Tarifa zero em Salvador? Entenda cenário para adoção da medida | A TARDE
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Tarifa zero em Salvador? Entenda cenário para adoção da medida

Em meio a crise no transporte público, nove capitais já estudam não cobrar pelo acesso aos ônibus

Publicado quarta-feira, 19 de julho de 2023 às 06:30 h | Atualizado em 19/07/2023, 07:38 | Autor: Daniel Genonadio
Atual tarifa dos ônibus em Salvador
Atual tarifa dos ônibus em Salvador -

A população de Salvador acompanha apreensiva um longo processo de revisão tarifária que pode resultar em um aumento expressivo no valor da tarifa dos ônibus que compõem o sistema de transporte público. O valor, hoje em R$ 4,90, já é considerado caro para os usuários, algo que foi admitido até mesmo pela gestão municipal. 

Em meio a esse iminente colapso, uma alternativa que surge, ainda no campo das ideias, é a chamada Tarifa Zero, já discutida oficialmente em nove capitais do Brasil: São Paulo e Belo Horizonte, onde a pauta já tem ganhado espaço nas Câmaras Legislativas e no Executivo, além de Campo Grande, Teresina, Fortaleza, Curitiba, Florianópolis, Palmas e Cuiabá.

Em Salvador, o contrato da concessão do Sistema de Transporte Coletivo de Salvador (STCO) e da criação da Integra - que teve início em janeiro de 2015 - prevê o reajuste da tarifa anualmente, por meio de variação indicada pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Antes do primeiro reajuste, em 2014, a tarifa era de R$ 2,80. A última mudança aumentou o valor pago pelos usuários de R$ 4,40 para R$ 4,90. 

Em conversa com o Portal A TARDE,  o secretário de Mobilidade de Salvador, Fabrizzio Müller, detalhou o que seria necessário para a implantação da Tarifa Zero na capital baiana. O titular da pasta responsável pelo transporte público ainda apontou que o debate, apesar de necessário, ainda é "embrionário" e "utópico". 

"Eu diria que essa discussão é hoje do Brasil todo. Pequenas e médias cidades já implantaram. São cidades realmente pequenas e que não se comparam com uma capital como Salvador. Existem estudos mais avançados em São Paulo, em Belo Horizonte, justamente discutindo a questão da Tarifa Zero. No primeiro momento, parece algo utópico. O custo do transporte é muito alto e os orçamentos municipais hoje não comportariam ter esse custo. É uma discussão ainda muito embrionária", disse. 

Fabrizzio afirmou que o município sozinho não tem capacidade de suportar o custo do transporte público, que em Salvador tem o custo anual de aproximadamente R$ 1 bilhão, no modelo atual onde a tarifa remunera 100% do sistema. Apesar disso, afirmou que uma mudança, com um subsídio municipal parcial, não é descartada. 

"Mesmo uma cidade como São Paulo, que tem orçamento de quase R$ 100 bilhões, não suporta o tamanho do valor do seu subsídio. Antes da pandemia, poucas cidades subsidiavam o seu transporte. Hoje, muitas cidades estão subsidiando. Salvador, até então, não entrou com subsídio para o transporte público. É um cenário que não é descartado. A gente está agora no processo de revisão tarifária para avaliar o valor dessa tarifa técnica e se há necessidade e como ter algum tipo de subsídio", explicou.

Na avaliação do secretário, uma discussão sobre Tarifa Zero só deve avançar se colocada a nível nacional, com a União e o Estado da Bahia garantindo recursos.

"Evidentemente que se vier recursos extraorçamentários, recursos federais e estaduais, em uma união dos entes da federação para custear o transporte público...esse talvez seja o grande entrave", falou. 

Eu entendo, de maneira pessoal, que por dever de justiça, a tarifa do transporte público deve ser paga por todos, não só pelo usuário do transporte público Fabrizzio Müller, Secretário de Mobilidade de Salvador
 

"Eu entendo, de maneira pessoal, que por dever de justiça, a tarifa do transporte público deve ser paga por todos, não só do usuário pelo transporte público. Aqueles que usam e os que não usam o serviço precisam que ele funcione de maneira adequada. A mobilidade de uma cidade não se resolve com soluções que não sejam coletivas. É uma discussão que precisa evoluir e que a gente encontre uma solução que possa atender essa expectativa de tarifa zero e que faça sentido para o usuário e para os municípios", acrescentou o secretário. 

