ENTREVISTA - JOSÉ ANTÔNIO MAIA GONÇALVES
‘Quase a metade da população carcerária é de presos provisórios’
Secretário de Administração Penitenciária destaca, em entrevista ao A TARDE, o foco na ressocialização
Por Divo Araújo
Quase seis mil dos pouco mais de 12 mil detentos das unidades prisionais da Bahia ainda não foram julgados, o que contribui para pressionar todo o sistema carcerário. “Temos presos provisórios há mais de quatro anos e o processo não se desenvolve. Nem condena, nem absolve”, diz o secretário estadual de Administração Penitenciária, José Antônio Maia Gonçalves, em entrevista exclusiva ao A TARDE.
Na conversa, o secretário tratou de outros problemas do sistema e ressaltou o foco na ressocialização, para ele uma obrigação do Estado. Acompanhe a seguir a entrevista na qual ele falou também sobre a presença das organizações criminosas dentro dos presídios, a experiência da gestão compartilhada das unidades com a iniciativa privada e o uso de novas tecnologias no sistema.
Ao ser reconduzido para a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), o senhor enfatizou a ressocialização do indivíduo como fim supremo das políticas públicas nesta área. O que o Estado vem fazendo para cumprir essa premissa?
O Estado vem desenvolvendo uma série de projetos que nós estamos em campo, inclusive estou aqui com um rol deles. Você tem o Programa de Industrialização Prisional, que é o Extra Trabalho; o Projeto Conscientizando a Liberdade; o Projeto Constituindo a Liberdade; o Projeto Dignidade Menstrual; o Programa de Liberdade contra a Fome, que é um projeto nosso de agricultar as áreas no entorno dos presídios para que possamos fornecer alimentação. É uma agregação do Projeto de Combate à Fome. Temos também o projeto de Alimentação Solidária, comida dos internos que nós estamos vendo se conseguimos comprar com a agricultura familiar. E temos o projeto Alimentando Esperança, que é a instalação de cooperativas da agricultura familiar nas áreas cultivadas. Temos também projetos de incentivo ao trabalho dos egressos, o Começar de Novo, o Pro-Trabalho. Temos o programa de incentivo ao trabalho dos internos do sistema penitenciário que é o projeto Parceria Ressocializadora e o projeto de Dignificação do Trabalho. E, em parceria com o Ministério da Educação, temos o projeto Educar para Mudar, que é o fomento do ensino superior nos presídios. E, além disso, temos o projeto Reconstruindo Amanhã, de capacitação profissional e cultural. Tem o projeto Educação que Empodera, o Programa Pró-Jovem Urbano e Rural no Sistema Prisional, que é o ensino fundamental e capacitação dos jovens internos de 18 a 29 anos. O Programa Qualifica Bahia, que oferta curso em parceria com a Setre. Temos a identificação, documentação e cidadania, que é o projeto Fazendo Justiça. Nós já temos 20 presídios com equipamentos de identificação que proporcionam a emissão de nascimento, RG, CPF. Temos ainda a assistência ao egresso, feita pelo escritório social.
Qual é o peso desses programas de ressocialização para que os egressos do sistema prisional não voltem a cometer crimes?
A lei de execução penal, no artigo primeiro, traz a seguinte determinação: a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou internado. Ou seja, a conjunção é aditiva. Além do cumprimento da pena das medidas judiciais, nós também temos a obrigação de ressocializá-los. Por quê? Existem três estágios: primeiro estágio é o do cometente do crime. Depois, ele é processado, ou fica à disposição da Justiça como preso provisório ou vai ser sentenciado para o cumprimento de pena. Os jovens que fizeram isso geralmente são de famílias menos favorecidas. Não conseguiram assentar um banco de universidade, que não tiveram a oportunidade que outros têm. E aí o que acontece? Em cima desse jovem, que não teve condição, é que estamos trabalhando para que ele reveja o que fez e volte à sociedade. Nós estamos agora distribuindo livros, porque a remição pela leitura também é uma realidade. Nós estamos proporcionando a entrega de livros das nossas bibliotecas particulares e doações que estamos recebendo das universidades.
E esses projetos contribuem para reduzir a reincidência?
