ENTREVISTA - MAMADOU GAYE
‘Quanto mais diálogo, menos brechas para ideias extremistas’
Ex-cônsul francês, nascido no Senegal. fala sobre o crescimento do discurso contra imigrantes na Europa e de sua relação com a Bahia
Por Divo Araújo
Senegalês-franco-baiano, como se define, Mamadou Gaye chegou à França aos 10 anos de idade. Estudou e se desenvolveu o suficiente para se tornar cônsul honorário do país na Bahia entre 2019 e 2024. Mesmo com essa trajetória, ele questionou sua própria identidade com a ascensão da extrema-direita, pautada no discurso de ódio contra os imigrantes.
“Esse aumento dos votos pela extrema-direita foi um momento de muitos questionamentos para mim, um imigrante africano que veio para a Europa”, reflete Mamadou, nesta entrevista exclusiva ao A TARDE, concedida por telefone de Paris, para onde foi com o objetivo de se engajar na luta contra o extremismo.
Mas o retorno para Salvador está próximo. Foi na capital baiana que ele redescobriu, como explicou, parte de sua cultura e de sua identidade. "É maravilhoso ver como a cultura negra foi mantida e como foi usada como meio de resistência em Salvador". Saiba mais na entrevista que segue.
O senhor, que nasceu no Senegal e cresceu na França, como vê o crescimento da extrema direita na própria França e na Europa, pautado num discurso de ódio contra os imigrantes?
Vejo através de várias dimensões. A primeira enquanto imigrante que tem hoje dupla nacionalidade. Com toda essa retórica que a extrema direita resolveu movimentar, dessa vez sobre as pessoas com dupla nacionalidade, me senti pessoalmente questionado na minha identidade e na minha relação com a França. Uma segunda dimensão é que eu passei oito anos dentro de uma ONG antirracista, uma das maiores da França, que atua na Europa toda, e que se chama SOS racismo. Essa ONG tem mais de 40 anos e sempre lutou contra as ideias da extrema direita, tentando construir uma sociedade mais aberta e tolerante. Portanto, esse aumento dos votos pela extrema-direita foi um momento de muitos questionamentos para mim enquanto pessoa, enquanto imigrante africano que veio para Europa. Enquanto cidadão também porque eu sempre fiz questão de ser um cidadão ativo, presente, participativo.
As características que fundamentam o crescimento da extrema direita - nacionalismo exacerbado, busca por um culpado externo, falta de perspectiva para juventude e xenofobia - te fazem pensar no que aconteceu no passado na Europa?
A gente sabe que a história é formada de eternos recomeços, que se passam nos mesmos lugares, apesar dos lugares serem diferentes. Quem é observador da vida política francesa, europeia e ocidental de forma geral, sabe o quanto às ideias de cidadania, de democracia, de viver juntos, são frágeis. Essas forças nunca abrem mão de dividir a população. Nunca abrem mão desta lógica de encontrar o culpado ideal para justificar momentos de crise. Isso já aconteceu no passado. Em cada momento de crise, eles tentam colocar essas justificativas de forma simplificada. É culpa dos africanos, é culpa dos imigrantes que vão roubar o trabalho dos ocidentais brancos. E com parte das mídias amplificando esse discurso e fazendo muitas pessoas caírem nessa armadilha. Porque é uma armadilha da extrema direita, que não acredita nas teses que defende, mas acaba conseguindo convencer uma grande parte da população. No caso dos segundo turno das eleições legislativas na França, foram quase 10 milhões de votos que eles reuniram. Sempre apresentando soluções fáceis para cortar caminhos. Mas teve uma mobilização grande dos democratas, da juventude, dos binacionais, para frear essa evolução da extrema-direita e impedir que tivessem acesso ao governo francês, que era o seu objetivo. No final, foi uma derrota da extrema-direita porque a população francesa conseguiu, num tempo muito curto, se mobilizar para impedir a chegada deles ao poder.
O senhor falou da mobilização da juventude, das pessoas com dupla nacionalidade. O que mais explicaria essa reviravolta nas eleições francesas?
