MULHERES E MENINAS NA CIÊNCIA
Dia Internacional: cientistas falam sobre panorama e desafios
Confira relatos de cinco cientistas ouvidas pelo Portal A TARDE
Por Bianca Carneiro
Advogada, médica, engenheira. Segundo a bióloga e professora Jamile Fernandes, 33, eram essas as carreiras que sua família esperava que ela seguisse. A baiana, no entanto, foi por outro caminho: decidiu se tornar cientista, era apaixonada por laboratórios.
Sua primeira tentativa foi na área de farmácia, mas foi na biologia mesmo que ela se encontrou. Hoje doutora, como sua família queria, Jamile se especializou em botânica e atua na área da anatomia vegetal, que estuda as células e os tecidos das plantas. No doutorado, abordou a anatomia vegetal da folha de bambus da tribo Olyreae, com o objetivo de contribuir para o entendimento do parentesco e a evolução das espécies dentro da tribo.
“A família brasileira sempre espera aquele clichê do doutor, advogado, engenheiro, médico, mas acabou que eu não me identificava com nenhuma dessas profissões. Eu ainda não sabia o que fazer, mas sempre fui fascinada por laboratório, inclusive tentei até farmácia, mas aí entrei na biologia e me apaixonei pelo curso, mas não foi nada planejado, foi acontecendo. Depois disso, fui evoluindo, escrevi artigos e fiz doutorado sanduíche nos Estados Unidos”, conta ela.
Jamile é uma das cinco mulheres cientistas ouvidas pelo Portal A TARDE nesta sexta-feira, 11, Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. A data, que serve para reconhecer a participação feminina no campo das ciências, também é um convite para a reflexão sobre as dificuldades que persistem. Alguns dados revelam que a visibilidade do gênero feminino ainda precisa melhorar: a Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, reconhece que apesar de esforços recentes, elas continuam a ser minoria no número de ganhadores de Prêmios Nobel e na liderança de empresas de pesquisa e investigação.
Ainda de acordo com a Unesco, apenas 28% dos pesquisadores do mundo são mulheres. No Brasil, elas representam 54% dos doutorandos e publicam 70% dos artigos científicos do país. Porém, apenas 24% recebem bolsas de produtividade.
Para a também bióloga e cientista baiana, Priscila Camelier, 38, a falta de incentivo é um dos maiores obstáculos para o avanço da participação feminina na ciência. Professora do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Evolução do Instituto de Biologia da UFBA (IBIO/UFBA), ela busca colaborar com esta pauta administrando a Soapbox Science Salvador, uma plataforma de divulgação pública, voltada a promover mulheres, pessoas não-binárias ou queers que fazem pesquisa nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática.
“Quando a gente pensa em mulher na ciência, tem que começar olhando para as meninas. A gente tá incentivando nossas meninas a serem cientistas da mesma forma que estamos incentivando os meninos? Então temos que olhar lá pra trás. Toda menina deveria ter o direito de ouvir que ela pode ser e estar onde quiser. Às vezes sinto que falta ter alguém para falar isso para elas. Se eu pudesse, diria isso para cada criança baiana, brasileira, pois a ciência é um lugar de transformação”, explica ela.
Estar rodeada de professoras e pesquisadoras mulheres foi, para Priscila, uma das oportunidades de progredir dentro da área. Ela, que faz pesquisas na área da biodiversidade e atua na discussão do estado de conservação dos peixes brasileiros, especificamente os de água doce, homenageou a orientadora de graduação e mestrado, Angela Zanata, dando o nome dela a um novo tipo de piaba que descobriu na bacia do rio Jequitinhonha, em Minas Gerais: a Serrapinnus zanatae.
“Foi um orgulho pra mim, pois ela é a minha mentora acadêmica e eu sempre quis descrever uma espécie em homenagem a ela”, diz. “Meus grandes exemplos de cientistas são mulheres, que me ensinaram tudo. Hoje é minha vez de formar as pessoas, dedicar o amor que tenho pela ciência à educação”, afirma.
Uma vez dentro da academia e no ambiente científico, as dificuldades para a mulher acabam ganhando novos aspectos, entre eles a de enfrentar o machismo. Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) na área da biodiversidade, Luisa Diele, 30, conta que já passou por situações delicadas durante os trabalhos na universidade.
“A academia é reflexo da sociedade e, se a gente tem uma discriminção por parte da sociedade, consequentemente tem essa mesma discriminação enraizada na ciência. No início da minha formação, eu estava coordenando um campo junto com um colega, e um colaborador decidiu que não queria ser subordinado a uma mulher e a um homem gay, que era esse meu amigo. Daí ele se exaltou, isso a gente tava no meio da Amazônia, não muito perto da cidade. Ele me xingou e ameaçou com um pedaço de madeira. No final, acabamos expulsando o homem, mas foi uma situação bem difícil”, lamenta.