Sim, inclusive nós temos um estudo que o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento ) realizou no Chile. Esse estudo mostra que o problema da reincidência são os 90 dias posteriores à saída das unidades prisionais. Nesses 90 dias a assistência tem que ser redobrada para que nós não perdermos para o crime esses internos que deixaram as unidades.
Um problema grave do sistema prisional não só da Bahia, mas do Brasil como um todo, é a presença nos presídios das facções criminosas, inclusive comandando crimes fora. Porque é tão difícil livrar as prisões da influência dessas facções?
O governo não reconhece facções, reconhece que existem organizações criminosas. Quando você reconhece a facção, você dá nome e empodera ela. As organizações criminosas nós sabemos que existem. Inclusive tem o crime específico de organização criminosa. Nós estamos envidando esforços totais no sentido de coibir essa ação delitiva de cooptar membros para organização criminosa dentro das unidades prisionais. Com trabalho, com a remição pela leitura, com a atenção que temos que dar ao interno para que a organização criminosa não consiga recrutá-lo. Estamos nesse viés de dar maior atenção até porque o governador Jerônimo Rodrigues é um acadêmico, um homem humanitário. E ele tem como norte precisamente a ressocialização. É esse viés que estamos trabalhando.
O pode dessas organizações vem aumentando?
Eu tenho uma visão, naturalmente que é subjetiva, de que nos dois anos de pandemia, nós ficamos preservando a sociedade ordeira enquanto o crime se reorganizou, se aparelhou, se armou e se difundiu. Tanto fazia recrutar ou falecer, para eles pouco importavam. O que importa é a gerência da atividade delitiva. Foi algum tempo depois da pandemia, observe, que a violência aumentou.
Especialistas da área de segurança afirmam que há uma integração do crime a nível nacional por meio dos presídios, inclusive nas cidades do interior. Até que ponto essas grandes corporações do crime atuam nos presídios baianos?
Existe de fato a nacionalização dessas organizações criminosas. Nós estamos, como te disse, visando a ressocialização e buscando brecar esse aparato que eles têm de recrutamento. Como? Justamente dando assistência aos internos, maior dignidade e maior fluência dentro da ressocialização.
Em fevereiro, uma rebelião na Penitenciária Lemos Brito deixou seis mortos e 16 feridos. O que o Estado tem feito para que cenas horrendas como ocorreram nos presídios de Amazonas e Rio Grande do Norte não sejam vistas na Bahia?
Quando nós chegamos aqui, a rebelião na Lemos Brito já tinha acontecido. Eu cheguei em abril de 2022 e a rebelião aconteceu em fevereiro, como você disse. Foi a última grande rebelião no estado. De lá para cá, além de nos reorganizarmos o sistema prisional, estamos trabalhando e envidando esforços hercúleos para evitar a difusão do crime através de ambiente eletrônico, como é o caso dos celulares, e também através dos recados, como é o caso das cartas. Estamos fazendo revistas semanais. Elas não têm como ser diárias por causa do aparato que é muito grande. Além da polícia penal você tem que ter apoio da Polícia Militar, tem que ter uma organização para fazer isso. E não adianta você fazer diariamente porque a coisa é muito dinâmica. Se você fizer diariamente, o que vai acontecer: pegou hoje, amanhã não tem. Fazemos também as rondas perimetrais e agora mais ainda com a Polícia Penal. Nós já havíamos fazendo isso. E nas outras unidades fizemos rondas perimetrais e coibindo o crime de continuar fazendo os arremessos. Porque o grande negócio são os arremessos.
É a forma mais comum de entrada de celulares e esses outros equipamentos?
Sim. No Complexo da Mata Escura, em Salvador, por exemplo, eles adentram a mata e dali fazem os arremessos. Nós chegamos a debelar dentro da mata, certa feita, uma casamata militar, com mesa, corda de alpinismo. Tinha até uma mangueira elástica presa numa forquilha como se fosse um estilingue para fazer o arremesso. E nós já coibimos várias vezes, inclusive com troca de tiros. Eles chegaram a trocar tiros conosco dentro do Complexo da Mata Escura. E nos outros presídios estamos fazendo a mesma coisa. Além disso, estamos com um projeto para telar todas as unidades que são abertas aos pátios. Porque telando você impede que arremesso aconteça. Estamos também junto à Secretaria Nacional de Políticas Penais, conseguimos agora, junto com o Rafael Velasco que é o secretário nacional, trazer para eles a necessidade que nós temos da compra de bodyscan, de esteiras e dos portais.
