SALVADOR
Restaurante Maria de São Pedro: 81 anos de histórias apuradas no dendê
Por Andreia Santana
Orson Welles viajou quilômetros de Holywood até o Brasil para filmar It´s All True (É tudo verdade), mas em 1942, em plena II Guerra Mundial, o famoso diretor de Cidadão Kane encontrou mais que a verdade em solo brasileiro. Na Bahia, além da capoeira e do samba de roda, Welles descobriu a moqueca de peixe de Maria de São Pedro dos Santos. No rastro do diretor vieram o poeta Pablo Neruda e o filósofo Jean Paul Sartre. Os dois, que nunca tinham ouvido falar em bobó de camarão, tornaram-se tão fãs do tempero dessa baiana do recôncavo quanto os fregueses assíduos Jorge Amado, Calazans Neto e Caribé.
Mas quem foi essa mulher que, com molhos de coentro, pitadas de pimenta malagueta e doses generosas de azeite de dendê, até hoje, 47 anos depois da sua morte, ainda é referência na culinária típica baiana? Quem conta a história dela é Luis Domingos, 67, filho caçula de Maria de São Pedro e responsável por administrar o restaurante homônimo primeiro de comida típica do Estado, - aberto pela mãe há exatos 81 anos.
Virar dona de restaurante foi obra do acaso e o inicio do negócio bem modesto. Maria de São Pedro dos Santos nasceu em 1901, em Santo Amaro da Purificação, município situado a 86 quilômetros de Salvador. Antes de completar 20 anos, se mudou para a capital trazendo os dois filhos (no total teve 14, de três casamentos, dos quais restam Luis Domingos, Zulmira e Eunice). Aqui, se casou com um comerciante árabe, mas algum tempo depois foi abandonada por ele.
Para sobreviver e criar os filhos, minha mãe armou uma barraca na antiga Feira do Sete, em 1925. A barraca tinha uma única mesa de madeira, onde ela servia comida baiana e pratos da culinária nordestina, conta Luis Domingos. O historiador Cid Teixeira explica que a feira, que ficava onde hoje é a base dos Fuzileiros Navais, tinha esse nome porque estava situada de frente para o armazém número sete do porto de Salvador.
Fama de boa cozinheira - A barraquinha na feira era freqüentada por todos os trabalhadores das docas e do bairro do Comércio, que espalhavam, na base da propaganda boca a boca, a fama do tempero de Maria de São Pedro. Diante da procura, a única mesa para atender os clientes ficou pequena. Aconselhada pelo amigo Genebaldo Figueiredo, fornecedor de carne para a quituteira, em 1930 ela mudou as panelas de lugar e levou seu pequeno restaurante para o Mercado Popular.
Esse antigo mercado de Salvador também não existe mais. Ficava em frente à Feira de Água de Meninos (São Joaquim), próximo à Ladeira da Água Brusca, onde hoje é o mercado municipal de frutos do mar. Foi na época do Mercado Popular que boêmios e intelectuais de Salvador descobriram Maria de São Pedro. Odorico Tavares, Jorge Amado, políticos e artistas da época passaram a comer no restaurante, acrescenta Seu Luis.
Na década de 40, aconteceu a mudança para o Mercado Modelo. Não esse mercado atual, atração turística obrigatória para quem chega à Salvador, mas o velho Mercado Modelo, uma construção que ficava ao lado do prédio atual e que pegou fogo em 1969. Foi nesse endereço que virou cinzas que Orson Welles, Sartre e Neruda provaram do tempero de Maria de São Pedro, mulher negra, pobre e nas palavras do filho tabaroa do interior, mas muito lutadora e determinada. Foi lá também que o conde Matarazzo e a mulher Yolanda estiveram em busca da famosa quituteira, para levá-la até São Paulo, onde cozinhou para o banquete da festa de 400 anos de fundação da capital paulista.
O episódio do banquete é contado no livro Bahia, imagens da terra e do povo, do pesquisador Odorico Tavares. Maria de São Pedro viajou de avião, com ajudantes e uma tonelada de ingredientes, dendê, camarão, pimenta malagueta, gengibre, coco, castanha, alguidares e colheres de pau. Chegando à casa dos Matarazzo, enquanto começava a dar ordens às ajudantes de cozinha, eis que surge o cozinheiro de dona Yolanda, querendo bisbilhotar suas panelas. Maria chamou a dona da casa e disse categórica: ou o cozinheiro gringo ou eu. Dona Yolanda não teve duvidas, botou o gringo para correr e Maria reinou absoluta no banquete.
De cantor a dono de restaurante - A aventura da mãe na casa dos Matarazzo é uma das histórias que Seu Luis gosta de lembrar, assim como se emociona ao recordar a carreira de cantor no sudeste do país. Virar o gerente do restaurante Maria de São Pedro não era bem o plano inicial de vida de Luis Domingos, mas, 47 anos depois de comandar o espaço, se enche de orgulho ao citar que o seu restaurante consta de guias de gastronomia internacionais. Muitos turistas estrangeiros já chegam à Salvador querendo saber onde fica o Maria de São Pedro, isso para mim significa ver a luta da vida inteira da minha mãe sendo valorizada.
Maria de São Pedro morreu em 1958, aos 57 anos e sem ver a mudança de endereço do antigo Mercado Modelo para o prédio ocupado pela alfândega da Salvador colonial. Após a morte da mãe, as irmãs de Luis Domingos assumiram o comando do restaurante enquanto ele se mudava de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Em 1960, no auge da bossa-nova, o baiano encantava o Estado da Guanabara. Tirou o segundo lugar no concurso Voz de Ouro, da TV Rio. A partir daí, cantou nas rádios Nacional e Mayrink Veiga e nas emissoras de TV Tupi e Continental.
Um ano depois, de volta a Salvador, teve de assumir o restaurante interinamente enquanto uma das irmãs se retirava do negócio para casar. Como o sonho de cantar ainda falava mais alto, ele revezava o restaurante com um programa na TV Itapuã, onde trabalhou até 1966. Na época, essa era a única emissora da cidade. A saudade dos palcos, porém, foi maior e ele se mudou de novo para o sudeste das oportunidades. Dessa vez foi para São Paulo, onde cantava e encantava nos show de calouros de Silvio Santos e de Chacrinha.
O incêndio do Mercado Modelo, em 1969, e a necessidade de ajudar as irmãs nessa fase difícil do restaurante, além de algumas decepções com o show business, fizeram Luis Domingos voltar de vez para casa e assumir o comando do Maria de São Pedro, onde está até hoje.
Nas tardes agitadas do verão e da alta estação turística, é possível encontra-lo atarefado de um lado para outro. Na calmaria da baixa estação, ele é visto saboreando uma das famosas moquecas de peixe do local. A voz é que continua de ouro, principalmente na hora de contar a história do Maria de São Pedro, que se confunde com a história de sua mãe e com um pedaço da história cotidiana de uma Salvador que só existe agora nos livros.
Serviço
Restaurante Maria de São Pedro
Onde: Mercado Modelo, Praça Visconde de Cairu, s/n, 2º piso
Quando: De segunda à sábado, das 11h às 19h30 e domingo das 11h às 16h
Telefone: 3242-5262
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