A extrema direita sempre foi hábil em criar uma falsa concorrência entre eles. E o que aconteceu é que, neste caso, os partidos de esquerda, diante da realidade política posta, fizeram uma grande revolução para criar uma frente coletiva popular, fazer acordos políticos e garantir que menos deputados da extrema direita fossem eleitos. Mas, o mais importante, é que fizeram acordo sobre um programa de governo, conseguindo encontrar alinhamentos nas questões essenciais. E dessa forma conseguir uma alternativa para a população. Sem entrar muito nos detalhes da política francesa, quero lembrar que o (presidente Emmanuel) Macron, quando chegou ao poder em 2017, entrou nesse jogo político ao dizer que não existia mais esquerda e direita. Que só existia uma forma de centro pragmático e que todo mundo cansou dessa polarização esquerda-direita. Só que a França é um país extremamente político. Gostamos disso. Aqui se fala muito de política. O que a esquerda conseguiu fazer, em muito pouco tempo, e que antes não conseguiu fazer por meses, dias, até por até anos, foi recriar essas linhas políticas da esquerda e direita. Com questões essenciais sobre o salário, como pagar, como retribuir um trabalho de alguém. A questão da aposentadoria. Será que dá para trabalhar a vida toda ou a gente tem direito a um descanso? Quem tem que financiar isso? E outras questões da sociedade importantes e que permitiram construir uma mensagem clara: existe uma direita e uma esquerda. E demonstrando, de certa forma, que o poder não conseguiu apagar essa realidade. Isso permitiu, de novo, identificar a extrema direita, suas ideias e sobretudo caracterizar a forma antidemocrática desses movimentos. Porque eles são, por essência, antidemocráticos.
Como foi sua experiência, como imigrante africano, ao crescer na Europa?
Eu cheguei à França com 10 anos de idade, me formei na escola da república. Com 18 anos, por aí, entrei nesse movimento antirracista. Então, sempre trabalhei com essas questões de racismo, identidade , vida coletiva, comunidade. Seja através da cultura, da militância mesmo ou através das questões políticas. Sendo ativo nessas questões, nunca vivi essa realidade como um sujeito passivo. Eu sempre fui ator dessas questões todas e, de certa forma, da minha vida. Mas essas questões não são individuais. A gente vive essas situações de forma coletiva. Vivi esses momentos de alta nas ideias progressistas, quando havia uma política de redistribuição e isso deixava as condições de vida das pessoas melhores. Vivi também momentos mais duros com governos mais conservadores, com discurso mais crítico. E quando vem essas críticas em direção aos imigrantes, aos negros, aos árabes, vivo isso pessoalmente. Apesar da minha própria realização, porque eu vivo como membro de um coletivo. Sou cidadão dessa sociedade, como do mesmo jeito participo da vida pública social aí na Bahia. Isso me define muito. Faço questão de pertencer e não está sendo tão fácil. Me dei conta recentemente, nessa sequência política que acabamos de viver, que a minha lealdade para com o país pode ser questionada. O fato de fazer parte da sociedade, ser reconhecido como cidadão, isso pode ser questionado. E se está questionado para mim, que vivo aqui há mais de 30 anos, é mais questionado ainda para as pessoas que chegaram há um, dois, três anos. Eu sei dessa realidade e isso me mobiliza. Durante o primeiro, segundo turno, me mobilizei, procurei movimentos políticos. Fiz ligações, conversei muito, gravei vídeos tentando mobilizar as pessoas para irem votar. Para empoderar as pessoas. Sejam elas imigrantes recentes, imigrantes da primeira, segunda, terceira geração, sejam franceses, que nasceram aqui. Lembrar dessa capacidade de transformação.
Falando um pouco da sua experiência como cônsul francês aqui em Salvador. Qual o balanço que o senhor faz desse período e o que mais te marcou?