Qual é a importância dessas novas tecnologias para aumentar a segurança nas unidades prisionais?
Muita. Tanto que estamos com um projeto agora, junto com a empresa que trabalha nos presídios de São Paulo, de bloqueadores limitados. O bloqueador limitado não se estende para que alcance as comunidades que vivem no entorno das unidades prisionais. Eles vão ficar praticamente posicionados um em frente ao outro para evitar que se saia dali as ondas de transmissão dos celulares. Estou indo em julho agora a São Paulo, a convite desta empresa, para conhecer as unidades paulistas e instalarmos o mais breve possível na Bahia.
Outro problema que não se restringe ao sistema prisional baiano, mas diz respeito a todo Brasil, é a questão da superlotação dos presídios. Qual é a situação do estado hoje nessa questão?
Nós temos hoje entre 10 e 20% de excedente somente. A Bahia pontua muito bem nacionalmente, inclusive no ranking do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E nós vamos discutir com o governador a possibilidade de ampliarmos algumas unidades e construirmos outras para poder zerar o problema. Recentemente nós inauguramos unidades em Irecê e Brumado. O que já deu uma baixa maior ainda. Temos 26 unidades prisionais no total e temos Esplanada em fase de entrega. Uma parte da unidade de Ilhéus está desativada e conta hoje com 68 presos somente. Nesse caso, estamos buscando outra alternativa, já que nós temos o presídio em Itabuna. A ideia é ampliar a unidade de Itabuna e fechar Ilhéus, porque fica dentro da cidade, junto da rodoviária. É um reclamo da sociedade e o governador Jerônimo está atento para isso também.
As comunidades que vivem próximas aos presídios costumam protestar muito...
Protestam bastante e, além disso, temos visto outro problema. Pelo valor da área foram construídos muitos conjuntos do programa Minha Casa Minha Vida no entorno . E as organizações criminosas têm tomado essas casas para poderem ficar mais próximas das unidades prisionais. É uma situação difícil de combater. Em Jequié, por exemplo, você chega lá e tem o nome de uma organização criminosa bem grande, pichada nas paredes. É uma consequência da nacionalização do crime. Nós devemos ter agora a reunião do Conseg (Coordenação Estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança), na qual isso será levado para pauta.
Pode-se dizer que um dos principais motivos para a superlotação é a situação de presos provisórios há anos sem previsão de julgamento?
Eu, como advogado de origem com quase 44 anos de militância, vejo que o aparelho Judiciário nacional precisa de uma melhora extensiva. Temos presos provisórios há mais de quatro anos e o processo não se desenvolve. Nem condena, nem absolve. É um problema que o Judiciário precisa resolver. O presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, Nilson Castelo Branco, junto com o desembargador José Rotondano, vem tentando buscar uma resolução para essa questão.
Qual é o percentual de presos provisórios no sistema prisional da Bahia hoje?
Por volta de 46 a 48% da população carcerária da Bahia é só de preso provisório. Ou seja, quase a metade. Temos no estado um total 12 mil a 13 mil detentos, esse número oscila muito. Eles entram depois de uma decisão judicial e alguns saem rapidamente.. Então, veja: de 12 mil homens, quase seis mil são provisórios. É um gargalo que nós temos derivado do problema do Judiciário.
Uma solução para essa situação de lotação das unidades prisionais pode ser uma ênfase maior nas penas alternativas?
A nossa Ceapa (Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas) tem pontuado nacionalmente e se tornado uma referência. Temos mais de 12 mil cumprindo penas alternativas. É uma alternativa de fato para o crime de menor potencial ofensivo com penas de menos de dois anos. Nós estamos aqui na Ceapa, o núcleo capital, e nós vamos ampliar a Ceapa interior que também já existe.