Presidente da Comissão de Transportes da Câmara Municipal de Salvador, o vereador Tiago Ferreira contou que existe a expectativa que o debate sobre a Tarifa Zero seja iniciado na capital baiana, mas considerou difícil qualquer avanço da pauta na Casa, que conta com a maioria dos vereadores na base do prefeito Bruno Reis (União). 

"Eu primeiro quero fazer uma audiência pública convidando especialistas em mobilidade urbana de Salvador para que a gente comece a buscar saídas de onde viriam recursos para financiar isso. Acho hoje muito difícil uma aprovação na Câmara Municipal, a maioria da Casa é da base, e embora a ideia de um projeto seja bom para toda a capital, a base governista segue o seu líder político, que é o prefeito da cidade. Nós vamos fazer essa debate, mas só acho que vai ganhar corpo em Salvador quando houver uma política nacional de Tarifa Zero", disse. 

O vereador ainda revelou que já pleiteou ao prefeito Bruno Reis um subsídio municipal para alunos da rede pública de ensino, no entanto, não houve avanço. "A alegação do prefeito é que não tem recurso, não tem como fazer isso. É um debate que precisa ganhar corpo, hegemonia na sociedade, mas em Salvador, o prefeito alega não ter recursos". 

"A prefeitura sempre vai alegar que não tem dinheiro, mas a gente percebe que se houver esforço dá para iniciar a Tarifa Zero, pelo menos para estudantes de escola pública, talvez para universitários, para estimular o ensino" Tiago Ferreira, presidente da Comissão de Transportes da Câmara Municipal de Salvador
 

Questionado quanto a possibilidade de dar um pontapé inicial na política de Tarifa Zero com determinados grupos sociais, como estudantes de escola pública, Fabrizzio Müller ressaltou mais uma vez que a medida esbarra na falta de dinheiro. 

"O problema posto é o mesmo. É preciso ter recursos no orçamento ou extraorçamentários que possam suportar esse valor a ser colocado. É algo que precisa ser discutido e acho que isso não é apenas Salvador, todos os municípios tem restrições orçamentárias... o que se pensa é, sendo necessário, avaliar o pagamento de subsídio, para se resultar em uma tarifa menor. É algo que precisa ser debatido, inclusive na Câmara dos Vereadores, e precisa considerar do ponto de vista orçamentário", acrescentou o secretário. 

Ônibus com adesivo informando o valor da passagem
Ônibus com adesivo informando o valor da passagem |  Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE
  

Mobilidade, direito cada vez mais caro

O transporte passou a ser um direito social garantido pela Constituição Federal após aprovação da PEC 74/2013. No entanto, os seguintes aumentos no valor da tarifa do transporte público podem causar a exclusão das pessoas menos favorecidas economicamente do direito ao modal.

O economista do Ministério da Gestão e ex-secretário de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia, Elias Sampaio, reforçou o argumento. 

"Há alguns anos não havia ônibus dos bairros populares para a Orla de Salvador, para Barra, Amaralina, Pituba... a mobilidade pode não ocorrer simplesmente por não ter transporte coletivo disponível e pode não acontecer pelo transporte ser muito caro. Se a Constituição nos garante a mobilidade urbana e a mobilidade humana (o trânsito de pessoas para lazer, vida familiar), nós temos que buscar uma modelagem em que o acesso aos meios de transporte sejam disponíveis. Não adianta ter ônibus da Fazenda Grande do Retiro para Orla de Salvador, por exemplo, se custa uma fortuna", opinou.

Para Sampaio, a Tarifa Zero pode ser uma solução para os grupos menos favorecidos economicamente.

"Trabalhadores mais pobres se deslocam a pé ou de forma a fugir do transporte público por causa do peso que esse gasto diário tem sobre a renda dele. É uma solução que vai atender principalmente aos trabalhadores mais pobres da nossa sociedade", disse.

O secretário de Mobilidade de Salvador concordou que o valor da tarifa gera exclusão e perda de passageiros para outros modais, normalmente os informais. Ele ressaltou o aumento dos insumos para o transporte público (combustível, veículos novos, custos de peças, mão-de-obra, entre outros) como motivo para os reajustes. 