Eu estou na Bahia há sete anos e fiquei à frente da agência consular em Salvador por cinco anos e pouco. Entrei lá em fevereiro de 2019 e encerrei agora no mês de maio. Foi uma experiência muito rica. Me senti muito honrado, enquanto franco, baiano e senegalês, como costumo me definir, de representar a França, de poder mostrar uma outra a cara da França. Com uma cultura mais rica, com essa ideia de francofonia, que vai muito além das fronteiras da França. Que inclui os países francófonos do continente africano, do Caribe, onde se fala o francês diferente do francês falado aqui na França. E onde também as referências são diferentes das referências daqui. De uma França muito mais complexa que a defendida pela extrema direita que não existe mais. Eu sou o futuro da França. Assim como os meninos que vem do Mali, da Índia, do Sudão, todas essas pessoas que chegaram que estão enriquecendo muito este país, a sua cultura. E a França ainda não consegue aproveitar totalmente esse potencial, por uma falta de reconhecer essa sua realidade múltipla, diversa, rica, saída de uma história com momentos complexos que ainda precisam ser trabalhados como a colonização, a escravatura. Mas que são feitos também de muitas referências em comum que a gente compartilha. Então, foi uma honra ficar à frente do consulado. Foi uma honra também trazer uma postura minha muito pautada na humildade, na escuta, na vontade mútua de trazer soluções concretas para as pessoas. Eu recebi as pessoas, sejam cidadãos franceses ou brasileiros com relação com a França, do mesmo jeito que gostaria de ser tratado nas diferentes administrações. Considerando cada queixa, cada questão como importante. Eu lembro de ter recebido um casal de brasileiros que viajou para França, teve dificuldades no aeroporto e o aeroporto respondeu. Essa foi a minha missão. Essa escuta, criar pontes, criar essa compreensão mútua entre os povos. É a mesma postura que tive quando fui diretor da Aliança Francesa. Porque tenho certeza que, quanto mais as culturas dialogam, quanto mais as pessoas dialogam, menos vai abrir brechas para ideias extremistas de tentar transformar a sociedade. Porque uma pessoa que não é recebida é uma pessoa isolada. Quem não encontrar respostas para as suas perguntas, vão procurar respostas mais simples que esses movimentos vão trazer. Tentei da mesma forma, na dimensão cultural. Nas questões relativas a toda população brasileira, que buscavam estudos e trabalho. Tentando sempre traduzir a linguagem da administração, que pode ser um pouco complexa, fechada, para criar pontes. De trazer soluções de forma muito concreta e sempre com a visão de aproximar os povos e as culturas.
Como foi a convivência com a cultura afro de Salvador? O que, na sua visão, difere essa cultura daqui de países da África ou de outros continentes?
Essa foi a parte mais maravilhosa dessa minha experiência em Salvador. Ver como a cultura negra foi mantida e como foi usada como meio de resistência, em particular dentro do candomblé, mas não só nele. Como as filosofias africanas parecem vivas na Bahia foi uma descoberta maravilhosa. Me senti totalmente acolhido nas minhas identidades enquanto africano, francês e agora com essa minha nova identidade baiana. Essa é uma dimensão muito importante e passou muito pela valorização que foi feita da cultura, da filosofia, da cosmovisão negra e africana. E tem uma terceira dimensão importante: como essa cultura africana, além das pessoas negras de Salvador, acaba abraçando muitas outras questões dentro da cidade. É uma dimensão fantástica porque chegou a conferir a Salvador e a Bahia uma identidade a parte do Brasil. Eu não lembro exatamente do autor que fala que o Rio é o Brasil, São Paulo é o mundo e a Bahia é a Bahia. Isso por conta dessa dimensão cultural. A admissão dessa cultura me deixa feliz na gastronomia, na espiritualidade, nas relações entre as pessoas, no jeito de cultivar a felicidade, na relação com o tempo, com o trabalho. Em todas as dimensões. E saindo de Paris eu redescobri, de certa forma, uma parte da minha cultura e da minha identidade chegando à Bahia por incrível que pareça.
Sei inclusive que o senhor pretende morar em Salvador, estudando sobre as diásporas africanas. Quais são seus planos para o futuro aqui?
Escutei muito durante sete anos, aprendi muito, troquei informações com muitas pessoas e meu plano principal é contribuir com projetos culturais. Contribuir criando pontes, o que sempre fiz, entre a Bahia, o Brasil, a França, o continente africano de forma geral e o Senegal em particular. Usando essas redes que fazem parte de mim e colocando essas redes a disposição dos atores culturais, dos atores de forma geral de Salvador. Uma forma que já estou praticando é no campo da pesquisa e no campo universitário. Estou fazendo doutorado no programa de pós-cultura da Ufba em cultura e sociedade, mais especificamente. E estou fazendo uma pesquisa que vai fazer uma análise dos discursos de posse dos presidentes da França, do Senegal e do Brasil para ver as questões de identidade e de raça. Pretendo contribuir alimentando o diálogo, o debate com essa minha pesquisa mais especificamente. E com qualquer projeto cultural que possa contribuir. Estou aberto para que o universo quiser. Resolvi morar em Salvador depois de uma viagem que fiz a passeio. Na hora de ir embora, estava no Terreiro de Jesus, e joguei para o universo: gostaria de estar aqui sem data de retorno. Então, hoje estou jogando isso para o universo, porque o universo conspira para me conectar com projetos e pessoas, com atividades que vão me permitir contribuir, me alimentar e me trazer felicidade.
