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Vítimas têm denúncias reconhecidas em 1% dos casos julgados na Justiça do Trabalho

Levantamento é entre 2017 e 2020. No 1º semestre, comparação com 2020, processos aumentaram 21%

Publicado domingo, 12 de dezembro de 2021 às 06:05 h | Autor: Priscila Dórea

Não é fácil ser mulher no Brasil. De acordo com dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST), entre 2017 e 2020, apenas 1% dos processos relacionados a casos de assédio sexual julgados em 1ª instância na Justiça do Trabalho terminaram com as vítimas tendo suas denúncias reconhecidas. A Lei 10.224 - que protege e defende as mulheres do assédio no ambiente de trabalho - completou 20 anos este ano. No 1º semestre, em comparação com 2020, houve um aumento de 21% de processos do gênero.

“A ideia de que o corpo da mulher é objeto e propriedade é antiquíssima, e eram raras as ações na Justiça do Trabalho antes da lei em 2001. Com ela tivemos uma crescente no número de denúncias até 2017 e a reforma trabalhista. Com as novas regras, as vítimas de assédio, que na maioria das vezes têm uma enorme dificuldade em provar as agressões, não teriam mais o direito de uma justiça gratuita e precisam pagar os honorários caso percam a causa, e isso deixou as vítimas receosas”, explica o juiz do trabalho do Tribunal Regional do Trabalho 5ª Região (TRT-5), Rodolfo Pamplona Filho.

E essa queda de denúncias fica evidente através do dados do TRT-5, que em 2017 computou 232 processos por assédio e em 2018 apenas 64. A nova reforma trabalhista entrou em vigor em novembro de 2017. Até o momento, 95 processos por assédio estão registrados do TRT5.

Pamplona analisa casos desde os anos 90 - tendo inclusive um doutorado sobre o assunto, que se tornou o livro intitulado ‘Assédio sexual na relação de emprego’ -, e aconselha. “Denunciem ao sindicato e canais de comunicação da empresa, mesmo de forma anônima. É aconselhável fazer o possível para sempre estar próxima das colegas de trabalho, criando testemunhas e uma rede de apoio".

Reação

E recusar as investidas foi a primeira coisa que Júlia Figueiredo (nome fictício) fez quando, em 2011, seu supervisor na empresa de telemarketing mostrou interesse além do profissional. “Ele me chamou para sair várias vezes e eu sempre recusava. Estava com 19 anos, fazia faculdade de direito e havia começado um tratamento para depressão. Mas com medicamentos, aulas e o estresse do trabalho, percebi que tinha que priorizar. Falei a ele sobre minha doença e pedi que me colocasse na lista de corte da empresa, e ele se aproveitou disso para me prejudicar apenas porque recusei os convites dele”, conta.

Atendendo cerca de 200 ligações por dia, e fazendo tratamento intenso com psiquiatra, terapeuta ocupacional e psicólogo, Júlia tinha crises de choro durante os atendimentos, e o supervisor, que tem como uma de suas funções monitorar algumas dessas chamadas, apenas o fazia no momento das crises, buscando formas de baixar sua nota geral - que diminuiria seu já baixo salário -, criando argumentos para que ela fosse demitida por justa causa. Além das piadas e comentários maldosos sobre a sua doença.

“Até que houve um corte grande de funcionários e acabei sendo demitida. Meses depois encontrei ele em um ponto de ônibus e ele me perguntou: ‘E aí? Já terminou a faculdade ou foi para o hospício de vez?’, eu não respondi e segui meu caminho. Anos depois, em 2019, encontrei com ele, em um shopping, onde ele falou comigo com a maior naturalidade, perguntou se havia me formado e contei que já era advogada. Ele disse que estava cursando direito e procurava estágio. Então, queria saber se não havia uma vaga onde trabalho. Disse que iria ver quando teria seleção, mas nunca iria indicar esse homem para o escritório onde trabalho. Alguém que se aproveitou de uma pessoa com depressão por pura vingança, imagina que tipo de advogado é essa pessoa?”, questiona a vítima, que atua na área trabalhista.

A presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher da OAB-BA, Renata Deiró, afirma que no próprio meio jurídico não são poucos os relatos de assédio contra advogadas, seja no ambiente de trabalho, escritórios, órgãos judiciais, tribunais, delegacias e demais espaços. 

Orientações

“As mulheres, advogadas ou não, devem buscar reunir o máximo de provas, seja conversas por aplicativos ou redes sociais, por exemplo, e denunciar sempre. Somente levando ao poder público é que poderemos tentar reverter esse quadro. Além disso, as empresas devem manter em sua estrutura canais eficazes de denúncia, com resguardo do sigilo e com meios de punir os agressores”.