Baseada em experiências e relatos de dentro e fora da universidade, Luisa, junto com outras colegas, decidiu fundar a rede de apoio intelectual e emocional ‘Kunhã Asé’ para mulheres cientistas ou que têm interesse na ciência. Ela conta que o objetivo é evitar o chamado vazamento de dutos - desistência de mulheres e grupos sub-representados na área acadêmica. O nome, uma homenagem às línguas nativas, não poderia ser mais representativo: ‘Kunhã’, significa mulher em guarani, e ‘Asé’ vem de poder, poderosa, no iorubá.
“A rede começou com quatro mulheres e hoje tem cerca de 80 pessoas atuando com trabalho voluntário. São mais de 12 grupos voluntários, mas os cernes da rede são o Semear, o Germinar, o Florescer, o Transcender e o Maternar. No Semear, temos a inserção de meninas na ciência, com ações em escolas para adolescentes que não tem contato com a área. O Germinar é voltado às meninas ao longo da formação acadêmica (graduação, mestrado, doutorado para evitar o vazamento de dutos. O Florescer é para meninas/mulheres que já alcançaram alguma posição de destaque e liderança na carreira, e faz discussões nessas posições de liderança para que cada vez mais mulheres atinjam esses espaços. O transcender faz uma discussão interseccional, trazendo temática racial, lgbtqia +, pessoas com deficiência e todos os grupos sub representados. Já o maternar, é voltado para mães na ciência, que acabam sendo as mais impactadas por falta de uma estrutura que dê suporte”, explica ela.
Coordenadora do núcleo de pesquisas, Luisa conta que o grupo já publicou cartas debatendo a atuação da mulher na ciência em revistas científicas famosas como a norte-americana Science e a britânica Nature. O Kunhã Asé mantém uma estreita relação com a Bahia: três das fundadoras são baianas e segundo Luisa, das 80 mulheres presentes na rede que reúne pessoas do país inteiro, a maioria é natural do estado. A jovem também mantém uma página nas redes sociais chamada 'Minha Amiga Cientista' onde compartilha informações sobre o fazer científico.
Ciência em pauta
Em meio aos desafios trazidos pelo vírus, a pandemia de covid-19 acabou reacendendo o debate sobre a relevância da ciência e aproximando a sociedade dos feitos científicos. Com isso, mulheres pesquisadoras como a baiana Jaqueline Goes - que mapeou os primeiros genomas do novo coronavírus no Brasil em apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso registrado no país - passaram a ter também mais visibilidade.
Médica, professora e cientista, a baiana Maria da Glória Teixeira, 72, é uma das referências em pesquisa na área de epidemiologia e estudos longitudinais, tendo sido premiada por diversos trabalhos, entre os quais sobre a epidemia de gastroenterite na Barragem de Itaparica. Ela também é tida como um dos 3 mil cientistas brasileiros mais citados pelo Google Scholar.
Aos 72 anos, Maria brinca dizendo que os filhos e netos pegam no seu pé por trabalhar demais. Ela, que atualmente participa da Rede CoVida, projeto de colaboração científica focado em monitorar a pandemia e prever sua possível evolução no Brasil, é também uma das peças chaves nos estudos sobre as arboviroses da dengue, zika e chikungunya, que já causaram uma epidemia no Brasil e na Bahia em meados de 2016.
"Imediatamente após ter sido detectada a epidemia de microcefalia (condição associada a questões como a infecção pelo zika vírus durante a gravidez), começamos a trabalhar com a London School. Fizemos revisão de literatura, escrevemos sobre, publicamos e continuamos estudando o que está acontecendo com essas crianças afetadas. É disso que se tratam os estudos longitudinais: saber se elas morrem mais, quais são as patologias que levam elas a morrerem antes das crianças que nascem sem microcefalia”, afirma.
“Um dos resultados mais importantes é que observamos que as crianças com a síndrome de zika congênita falecem muito de infecções, principalmente respiratórias, porque como elas têm uma dificuldade de ingerir o alimento, acabam engasgando e fazendo pneumonia por aspiração. A orientação que estamos dando aos médicos é que, quando essas crianças com síndrome de zika congênita apresentarem febre, que o tratamento comece imediatamente, porque as outras crianças a gente acaba esperando antes de agir. Mas as crianças com zyka, como elas agravam muito rapidamente, precisam ter atendimento logo, fazer o hemograma para ver se há infecção viral ou bacteriana e iniciar o tratamento”, explica. O achado, coordenado por Maria, será publicado ainda neste mês em uma revista de grande impacto da área médica.
De acordo com Maria, o número de cientistas mulheres cresceu bastante desde o início dela na área de pesquisa, há 50 anos. Para ela, a pandemia contribuiu para que as pessoas enxerguem o campo com outros olhos, reconheçam a sua importância e evitem a crescente ‘fuga de cérebros' dos laboratórios, que ela diz ter presenciado com frequência no meio acadêmico.
