Relatos de esperança e fé: a vida das famílias que visitam o presídio | A TARDE
Atarde > Bahia > Salvador

Relatos de esperança e fé: a vida das famílias que visitam o presídio

Mães e esposas de presidiários dizem que os que as mantém revigorante é a esperança de vê-los fora da cadeia

Publicado sexta-feira, 24 de maio de 2024 às 07:00 h | Atualizado em 02/06/2024, 21:25 | Autor: Felipe Sena
Dia do detento evidencia avanços e o que precisa melhorar
Dia do detento evidencia avanços e o que precisa melhorar -

Em um dia que chove sem parar, Ivone Santos*, de 46 anos, aguarda o ônibus para chegar em casa, em frente ao muro cinzento de um presídio. Ela saiu de uma visita no local, que estava prevista para acontecer às 8h, mas atrasou duas horas. Após enfrentar uma fila longa de mulheres, Ivone passou pela revista um tanto conturbada, e conseguiu ver o marido. No dia do detento, lembrado nesta sexta-feira, 24, o Portal A TARDE traz histórias de mães e esposas que vivem a realidade de uma prisão. 

Em entrevista ao Portal A TARDE, Ivone diz que os três filhos perguntam muito pelo pai. São eles: Enzo, de 6 anos, Daniel, de 14, e Santiago, de 17. Enzo e Daniel são filhos dela com o atual marido, já Santiago é fruto de outro relacionamento, mas também foi “criado” pelo marido, segundo ela.

“Eles sabem que o pai está trabalhando”, diz Ivone fazendo um sinal de aspas com as mãos. “Eles não sabem que ele está preso", complementa. Antes dos três, ela teve o primeiro filho com 16 anos, mas faleceu por motivos que não foram explicados.

Na cadeia há 10 anos, o marido de Ivone, cujo nome não será mencionado nesta matéria, foi preso por latrocínio, ou seja, roubo seguido de assassinato, e atuava como segurança de um supermercado. Ele estava prestes a sair da cela, onde a luz é pouca e o dia não tem a mesma tonalidade do ar livre, quando foi preso novamente por descumprir uma medida, que Ivone não mencionou. Por isso, pegou mais seis meses de detenção, mas ainda estará livre neste ano. “Já vai sair em nome de Jesus, já cumpriu tudo”, diz Ivone com um sorriso no rosto.

Segundo ela, ele pegou um “castigo”. “Ele já estava em casa, trabalhando, curtindo a família, os filhos, mas pegou um castigo e em breve, ele vai pra casa, estar conosco de novo”, afirma. Isso acontece quando o preso comete uma regressão de regime, ou seja, descumpre alguma medida, que pode ser durante o regime aberto, e volta para a prisão em um regime fechado, considerado mais severo.

De acordo com Ivone, dentro da prisão, o marido foi solto sem cumprir completamente a pena, pois fez remição. A remição de pena é o abatimento dos dias e horas trabalhadas do preso que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto, diminuindo a condenação a qual ele foi sentenciado.

Apesar de continuar visitando o marido, Ivone diz que dividir a rotina de mãe com as visitas deixa a vida cansativa. “Meu sentimento é de cansaço, já estou saturada, mas eu ainda aguento porque eu acredito que ele está perto de sair e também porque ele é um bom pai, um bom marido, ele é família, um companheiro, um amigo, e acho que vale a pena passar essa prova junto com ele”.

Amor materno

O alento para Ivone é a relação com os filhos, que a faz continuar na espera pelo marido. “Ser mãe é sem palavras. Antes eu costumava dizer que não queria ser mãe, perder minha privacidade quando dormir, dizia: ‘faço tudo na hora que eu quero’, mas hoje, quando a minha casa está vazia, está faltando algo, eu não consigo ficar longe dos meus filhos, ser mãe é maravilhoso, eu amo ser mãe dos meus filhos”.

Com o pai preso, o dia das mães, neste mês de maio, foi diferente para Ivone e os filhos. “O ruim no dia das mães é que a gente sempre quer sair com a família completa e está faltando o pai e Enzo, que já tinha visto ele solto, pergunta: ‘que dia meu pai vem para a gente ir no shopping, pra me levar na praia?' Eu digo que ele está vindo em breve”.

“Por que ele trabalha e não volta pra casa?”, insiste o pequeno Enzo, segundo Ivone. “Filho desobediente trabalha e não vem para casa. Eu fico assim, tapeando de alguma forma. Às vezes ele vê coisas na televisão que lembra o pai dele, como a cor da camiseta, e eu digo que nem todas as cores [de roupa] são usadas pelas mesmas pessoas. Há a mesma cor na roupa de mulher, homem e criança”.

Ivone diz que os três filhos foram visitar os pais, no entanto, hoje, apenas Enzo, de 6 anos, o vê com frequência. “Eles cobram a falta de um pai, mas eles já ouvem pelo telefone, ou às vezes a assistente social liga do presídio, ou manda fazer em [chamada de] vídeo”, relata Ivone. Para sustentar os filhos, ela recebe o auxílio reclusão, que se trata de um benefício do INSS.