Ela ainda aconselha que as mulheres compreendam seus direitos e saibam identificar os comportamentos que podem se caracterizar assédio sexual. “Sabemos o que é uma brincadeira e até mesmo uma cantada, mas muitas não sabem identificar o limite. É nisso que o assediador se resguarda, na falta de conhecimento. O limite é o consentimento. Se a mulher não consente com a abordagem, se sente constrangida, tem medo de perder o emprego caso recuse ou para as investidas, já é assédio!”, enfatiza.

Procuradora do Ministério Público do Trabalho da Bahia (MPT) - que atualmente possui 16 inquéritos envolvendo suspeita de assédio sexual no trabalho e sete processos em andamento -, Juliana Corbal explica que o assédio no trabalho normalmente implica que alguém em uma posição superior abusa de um empregado, que hierarquicamente já está em uma posição vulnerável. “As vítimas são o lado mais fraco dessa relação e podem ser facilmente substituídas, e muitas vezes há ainda o abuso de ilicitudes, como a falta de pagamento adequado, por exemplo”.

Efeitos

O machismo estrutural, afirma a procuradora, desestimula a mulher de fazer denúncia, e isso é uma dupla vulnerável: mulher e empregada. 

“O receio é que aquela denúncia resulte na perda do emprego ou que os superiores não acreditem. Então, ela se cala, mas muitas outras já podem estar caladas. Por isso, nossa posição aqui no MPT não é apenas a de olhar para o trabalhador, mas para o coletivo. Isso diz respeito à saúde mental da vítima e de todos naquele local. Provar não é fácil, mas a voz é muito importante, e as mulheres não devem sentir vergonha, pois outras podem estar passando pelo mesmo”, afirma Deiró.

Ter uma rede de proteção, não só através das colegas de trabalho, mas do próprio local de trabalho, é essencial para combater casos de assédio, enfatiza Rui Oliveira, coordenador geral da Associação dos Professores Licenciados do Brasil Seccional Bahia (APLB-BA). “As mulheres das redes de ensino são fortemente instruídas a não relevar situações desse tipo e hoje os casos são baixíssimos. Elas são orientadas a denunciar a administração da instituição e ao sindicato a qualquer sinal de ameaça, intimidação ou assédio. Nós estamos construindo um nível de consciência crítica muito grande dentro da educação”, afirma Oliveira.

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Trabalhadoras do lar têm mais dificuldade na obtenção de provas

Se há tanta dificuldade em provar casos de assédio sexual em salas e escritórios, o que dizer da situação das trabalhadoras do lar? Domésticas, babás e diaristas correm perigo em dobro (ou triplo) de não terem a justiça sendo feita caso sejam assediadas: os lares são ambientes privados, onde elas trabalham, em sua maioria, sozinhas, onde as pessoas não podem entrar, nem mesmo a polícia, a não ser que o proprietário autorize. E esse proprietário é muitas vezes o agressor ou a família dele.

“É um ambiente de trabalho invisibilizado, onde a vítima pode fazer muito pouco para obter provas. Isso dificulta a punição, o que, por sua vez, mostra um grande nível de impunidade que estimula esses agressores. São espaços pequenos, como cozinhas e banheiros onde essas mulheres são encurraladas, e além da dificuldade de obter provas, já que elas não podem filmar pois podem ser processadas por uso não autorizado de imagem, muitas acabam aguentando a situação para manter o emprego”, explica Luiza Batista, coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

A orientação então, afirma Batista, é que elas tentem gravar áudios quando estiverem nessas situações, por exemplo. Ela ainda salienta que a Fenatrad sempre está em contato com os sindicatos - que são a real base dessas denúncias -, e a Federação sempre procura conversar com essas mulheres e realiza oficinas, inclusive online na pandemia, onde explicam e orientam essas mulheres sobre o que podem fazer, como fazer e a quais órgãos devem recorrer para denunciar caso precisem.

“Porém, a situação é muito, muito difícil. Houve um caso, por exemplo, de uma empregada que era assediada por um idoso de cerca de 80 anos, que imprensava ela por trás no banheiro ou na cozinha. Um dia ela conseguiu gravar um áudio que mostrava claramente o que estava acontecendo, mas a família alegou que ele era diabético e que, às vezes, tinha uns revertérios. E esse tipo de falso diagnóstico é, infelizmente, muito comum. A lei criada para proteger essas mulheres é essencial, mas é preciso também exigir mais cuidado com esses diagnósticos e que os médicos que os dão, sejam duramente questionados sobre isso”, pontua a coordenadora geral.

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