Porém, como lembra Luisa, a pandemia também reforçou um grande problema para a ciência, que é o negacionismo, expresso, sobretudo, na questão da vacina. “Se, por um lado, a gente teve um boom da divulgação científica e, consequentemente, das mulheres cientistas, por outro, nós também tivemos um boom no negacionismo científico que, de modo geral, impacta diretamente na opinião pública acerca das cientistas e da ciência. Tivemos aí algumas mulheres que se destacaram na mídia, mas ainda temos um longo caminho pra gente perder esses estereótipos das mulheres cientistas e da valorização da ciência”, aponta.
Conforme Jamile, o negacionismo e a redução no investimento para a ciência do atual governo federal tem causado muita dificuldade para que os cientistas se mantenham. “Nós temos excelentes pesquisadores na Bahia, e infelizmente, o nosso estado perde até em questão estrutural. Estudantes que vão para outros lugares relatam que encontram mais verbas, laboratórios mais equipados. As bolsas, mesmo, já tem um tempinho sem reajuste. O pesquisador precisa se manter, afinal ele não é apenas o professor de universidade, mas também o estudante de iniciação científica, mestrando, doutorando. A gente também precisa de equipamento, manutenção, essas coisas não são baratas. Na minha área de anatomia vegetal, por exemplo, precisamos usar muitos reagentes importados e para isso precisa de verbas”, ressalta.
Exatas
De acordo com uma pesquisa editada pelo Wilson Center Brazil Institute em 2019, o número de mulheres estudantes de doutorado havia aumentado 10% nas últimas duas décadas no Brasil. No entanto, essa participação varia de acordo com a área do conhecimento. Nas ciências da vida e da saúde, por exemplo, as mulheres representam a maioria dos pesquisadores (mais de 60%), enquanto nas ciências da computação e matemática, menos de 25%.
Segundo a física Suani Tavares Rubim de Pinho, 58, o baixo número de mulheres na área de exatas em comparação com as demais áreas de conhecimento tem sido uma preocupação das associações científicas. Ela ocupa a Chefia de Gabinete da Reitoria da UFBA e também atua na Rede CoVida participando de pesquisas que aliam a física estatística às áreas da ciência da vida, e ressalta que o problema não está associado à capacidade de entendimento de determinado gênero e, sim, a uma construção social.
“Realmente, a participação feminina nas área de exatas ainda é pequena, mas não faz nenhum sentido associar isso a uma abstração maior das pessoas do sexo masculino. Isso é um equívoco que, a meu ver, revela grande preconceito. O que realmente acontece, e que acho que é a principal causa desse desequilíbrio, é uma questão cultural muito forte. As áreas do conhecimento ligadas ao cuidado são mais associadas às mulheres, enquanto as demais aos homens. Isso se nota desde a criação, quando, às meninas, são dadas bonecas, enquanto os meninos ficam com os brinquedos mais tecnológicos”, pondera.
Como professora e pesquisadora na área de Física, Suani diz que tem notado um aumento no ingresso das mulheres nas áreas de tecnologia e exatas, no entanto, também se tem observado uma evasão causada por questões socioculturais.
“O que a gente observa é que há uma evasão durante essa formação. Existe, claro, a evasão de modo geral, mas a das mulheres, também acontece por conta das características da carreira científica, que exige uma certa mobilidade à medida que se avança, e isso acaba impactando em questões como a decisão de adiar, ou mesmo abdicar da maternidade, por exemplo. Nem sempre a compatibilidade entre família e carreira científica é viável”, diz.
Machismo, negacionismo, pressão social. Se para as cientistas as principais dificuldades da mulher em fazer ciência passam por esse debate, é preciso pensar além na hora de apontar soluções para reverter o cenário e ter mais colegas na área.
“O caminho para superar esses problemas é falar e discutir sobre eles, levantar dados e pautar as nossas ações nesses dados. A gente precisa promover uma ciência mais inclusiva, e isso reflete uma necessidade social, pois também precisamos de uma sociedade mais inclusiva. Temos um país onde a maior parte dos estudantes de graduação são mulheres e a maior parte dos professores são homens, isso é para se pensar”, afirma Luisa.
“Tem muita gente que pensa que as mulheres precisam ‘fazer barulho’ ou agir de maneira mais desenvolta para serem legitimadas no ambiente acadêmico. A gente não pode deixar que a sociedade nos obrigue a mudar nosso jeito de ser para sermos respeitadas. Temos o direito de ser nosso jeito e não devemos mudar ele porque nossa sociedade é machista e misógina. A sociedade é que tem de mudar o jeito dela para tratar nós, mulheres”, defende Priscila.
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