SALVADOR
Tipificação penal da violência psicológica deve facilitar a punição dos agressores

Por Jane Fernandes

A inclusão da violência psicológica contra a mulher no Código Penal é o objetivo do Projeto de Lei (PL) 741/2021 que foi aprovado pelo Senado no início do mês e aguarda a sanção presidencial. Vítima desse tipo de abuso ao longo de 7,5 anos de casamento, Carine Pacheco*, analista de sistemas, 30 anos, considera a nova lei um passo importante para que esse tipo de violência ganhe mais visibilidade.
De acordo com o PL, a violência psicológica consiste em “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”.
Vários dos elementos citados na definição do Projeto foram vivenciados por Carine*, que viveu um namoro de términos e voltas com o ex-marido, até que, por forte influência da família dele, retornaram a relação e casaram em quatro meses. Eles frequentavam a mesma igreja evangélica e, apaixonada, ela acabou acreditando que o então namorado poderia mudar o jeito controlador já demonstrado.
No entanto, o controle só aumentou. Se durante o namoro, ele tinha feito com que se afastasse de todos os amigos, após o casamento, fez o mesmo com as amigas. Órfã de mãe e com pai ausente, Carine* contava com a irmã e o irmão, que eram contra um casamento aos 19 anos, mas nunca deixaram de estar ao lado dela. Mesmo quando ia para a casa da irmã, o marido ligava todo o tempo e ficava cobrando que voltasse logo.
“Ele fazia brincadeirinhas que no fundo me machucavam”, lembra Carine*, citando comentários sobre o corpo e os cabelos dela. Um dia, ao voltar da faculdade, após passar algumas horas na biblioteca estudando para a prova do dia seguinte, ele não permitiu que ela entrasse em casa. Quando a situação foi percebida pela vizinhança, ela decidiu ir dormir na casa dos pais dele, que era próxima.
Ao mesmo tempo em que queria controlar cada segundo da vida dela, chegando a vender o notebook de Carine*, ele não admitia questionamentos e se relacionava com outras mulheres. Na única vez em que tentou enfrentar as agressões verbais do marido, a jovem foi empurrada e tomou um tapa.
Quando decidiu pela separação, a autoestima de Carine* estava abalada a ponto de chorar constantemente pensando que nenhum outro homem se interessaria por ela. Mas hoje, ela vive uma relação estável e feliz, e se encontrou profissionalmente.
Processos
Presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Bahia (OAB-BA), Renata Deiró lembra que a violência psicológica está prevista na Lei Maria da Penha. “Quando você cria um novo tipo penal, você está aumentando o arcabouço de leis para enquadrar os agressores”, comenta, acrescentando que a Maria da Penha é restrita ao âmbito doméstico e familiar. O PL 741/2021 prevê pena de reclusão de seis meses a dois anos, além do pagamento de multa.
A advogada explica que esse tipo de violência tem difícil caracterização e isso gera dificuldades para os julgadores no enquadramento do tipo penal, mas ressalta a existência de algumas decisões judiciais que reconhecem a repercussão da violência psicológica na saúde física da vítima. São casos de mulheres que entraram em depressão, desenvolveram dependência de bebidas alcoólicas e outros transtornos.
Renata comenta que a produção de provas é um desafio nos casos de crime contra a mulher, sobretudo quando ocorrem no ambiente privado, onde muitas vezes, só agressor e vítima tomam conhecimento.
Ela lembra que atualmente, a palavra da vítima é considerada prova suficiente para os crimes de violência, e que também é possível produzir provas testemunhais, além da utilização de conversas em redes sociais e atas notariais de conversas no whatsapp.
Danos
Pesquisadora do tema há cinco anos, Vanina Miranda da Cruz, integrante da Comissão de Mulheres e Relações de Gênero do Conselho Regional de Psicologia da Bahia, acredita que a violência psicológica é a primeira a ocorrer, mas ela se mantém quando outros tipos de violência passam a acontecer. “É uma violência muito habitual, protegida pelo silêncio, exatamente por todas as dificuldades de perceber como uma violência”, reforça.

A psicóloga destaca que há certa ambivalência na percepção desse tipo de violência, facilitando uma confusão de controle com cuidado, por exemplo. “É uma violência muito perversa, porque é capaz de causar danos, tanto imediatos, à mulher que vivencia, como também a longo prazo, o que a gente chama de danos tardios”, avalia.
Vanina considera que o mais provável, quando a prática de violência psicológica não é interrompida, é abrir caminho para outros tipos de agressão. “Aquilo vai se tornando habitual, vai sendo visto como parte do relacionamento, mas as tensões vão continuar existindo, então a tendência é que outras formas de violência se manifestem. O ciclo da violência começa com as formas mais sutis e vai se intensificando, podendo chegar até mesmo ao feminicídio”, alerta.
VÍTIMAS TÊM DIFICULDADE EM PERCEBER AS AGRESSÕES
Graduada em psicologia, Maria Auxiliadora Alves atendeu diretamente muitas mulheres vítimas de violência psicológica antes de assumir a coordenação dos Centros de Referência e Casas de Acolhimento da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude de Salvador. Mais do que ouvir relatos das mulheres agredidas, Maria foi vítima de muitos tipos de violência ao longo de dez anos, incluindo tentativa de feminicídio.

Mesmo não estando na linha de frente, a coordenadora acompanha a rotina dos espaços de atendimento e com base nisso ressalta que muitas mulheres ainda desconhecem a possibilidade de registrar um boletim de ocorrência por conta da violência psicológica.
Maria reconhece que nem sempre as autoridades policiais dão a devida atenção à violência não física, então orienta as vítimas a apresentarem prints de conversas, gravações de áudio e vídeo, áudios enviados em aplicativos e indicar testemunhas que presenciaram situações de humilhação, por exemplo.
A gestora observa que muitas mulheres chegam aos serviços com dúvidas quanto à caracterização do que vivenciam. “Elas acabam atribuindo ao ciúme, um excesso de álcool ou excesso de proteção”, cita. Ela explica que o agressor busca isolar a vítima e convencê-la de que ninguém gosta dela, apenas ele, levando as mulheres ao ponto de questionar a própria sanidade mental.
Segundo Maria, a cada caso atendido, a equipe busca identificar o grau de violência e o grau de adoecimento nos quais a mulher se encontra. Durante a pandemia, ela tem notado uma maior presença da ideação suicida entre as vítimas de violência, o que considera a sequela mais grave das agressões, com alguns registros de tentativa de suicídio.
“Se era difícil antes de tudo isso acontecer, imagina quando a mulher passa a viver um tempo ainda maior com o seu algoz”, comenta. A coordenadora diz que os números de atendimento e respectivos perfis relativos ao período após o início da pandemia ainda estão sendo consolidados, mas o que tem vivenciado faz com que espere um grande volume de denúncias quando a crise sanitária passar.
“Precisaremos trabalhar de forma urgente para fortalecer essa mulher e tirá-la dessa situação, porque a violência psicológica é o primeiro passo. Ninguém vai dar um tapa no rosto da sua parceira, sem nenhum tipo de insulto, xingamento ou constrangimento prévio”, analisa Maria.
A coordenadora acrescenta que, às vezes, são necessários muitos anos para que a mulher compreenda a situação, principalmente quando ela ama o companheiro. Por isso, ela sempre ressalta com sua equipe que é preciso controlar a própria ansiedade por uma solução e respeitar o tempo dessa mulher.
*Nome fictício a pedido da entrevistada
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