BAHIA
Cotas para refugiados transformam vidas e dão esperança de um futuro melhor
A TARDE conversou com um refugiado angolano que cursa medicina em Salvador
Por Leo Moreira
O sorriso no rosto e o olhar fixo no horizonte miram um futuro promissor e expressam a felicidade latente pela oportunidade recebida a mais de 10 mil quilômetros de casa. Uma realidade bem diferente daquela vivida antes por Menezes Fonseca, de 30 anos, que teve de deixar família, amigos e seu país de origem, a Angola, para buscar melhores condições de vida e seu maior sonho, cursar medicina. Ele é um dos 22 estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que ingressaram na instituição por meio das vagas reservadas para imigrantes ou refugiados em situação de vulnerabilidade.
"Sempre tive um sonho de poder fazer medicina e isso foi uma das forças que me moveram a sair do meu país, onde as oportunidades não eram favoráveis. À procura de uma melhor formação e de qualidade também foram fatores que me fizeram vir ao Brasil", contou o estudante em entrevista ao Portal A TARDE.
De acordo com a Agência da ONU, por definição, refugiados são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. No entanto, durante a conversa com a reportagem, Menezes evitou a palavra e, ao falar brevemente do que deixou para trás no outro lado do planeta, sua feição logo mudou e o sorriso deu lugar ao franzido na testa.
"Toda pessoa queria estar perto da família, mas é o desafio de ir atrás do sonho, ir atrás das realizações, ir atrás de novas oportunidades muitas vezes nos tiram dentro do seio familiar. Eu creio que Deus acabou implementando uma outra família que eu tenho a família brasileira".
As cotas para refugiados ou imigrantes em situação de vulnerabilidade social, assim como para pessoas trans (transexuais, transgêneros, travestis), foram incluídas em 2019 na UFBA e já no ano seguinte passou a receber alunos que tinham direito ao beneficio. Atualmente, ao menos 32 universidades brasileiras já adotam a política de incluir em seus editais específicos vagas para esse segmento.
Apesar de ser uma cota, na UFBA, por exemplo, elas não fazem parte das "tradicionais" ofertadas para estudantes de escola pública, negros e outros, como explica a pró-reitora da universidade Nancy Rita Ferreira Vieira.
"Existe um edital específico para esses estudantes. Elas (cotas) não interferem nas vagas ofertadas pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e ao Bacharelado Interdisciplinar (BI), por exemplo".
Como funcionam as vagas extras
De acordo com o próprio edital da UFBA, são admitidas quatro vagas além das vagas estabelecidas, ou seja, elas não interferem nas já oferecidas habitualmente.
Elas são separadas da seguinte forma: 01 (uma) vaga para indígenas aldeados, 01 (uma) vaga para pessoas trans (transexuais, transgêneros e travestis); 01 (uma) vaga para imigrantes ou refugiados em situação de vulnerabilidade e 01 (uma) vaga para servidores técnico-administrativos em Educação da UFBA. O edital ainda salienta que "em caso de não preenchimento, será redirecionada para outra modalidade, de acordo com a Resolução CAE nº nº 11/2023 respeitando a classificação de acordo com a nota do ENEM".
Atualmente, o curso com maior número de imigrantes ou refugiados em situação de vulnerabilidade é o de medicina, justamente o considerado mais 'elitizado' e concorrido. Dos 22 alunos que ingressaram na universidade pelas cotas específicas, 8 cursam medicina (sendo 6 em Anísio Teixeira e 2 em Salvador). Os outros cursos são: Letras (3), Pedagogia (1), Direito (1), Psicologia (1), Biotecnia (2), Odonto (2), Nutrição (1), Sistema de informação (1), Estatística (1) e Engenharia Mecânica (1).
Caminho até a Bahia
O Brasil reconheceu mais de 77 mil pessoas como refugiadas em 2023 em todo território nacional. Este número, segundo os dados apresentados na 9ª edição do Anuário Refúgio em Número. A Bahia é o principal destino no Nordeste. A maioria deles vem da América Latina e países da África, principalmente oriundos de países de línguas estrangeiras, como é o caso da Angola, e de Menezes. Porém, a Bahia, onde ele se sente em casa, não foi seu primeiro destino. Antes disso, ele navegou em terras do sul do país e 'penou' muito até chegar em Salvador, onde hoje realiza seu sonho.
"Ser um imigrante, um estranho. Todo mundo sabe que geralmente as pessoas têm um olhar muito preconceituoso da África. Então é isso aí, muitos não se dão ao trabalho de procurar a história e saber da realidade do lugar. A saber mais das coisas. Esse é um dos desafios também que eu tive aqui, mas graças a Deus, em todos os ambientes em que eu estive fui muito bem recepcionado e o calor me incentivou a continuar".
A caminhada de Menezes teve início há pouco mais de 4 anos, quando teve seu pedido de visto aceito pelo Consulado Brasileiro. Então ele foi para Santa Catarina, onde trabalhou e conseguiu ingressar no curso de rede de computadores. Mas não era isso que ele sonhava. Apesar da boa recepção e de uma realidade bem mais amistosa, ele queria mais. "Eu continuei estudando para poder fazer medicina".
Uma segunda casa
Chegando em Salvador ele conheceu uma segunda casa. Uma segunda família, quase uma nova Angola. "Foi uma um outro Brasil, né? Quando eu cheguei em Salvador foi um outro Brasil. Toda essa diversidade cultural e populacional que tem aqui no Brasil, eu podia ver tantas coisas parecidas. A capoeira, ritmos de tambor bem parecidos. A primeira vez que houve a música do Lucky Dube foi aqui, eu disse: 'eu tô vendo Lucky Dube aqui? tá zoando!'"
Na Bahia ele conta que conheceu uma nova família, sem esquecer a que estava longe e que um dia sonha em trazer.
"O Brasil a gente tem uma similaridade, por mais que a gente tente negar, é impossível a gente verificar o quanto Brasil e Angola são muito similares culturalmente. É muito parecido, além disso, a facilidade do idioma também. Então, por mais que a nossas falas e sotaque sejam um pouquinho diferente, dá para se entender, dá para se compreender.".
Futuro
Hoje, no quarto semestre, e com muito chão pela frente, ele evita fazer planos e almeja terminar logo a faculdade para se tornar um médico. "Ao longo do caminho vários planos acabam mudando e o que a gente coloca no papel, muitas vezes, acaba não saindo do planejado, mas agora, se você me perguntar, o que eue quero para agora é terminar (se formar)"
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