Para concluir, li numa entrevista o senhor defender a importância de ressignificar a história através de uma perspectiva negra. O que precisa ser feito para termos essa ressignificação?
Muitas coisas podem ser feitas. Vou dar três direções. Tem uma que está caminhando muito que é a aproximação de autores e referências africanas. Quando estava à frente da Aliança Francesa, consegui convidar dois pensadores imensos africanos, que se chamam Felwime Sarr e Souleymane Bachir Diagne. Esses dois pensadores chegaram a falar da ideia de organizar o evento em Salvador – e espero que a gente consiga organizar – que se chama “Les ateliers de la pensées”, os ateliers do pensamento. É um encontro que foi organizado duas vezes na cidade de Dakar e que reuniu vários pensadores negros e africanos para refletir sobre temáticas voltadas para o continente africano e para o mundo de forma geral. Foi um encontro muito importante. Fazer com que os pensadores do continente africano e da diáspora se reúnam em Salvador será um marco muito grande dessa ressignificação do pensar mais afrocentrado. Tem outra dimensão, que acho muito importante, que é a gente trabalhar as rotas entre América Latina e o continente africano. Hoje em dia é muito complicado viajar de Salvador para Dakar, por exemplo. Se eu quero sair de Salvador para Dakar, num vôo direito, seriam cinco, seis horas. Mas eu preciso ir para Europa primeiro, numa viagem de 15 a 20 horas. Isso precisa ser desenvolvido para que as ideias circulem mais, os artistas circulem de forma mais simples. Essa aproximação que já existe de fato consiga ter uma dimensão forte ainda. E a terceira dimensão, ao meu ver, tem que acontecer no Brasil mesmo. Tem uma palavra que é muito convocada que é a ancestralidade. A ancestralidade africana no caso. E acho que diretores de cinema, diretores de teatro, pessoas que têm a possibilidade de organizar projetos culturais, poderiam pensar mais em chamar os africanos que estão presentes no Brasil para colaborar, para participar. Dar uma concretude, dar uma realidade a esse conceito de ancestralidade dessa forma. Quando se fala de ancestralidade dessa forma, é bom que a narrativa não seja construída a partir apenas de um olhar brasileiro. Que os próprios africanos sejam protagonistas. Porque senão acaba sendo a reprodução de uma visão colonial que consiste em falar dos africanos sem os africanos. E tem muitos africanos presentes no Brasil. Em São Paulo, Rio, na Bahia, no cinema, na arte, atores. Eu conheço muitos. Outros de fora também que gostariam de trabalhar no Brasil. Poderemos chamar de reflexo da ancestralidade, que seria bom sempre ter. Do mesmo jeito que quando se faz um edital, pensa nas cotas para as pessoas negras, seria bom, quando montar um projeto cultural que tem a ver com a ancestralidade, procurar um ator, uma atriz africana no Brasil. Falar diretamente com a pessoa para trazer essas referências, porque isso faz que essa ideia não seja apenas um conceito. Vira uma coisa que as próprias pessoas protagonizam. Isso que dá sentido, quando as pessoas podem protagonizar os conceitos. Essas são, para mim, as três ideias para dialogar com essa ressignificação de referências mais afrocentradas.
Raio-X
Mamadou Gaye é mestre em Humanidades e Comunicação pela Universidade Sorbonne - Paris IV, doutorando do Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Ufba), palestrante, consultor em projetos culturais e facilitador em transformação das organizações. Foi diretor da Aliança Francesa de Salvador-BA de 2017 a 2021 e cônsul honorário da França na Bahia de 2019 a 2024. Ele nasceu no Senegal, se criou na França e mora em Salvador há sete anos. Se define como Senegalês-franco-baiano.
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