Populares apoiam a ideia

A proposta de Tarifa Zero foi defendida por populares entrevistados pelo Grupo A TARDE na Estação da Lapa, uma das mais movimentadas de Salvador. Entre várias críticas ao transporte público, os usuários do sistema apontaram que a tarifa atual é alta. 

"O valor é muito alto diante do serviço. A espera de um ônibus é grande, os profissionais são despreparados, coletivo sujo. Pensa aí quem depende de um subemprego para manter um transporte de quase R$ 5 e precisa pegar dois, três, quatro transportes por dia? Esse valor da tarifa sendo zero seria usado em outra coisa, em alimentação melhor, vestimenta, até se dar o luxo de um passeio, ir à praia. Pensa em quem mora em bairros afastados, para chegar na orla tem que ter pelo menos R$ 20. Seria algo valioso", disse Natércia Santos, usuária do transporte público. 

"Um valor exuberante. Ônibus velhos, sujos e no horário de pico não tem carro. Deveria ter uma qualidade melhor para os usuários. Tiraram os ônibus dos bairros e temos que rodar o mundo todo para chegar. [Tarifa Zero] melhoraria bastante. A renda das pessoas está pouca. Não é todo mundo que tem condição de pagar R$ 5 para três, quatro ônibus. Muito caro pelo serviço péssimo", opinou a aposentada Miriam Barbosa. 

Ônibus em parada na Av. ACM
Ônibus em parada na Av. ACM |  Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE
 

Tarifa Zero na prática

Dados da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU) mostram que a demanda de passageiros pelo transporte público de ônibus no país caiu quase 20% após a pandemia de covid-19. O número de passageiros em fevereiro de 2023 caiu para 82,8% do registrado no mesmo mês de 2020, o que mostra que a utilização do meio de transporte não se recuperou mesmo após a crise sanitária. Em Salvador, o número de passageiros chegou a cair pela metade e agora ainda está aproximadamente 25% abaixo.

Para Elias Sampaio, a discussão é saber qual o nível de subsídio necessário para que se tenha o processo de tarifação zero. No entanto, ele ressaltou que a infraestrutura urbana de transporte coletivo é muito complexa e que é mais "racional" estruturar os processos gradualmente do que aderir a gratuidade a todos de imediato, em meio a relação custo-benefício e da qualidade e segurança do transporte.

Alguns outros problemas também foram postos, como a discussão acerca da função dos cobradores, que foram defendidos por Tiago Ferreira, que também é diretor do Sindicato dos Rodoviários da Bahia. 

"Tenho defendido constantemente que a função do cobrador não é apenas cobrar o valor da tarifa. Ele tem o papel de auxiliar os passageiros, inclusive pessoas idosas, com mobilidade reduzida, ajudar os cadeirantes a entrar e descer do ônibus operando o elevador. A finalidade pode até mudar um pouco, mas ele fica nesse debate na parte de ajudar o motorista, ajudar os passageiros. Acho fundamental ter essa segunda pessoa, mas obviamente que vai ter uma queda de braço com o empresariado, que busca reduzir seus gastos às custas dos trabalhadores", disse.

Outra questão é o possível aumento de demanda de passageiros como resultado da gratuidade, o que precisaria aumentar o valor dos investimentos para além do atual. "Não é simplesmente custear o que está hoje posto, tem que estar preparado para um aumento de oferta”, falou Müller. 

Mas o consenso é que a implantação da Tarifa Zero depende de apoio federal, com recursos para os municípios. Tiago Ferreira sugeriu o transporte público como uma política nacional, com a possivel construção de um 'SUS do transporte', com recursos federais e estaduais destinados para subsidiar a tarifa do ônibus. 

Outro consenso é que a Tarifa Zero será importante nas eleições municipais do próximo ano. Na última semana, o PT incorporou o tema como bandeira nacional do partido para as suas propostas em 2024. "Eu vejo que a discussão da Tarifa Zero será um debate crucial na eleição municipal do ano que vem e quem não estiver antenado com essa pauta vai terminar perdendo muito. O debate sobre a tarifa será preponderante", disse o vereador. 

Já Fabrizzio Müller garantiu que se o tema vier à tona na Câmara Municipal de Salvador, a prefeitura não terá "nenhuma dificuldade" em discutir a questão. 

Confira reportagem audiovisual especial do A TARDE Play sobre a Tarifa Zero: 

 

A TARDE Play
 

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