do espólio da mãe, com quem morava em Cajazeiras 11 até seu falecimento.
Com a filha caçula no colo, Andreia conta que os irmãos iam vender a casa deixada pela mãe sem incluí-la na divisão do dinheiro, então ela procurou a Justiça para garantir os seus direitos. Apenas um dos seus irmãos se mantém em contato, com visitas mensais nas quais dá alguma ajuda. Ele é evangélico, ela frequentava a igreja, mas agora se considera sem religião, por estar afastada.
A espera pela resolução de uma questão financeira também é relatada por Sandoval Pinheiro, 43, que vive na Praça Nossa Senhora da Luz, na Pituba. Ele recebe um Benefício de Prestação Continuada (BPC) por conta da deficiência adquirida após um acidente ocorrido em 2008, mas afirma ser necessário permanecer no local para receber o dinheiro retido em um banco.
Na mesma praça, o lar improvisado e muito bem arrumado sobre a estação de bombeamento de esgoto chama a atenção de quem passa, tem uma santa, flores, um suporte para guardar a comida, até um caminho com piso cerâmico, solto, levando a um capacho com “Boas vindas”. Não foi possível falar com a moradora, que dormia ao lado do totem escrito “Pituba”.
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