A Bahia tem algumas unidades prisionais, inclusive de segurança máxima, funcionando em regime de gestão compartilhada com a iniciativa privada. Essas parcerias vêm funcionando na Bahia?
Eu sou entusiasta da cogestão das unidades prisionais. Há uma diferença muito grande nas unidades plenas e nas unidades de cogestão. Inclusive as duas unidades de segurança máxima da Bahia são de cogestão: Serrinha e o presídio de Salvador. O balanço até agora é muito positivo. Primeiro você tem os procedimentos. Segundo, você não tem o contato físico do monitor de ressocialização com o preso. Eles são todos feitos por cima, a abertura e o fechamento de porta. Depois, por conta da organização. Se você for hoje em um presídio como o de Vitória da Conquista, CPV (Conjunto Penal de Conquista), é um espetáculo. Se você for em Lauro de Freitas é um espetáculo. Serrinha, Valença, a Cadeia Pública de Salvador, todos são muito bons.
Quantas unidades funcionam nesse regime de cogestão?
São nove. A unidade de Itabuna é piloto. Lá, de 800 presos, 615 estão estudando e 29 agora foram para universidade. Vinte e nove presos estão na universidade fazendo EAD e nós estamos estendendo esse projeto. Existe um programa de estímulo pra vida. Nós temos fomentado isso inclusive em parceria com o Tribunal de Justiça. Tem os casamentos coletivos também. Temos marcado um para o dia 20. E vamos ter em Itabuna um ineditismo. Vamos fazer o primeiro casamento homoafetivo. Esses casamentos funcionam da seguinte forma: as noivas e os noivos se vestem, o juiz de paz vai, geralmente eu vou. Nós fazemos uma preleção e eles saem dali casados, documentados e com a célula mater da sociedade, que é a família, preponderando. Voltando àquele jovem que não teve oportunidade. No momento em que ele se consagra, o que acontece? Ele vê a responsabilidade familiar. E é dentro dessa conjuntura da célula da sociedade que nós trabalhamos também.
Recentemente, a Assembleia Legislativa da Bahia aprovou a criação da carreira de Polícia Penal. O que muda com a aprovação desse projeto?
Os agentes penitenciários hoje já são policiais penais. Eles ficarão com a parte de segurança, escoltas, segurança, rondas perimetrais, a vigilância das guaritas, o que desafoga um pouco a Polícia Militar. Além disso, estamos já aprontando a regulamentação da Polícia Penal. Para poder regulamentar um plano de carreira efetivo e que será muito bom para todos. O governador teve a sensibilidade monumental em trazer esse assunto para dentro da gestão dele.
Para concluir, secretário, o senhor anunciou a abertura de um novo edital de concurso público para a Polícia Penal. Quantas vagas serão preenchidas e quando ele será realizado?
O concurso será para 287 vagas, mas para preencher um cadastro de reserva de 1.5. Então, nós estamos falando de 700 homens a mais. Nosso contingente hoje é de 1.200, fora os cinco mil monitores de ressocialização. No momento em que conseguirmos preencher essas vagas, não será ainda o ideal, mas melhora muito.
Qual é a visão do senhor para o futuro do sistema prisional
A sociedade de outrora, aquela sociedade que prendia e lá largava, essa mesma sociedade hoje com a evolução dos tempos, quer elementos alinhados com o ordenamento social. A sociedade brasileira enxerga o sistema prisional hoje de outra forma, porque estão vendo que se nós não humanizarmos o sistema prisional não vamos ter mais elementos infratores na rua. Que a sociedade potencialize isso junto aos seus membros para que nós possamos ter reintegrados que voltem para poder dar a contribuição deles para uma sociedade ordeira.
Raio-X
No comando da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização desde abril do ano passado, José Antônio Maia Gonçalves é advogado com atuação nos tribunais estaduais, federais, superiores (STJ, STJ e TST) e no Conselho Nacional de Justiça. Ele já foi professor do Instituto dos Advogados da Bahia e da Escola Livre de Direito Josaphat Marinho. Foi ainda conselheiro da Associação Baiana de Advogados Trabalhistas (Abat) e membro suplente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/BA.
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