De acordo com o Instituto, o auxílio-reclusão é um benefício pago apenas aos dependentes do segurado do INSS que seja de baixa renda e esteja cumprindo prisão em regime fechado.

Os dependentes de preso em regime semiaberto também recebem o auxílio-reclusão, desde que a prisão tenha ocorrido até 17 de janeiro de 2019.

O benefício tem o valor máximo fixo de um salário-mínimo e é pago apenas ao dependentes do preso, enquanto o segurado estiver recolhido à prisão. A partir do momento em que o segurado volta para a liberdade, o benefício é encerrado.

“Fé em Deus”

Em frente ao mesmo presídio que estava Ivone, mencionado no início dessa matéria, se encontra também, Maria Silva, de 60 anos. Com uma bíblia sagrada em lombada rosa nas mãos, saia longa e camisa de uma missão evangélica, Maria traz um semblante de inquietude por causa da chuva, segundo ela.

Estava realizando “evangelização” dentro do presídio. “Falamos que Deus veio para salvar, curar, libertar”, diz Maria. Em pouco tempo de conversa, ela relata que há dois anos estava aflita porque seu filho se encontrava no mesmo presídio, mas como uma pessoa de fé, acreditava que ele fosse libertado, sem muita demora. “Disseram que ele ia levar 12 anos preso, mas Jesus não deixou”.

Assim como Ivone, Maria tem uma ótima relação com o filho. “Eu sou mãe e pai dele até hoje”. Segundo ela, não recorda por qual crime seu filho foi preso. “Na verdade, armaram para ele e ele caiu. Ele estava com um colega vindo de um lugar. O menino que estava com ele não teve nada e o meu que também não fez nada, que foi preso. Ficou preso por 2 anos e está solto há 2 anos”, relata Maria.

Quando o filho foi preso, Maria entrou em um quadro de depressão, mas diz que a fé em Deus a ajudou a continuar. “Sofri tanto, pensei que ia morrer. Estava boa de saúde, fiquei com diabete”. Além disso, assim como Ivone, tinha que lidar com a rotina cansativa de visitas e serviços domésticos.

No entanto, de acordo com Maria, isso passou e “Deus fez uma surpresa” no dia em que o filho saiu da prisão, que por acaso, foi o mesmo dia em que ela estava realizando missão no presídio, o que ela já faz há três anos no local. “Eu estava aqui dentro fazendo a obra e ele já estava em casa acertando trabalho. Deus já tinha uma promessa de trabalho para ele. No outro dia, foi maravilhoso. Chorei tanto. Ele me abraçou e disse ‘mainha, eu sei que Deus ouviu suas orações". 

Denúncia: revista e condições de vida na prisão

Durante as entrevistas, algumas visitantes que foram ao presídio ver familiares relataram situações de desorganização e constrangimento no momento da revista e dentro do Complexo Penitenciário Lemos Brito, em Salvador. Débora Silva, de 25 anos, vem de Valença, litoral da Bahia, a cerca de 118 km de Salvador, junto com duas amigas, que também vão visitar familiares.

Elas chegam um dia antes da visita e dormem em frente ao presídio, para conseguir entrar às 8h. No entanto, a fila de entrada foi atrasada e elas só puderam entrar entre as 10h e 11h, de forma desorganizada, segundo elas. “Uma encurralação, constragimento”, dizem.

Apesar do dia do detento ser celebrado nesta sexta-feira, 24, os mesmos necessitam de melhores condições de vida no presídio. De acordo com Débora e as amigas, os agentes penitenciários estão em greve. Por causa disso, a revista na hora da entrada está sendo feita por outros funcionários do presídio e os presidiários estão sem assistência durante a noite. “Se algum deles passar mal, não tem ninguém para socorrer”, diz Débora.

Esses funcionários reivindicam aumento salarial por parte da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap), no entanto, ainda não obtiveram sucesso. Em frente ao presídio, tem um cartaz sobre o assunto.

Além disso, outro problema relatado está relacionado aos produtos que os visitantes podem levar para os detentos, com lista disponibilizada pelo local. A penitenciária permite a entrada de três garrafas de água, mas segundo elas, os funcionários que estão fazendo a revista [que não são agentes penitenciários], permitiram apenas a entrada de uma.

Da mesma forma acontece com a comida. Débora levou uma vasilha transparente, como é solicitado, com moqueca, mas a impediram de levar o alimento para a pessoa que ela foi visitar. Por isso, deixou em um local avulso e quando retornou na hora da saída, não estava no mesmo lugar.

De acordo com sua amiga, o mesmo acontece com os pertences de visitantes, pois não há armários. Apesar disso, Ivone diz que a elaboração de uma lista com regras, como a obrigatoriedade de levar apenas três vasilhas com alimento em dia de visita já é um avanço e melhor do que antes.

A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) e foi informado que o atraso "se deu por conta do movimento de paralisação dos policiais penais". Em relação a desorganização em dias de visitas, a Seap não deu detalhes, mas disse que "as denúncias são improcedentes".

* As identidades de todas as fontes foram preservadas nesta publicação. 

Publicações relacionadas

MAIS LIDAS